Revista Exame

O estádio do século 21

Até pouco tempo, os estádios de futebol eram basicamente iguais aos antigos coliseus romanos. Agora, a tecnologia tenta resolver um problema que persiste desde então - como torná-los a um só tempo agradáveis ao espectador e rentáveis ao investidor.

Show de luzes após jogo no Allianz Arena, em Munique: estádio como um espetáculo à parte

Show de luzes após jogo no Allianz Arena, em Munique: estádio como um espetáculo à parte

DR

Da Redação

Publicado em 7 de março de 2011 às 16h16.

De todas as casas de espetáculo construídas pelo homem, talvez nenhuma iguale a história de êxito do Coliseu de Roma. Inaugurado no final do século 1, ele foi palco de eventos tão diversos quanto apresentações de teatro, simulações de batalha naval e duelos de gladiadores. Seus espetáculos eram sucesso de público - os jogos frequentemente atraíam os 50 000 espectadores de sua capacidade máxima. A hegemonia do Coliseu como centro do entretenimento romano durou mais de cinco séculos. Mesmo quando deixou de sediar eventos, no início da era medieval, a estrutura não ficou inutilizada. Serviu de moradia, de templo, de prisão e até de cemitério.

Por fim, entrou para a história como um dos maiores símbolos do Império Romano e até hoje povoa nossa imaginação. Apesar de tantas glórias, o Coliseu não rendeu ao império um único sestércio, a menos valorizada das moedas romanas. Ao contrário, custava uma fortuna ao orçamento, já que os cidadãos assistiam de graça aos espetáculos. Vinte séculos depois, o homem mantém o hábito de frequentar - e construir- estádios. O desenho das arquibancadas, o posicionamento do palco central - muitos dos princípios básicos são iguais aos arquitetados na Antiguidade.

Com o tempo, os gladiadores deram lugar ao fair play, os jogos passaram a ser cobrados e hoje competem com centenas de opções de entretenimento. Mas, em pleno século 21, ainda lutamos para tornar o estádio um empreendimento não só interessante ao espectador, mas também rentável aos investidores e proprietários.Embora não exista consenso em torno do conceito de estádio moderno, não faltam pistas sobre como eles poderão se parecer no futuro. Palco da abertura da Copa do Mundo da Alemanha em2006, o Allianz Arena, de Munique, é um desses exemplos. O novo estádio do Bayern foi muito além das exigências da Fifa para sediar o evento.

A comodidade começa no caminho para o jogo- além de uma estação de metrô a poucos metros dos portões de entrada, no seu entorno está localizado o maior estacionamento da Europa. Do lado de dentro, assentos confortáveis e arquibancadas próximas ao gramado proporcionam uma visão do campo sem pontos cegos. Todos os lugares são numerados e cobertos. Detalhes de lances da partida podem ser acompanhados em telões gigantes, à maneira dos jogos de basquete da NBA, nos Estados Unidos.

Um potente sistema de som participa da comemoração dos gols, anuncia substituições e faz a trilha sonora nos intervalos. Projetado para aproveitar a luz natural e captar a água das chuvas, o Allianz Arena se alinha com medidas de sustentabilidade ambiental - exigência da Fifa que virou tendência em estádios modernos. “Conheço quase todos os estádios do mundo e nunca vi um como este”, disse Franz Beckenbauer, eterno imperador do futebol alemão e maior autoridade da Copa da Alemanha, na ocasião da inauguração da arena. "É um salto quântico."

O Allianz Arena representa uma concepção de eventos esportivos segundo a qual o estádio é uma atração à parte. A estratégia tem mostrado força em tempos de pay-per-view - quando não é fácil convencer o espectador a trocar o sofá da sala por um lugar na arquibancada. A média de lotação dos jogos do Bayern no novo estádio hoje beira 100%, e os camarotes estão esgotados para as partidas dos próximos dois anos. Em 2008, o faturamento do clube com o estádio foi de 105 milhões de dólares, suficiente para cobrir com folga sua operação e manutenção e deixar algum lucro. No Brasil, o estádio com maior faturamento é o Morumbi, que rendeu ao São Paulo 21 milhões de dólares em 2008.  


