Favelas nas periferias, emaranhado de ligações clandestinas e caos no trânsito: cenas da rotina urbana brasileira (Reprodução)
Da Redação
Publicado em 24 de março de 2011 às 06h00.
"O século 19 foi o século dos impérios. O século 20, o dos estados-nações. Mas o século 21 será o século das cidades.” O autor dessa máxima, traduzida em vários idiomas, é o americano Wellington Webb, que governou a cidade de Denver, no Colorado, nos Estados Unidos, entre 1991 e 2003.
Webb foi uma espécie de prefeito-trator. Por três mandatos consecutivos supervisionou cerca de 7 bilhões de dólares em investimentos na infraestrutura local, cifra invejável para uma cidade de apenas 600 000 habitantes. Em parceria com a iniciativa privada, modernizou o aeroporto, reformou o centro de convenções e reurbanizou a área central, repaginando prédios históricos para receber escritórios, lojas, bares e restaurantes.
Com o choque de obras, Denver se tornou referência de cidade moderna e polo de criação de empregos. No Brasil, onde a gestão municipal é a face menos preparada da administração pública, o exemplo de Denver pode parecer um fato isolado. Mas não é o caso. Webb representa uma nova geração de prefeitos que, acompanhados de investidores, empresas e acadêmicos, entendem que as cidades têm um novo papel e miram uma única meta: planejar o inevitável crescimento urbano para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.
Segundo o mais recente relatório das Nações Unidas sobre crescimento urbano, 2008 foi um marco na história. Foi quando, pela primeira vez, mais de metade da população do mundo passou a viver nas cidades. Hoje, são 3,5 bilhões de pessoas. Em 2030, o contingente chegará a 4,9 bilhões.
Com essa concentração ímpar de gente, as sociedades urbanas do século 21 vão ditar a geração de conhecimento, o uso dos recursos naturais e o desenvolvimento econômico global. Há outra mudança. A força motriz dessa transformação serão os países emergentes, não os desenvolvidos. Em 20 anos, as cidades da América Latina, da África e da Ásia reunirão 80% da população urbana.
Caberá aos gestores públicos de cada uma delas definir se o fenômeno vai fomentar prosperidade ou miséria. No Brasil, as cidades já abrigam 84% da população e geram 90% da riqueza. Nos próximos 40 anos, as áreas urbanas do país abrigarão 20 milhões de novos moradores, o equivalente a duas cidades de São Paulo.
Para um país que tem a pretensão de se tornar potência, fica a pergunta: o que as cidades brasileiras precisam fazer para acompanhar a transformação global?
A consultoria PwC e a empresa de estudos de mercado Urban Systems Brasil traçaram, a pedido de EXAME, um raio-X da infraestrutura de quatro setores — transportes, saneamento, telecomunicações e energia — em nove das principais cidades brasileiras — São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, Fortaleza, Belo Horizonte, Manaus, Recife e Porto Alegre.
O levantamento mostra a realidade da estrutura urbana e indica o que será preciso fazer nos próximos 15 anos para equipará-la ao padrão das cidades mais avançadas.
O diagnóstico evidencia o que qualquer morador das metrópoles brasileiras sente na pele diariamente. Estamos muito, mas muito atrasados na garantia de um mínimo de qualidade de vida. Em São Paulo, maior cidade do hemisfério sul, mais de 1 milhão de pessoas — o equivalente a 11% da população — não estão ligadas à rede de esgoto.
A cada verão, chuvas instalam o caos no trânsito de quase todas as metrópoles do país. Deslizamentos de terra matam moradores das áreas mais pobres com uma recorrência absurda. Somos também campeões mundiais de blecautes, que volta e meia deixam milhões às escuras. Os aeroportos, mesmo os recém-reformados, como o de Porto Alegre, operam bem acima do limite. E segue por aí a lista de nossas mazelas urbanas.
Resolvê-las, com boa gestão e novas tecnologias, deveria ser a prioridade. “As cidades brasileiras cresceram sem planejamento, replicando em pleno século 21 os mesmos problemas de 50 anos atrás: transporte público ineficiente, falta de saneamento básico, favelização da periferia”, diz o canadense George Martine, consultor de planejamento urbano das Nações Unidas.
“O gestor público precisa entender que as cidades foram feitas para crescer e é sua responsabilidade prepará-las para receber bem um número sempre maior de pessoas.”
O levantamento mostra também, item a item, o quanto precisaríamos investir para nos aproximarmos do padrão desenvolvido. No total, as nove cidades analisadas demandam um investimento total de 330 bilhões de reais, no prazo de 15 anos.
Isso considerando apenas algumas áreas problemáticas: mobilidade urbana (metrô e ônibus), aeroportos, coleta e tratamento de esgoto, banda larga e distribuição de energia. Por ora, o que está sendo feito nessas metrópoles está muito aquém do necessário.
O investimento em curso em corredores de ônibus, por exemplo, representa só um sexto do que os consultores calculam que seria preciso. No caso dos aeroportos, a proporção é de um terço do desejável para que venham a operar com conforto — a 80% da capacidade.
Quem acompanha a urbanização global lembra que o Brasil tem no momento motivações adicionais para tirar o atraso: a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada Rio 2016 . “Tais eventos funcionam como catalisadores de investimentos”, diz o egípcio Hazem Galal, sócio da PwC especializado em cidades.
“Eles têm data marcada e exigem que os melhores projetos sejam tirados da gaveta.” Londres, para sediar a Olimpíada de 2012, promove uma onda de investimentos em East End, área até então rejeitada por ter os piores indicadores de renda, emprego e saúde. “Cidades hoje são como produtos — é possível construir uma imagem para elas”, diz Galal. “Dependendo do que for feito, São Paulo será lembrada como centro dinâmico de serviços ou como a metrópole dos alagamentos.”
Nos próximos anos, o Brasil precisará de visão e agilidade especialmente para acompanhar duas reviravoltas tecnológicas. Uma está ocorrendo no setor de energia. As metrópoles mais modernas já adotam o sistema elétrico com controle informatizado, as chamadas redes inteligentes.
Com essa tecnologia, o consumidor pode saber o preço da energia a cada minuto, produzir e vender eletricidade de painéis solares e abastecer um carro elétrico em tomadas públicas. São mudanças bem-vindas. A infraestrutura elétrica das cidades brasileiras está envelhecida e as perdas técnicas, somadas aos roubos, consomem até 22% da energia distribuída.
A outra grande mudança ocorre nas conexões de internet. O mundo começa a implantar a tecnologia 4G, a banda larga que promete catapultar a qualidade e a velocidade da transmissão de dados sem fio.
Nas três maiores cidades do Brasil — São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador —, o 4G é só uma promessa e apenas 11% dos celulares usam a tecnologia atual, a 3G. “O ideal seria pular uma geração e ir direto para a 4G”, diz Jesper Rhode, diretor de inovação da Ericsson para a América Latina.
Se a fotografia de nossas cidades mostra uma realidade sofrível, o momento é de oportunidade. Reunidas num pacote, o smart grid, a superbanda larga e outras inovações, como painéis solares domésticos, estão ajudando a reinventar não só o jeito de viver nas cidades mas elas próprias.
“Há muitos estudiosos e corporações desenvolvendo soluções para integrar as novas tecnologias e criar cidades inteligentes”, diz o pesquisador Ryan Chin, do Massachusetts Institute of Technology, em Cambridge, nos Estados Unidos. “Por enquanto, poucos gestores públicos saíram na frente para implementá-las.” As cidades brasileiras precisam, urgentemente, eleger seus prefeitos-tratores.