À parte do que é preciso fazer para tornar o espetáculo atraente aos torcedores, a questão central na concepção de arenas modernas diz respeito sobretudo à sustentabilidade financeira do empreendimento. Trata-se de justificar a construção de imensas estruturas capazes de acomodar dezenas de milhares de pessoas e que, no caso dos estádios brasileiros para a Copa de 2014, envolvem investimentos de 500 milhões de reais, em média.

O Emirates Stadium, estádio privado que pertence ao Arsenal, time da primeira divisão do futebol inglês, é um dos mais avançados e rentáveis do mundo. Inaugurado há três anos, seu faturamento em 2008 foi de 164 milhões de dólares. O “efeito Emirates” é apontado como principal vetor de crescimento do lucro do Arsenal, que passou de 26 milhões de dólares no balanço anual fechado em maio de 2006 para 74 milhões de dólares em 2009. Ceder o direito de nomeá-lo à companhia aérea Emirates por 15 anos e de patrocinar a camisa por oito rendeu quase 170 milhões de dólares ao clube. A principal fonte de receita do estádio, como é de esperar, vem dos matchdays, os dias de jogos.

Os ingressos, porém, representam apenas parte do que é arrecadado nas partidas. “Um estádio moderno não pode depender apenas de bilheteria. Ele precisa oferecer uma gama de serviços para que o torcedor deixe mais dinheiro lá dentro”, diz Amir Somoggi, especialista em marketing e gestão no esporte da consultoria Crowe Horwath RCS. No complexo do Emirates, há 250 bares e quiosques. Em dia de jogo, o restaurante serve, em média, 5 000 refeições.

A Armoury Shop, com 1 000 metros quadrados, é uma das maiores lojas de produtos licenciados de futebol do mundo. Dos 60 000 lugares do estádio, 7 000 são premium (com mais conforto e melhores serviços) e há 150 camarotes executivos, bancados por empresas. A gama de serviços inclui o Arsenal Experience, serviço vip em que o torcedor é recebido por um jogador do quadro atual do time, tira fotos com o ídolo e ganha uma bola oficial autografada.

O gasto médio em jogos no Emirates hoje é de 105 dólares - o valor médio do ingresso no campeonato brasileiro em 2008 foi de 10 dólares. No Brasil, começaram recentemente as tentativas de aumentar a receita extraingresso dos estádios mais antigos, mantidos pelo poder público ou ligados a clubes tradicionais. Construídos nos anos 50 e 60, eles têm nas bilheterias praticamente a única fonte de receita. O Morumbi já incorporou camarotes patrocinados por empresas e montou um bar temático. A expectativa é que as reformas do Maracanã e do Mineirão sigam essa estratégia, com a ampliação e a melhoria dos serviços, para criar novas fontes de renda. 


Para os novos projetos para a Copa de 2014, a proposta mais comum de modelo econômico é a adoção do conceito de arenas multiuso, no qual os estádios são concebidos para receber o maior número possível de eventos. A estratégia tem sido adotada especialmente nas cidades com pouca tradição no futebol.

Sem times de expressão ou torcida para lotar as arquibancadas, a ideia é criar estruturas flexíveis, que depois da Copa possam ser utilizadas para receber shows, congressos, convenções de empresas ou festas de casamento. O Veltins Arena, estádio privado do Schalke 04, time da primeira divisão alemã, é um dos maiores exemplos dessa tendência. Inaugurado em 2003, recebe em média 40 eventos por ano além das partidas do clube.

Entre suas características multiuso, destaca-se uma tecnologia que permite remover o gramado para fora da arena. Assim, o mesmo estádio que sedia partidas da Liga dos Campeões, o maior campeonato de clubes do futebol europeu, pode  receber eventos como corridas de carro off-road, competições de esqui, jogos de hóquei no gelo e concertos de música clássica.

Cuiabá, uma das subsedes da Copa 2014, está entre as cidades brasileiras que se espelham nesse modelo - apesar de não ser um estádio privado, mas de propriedade do governo estadual. “Sempre soubemos que o futebol, sozinho, não vai fazer do nosso estádio uma operação economicamente viável”, afirma Adilton Sachetti, presidente da Agecopa, agência criada pelo governo de Mato Grosso para tratar de assuntos da Copa.

O público local que frequenta eventos esportivos é reduzido - em maio, a final do campeonato mato-grossense, entre Luverdense e Araguaia, levou 6 000 torcedores às arquibancadas (o Luverdense levou a taça na disputa de pênaltis, após empate sem gols). Além de receber eventos sobre o gramado, o projeto do novo estádio de Cuiabá, batizado de Verdão, prevê usos múltiplos para a estrutura interna da arena. Para isso, divisórias leves definirão o desenho dos ambientes e poderão ser reconfiguradas para formar novos layouts. Para diminuir custos com manutenção, parte das arquibancadas atrás das traves poderá ser removida.

Antes de Cuiabá, a tecnologia será testada em três estádios da Copa da África do Sul, em 2010, e no novo estádio Olímpico de Londres. Apesar da aura de solução mágica que tem envolvido o conceito - quase um mantra no caso dos projetos de novos estádios brasileiros -, o multiuso na verdade é um quebra-galho para as finanças das arenas. Em geral, o estádio ganha de comissão não mais que 10% do que é arrecadado pelos organizadores de um show. À parte as receitas com a locação de estruturas internas menores, como salões para congressos, o fato é que existem poucas Madonnas no mundo com fãs suficientes para encher arquibancadas e, no Brasil, a renda média da população ainda não permite sustentar espetáculos caros o tempo todo. Por fim, a concorrência entre várias arenas multiúso em funcionamento no país tenderá a puxar para baixo a rentabilidade dos novos estádios. 


A busca de soluções para tornar os estádios da Copa viáveis economicamente não é um esforço apenas brasileiro. Ao contrário, o assunto costuma ocupar o centro das discussões a cada nova edição do torneio. Da captação de financiamento à operação, os estádios são empreendimentos complexos, dependentes de variáveis externas e onde há pouco espaço para soluções universais. O fato de sediarem espetáculos esportivos e de entretenimento, sujeitos ao comparecimento - ou não - do público, torna sua operação ainda menos previsível.

O que a experiência mostra é que os estádios mais rentáveis do mundo pertencem a grupos privados e estão ligados a clubes esportivos de grande porte. Dessa forma, o estádio passa a fazer parte de uma estratégia mais ampla de negócios, que inclui venda de produtos, jogadores, patrocínio, direitos de transmissão, além dos ingressos para jogos. Mesmo essa equação privada nem sempre fecha - para cada bom exemplo contido nesta reportagem há inúmeros outros de estádios decadentes que sorvem recursos dos clubes.

No setor público, as coisas costumam ser piores. A constatação coloca ainda mais peso sobre as decisões a ser tomadas pelo país, onde nove dos 12 estádios escolhidos para sediar os jogos estão nas mãos de governos estaduais - e onde o risco de que se transformem em elefantes brancos é enorme. O fato é que nenhuma das 12 cidades possui hoje um estádio em condições de receber partidas da Copa. A única certeza é que, para se manter no páreo, eles terão de atender às exigências da Fifa - dispostas num caderno de encargos com mais de 200 páginas. O ideal seria que, ao mesmo tempo, os empreendimentos contemplassem um legado para as cidades.

O tempo, porém, começa a jogar contra o país. O calendário da Fifa anota 28 de fevereiro de 2010 como prazo limite para o início das obras. Os desafios e as soluções de cada cidade são bastante diversos. Em comum, espera-se que os novos estádios proporcionem ao menos parte do fascínio que os antigos romanos tinham pelo Coliseu - sem toda aquela matança, é claro, e sem causar aos cofres públicos o mesmo estrago que faziam no orçamento do império.

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