Placa com número: maneira de identificar pessoas sem documentos (Claudia Andujar/Divulgação)
Karin Salomão
Publicado em 13 de fevereiro de 2020 às 05h15.
Última atualização em 13 de fevereiro de 2020 às 10h21.
Paris — Durante a ditadura militar, o governo Médici assinou o Programa de Integração Nacional para colonização da Amazônia e iniciou a construção de grandes rodovias, como a Transamazônica. As obras nas estradas, bem como o aumento da atividade de mineração, atraíram grandes levas de trabalhadores para regiões inóspitas.
Sem proteção de anticorpos, quase 20% da população yanomami, tribo isolada em territórios em Roraima e no Amazonas, morreu em decorrência de doenças como tuberculose, sarampo e gripe.
A fotógrafa Claudia Andujar esteve nas áreas afetadas ao lado de dois médicos para aplicar vacinas na população vulnerável. Como forma de identificar os indivíduos — que não tinham documentos e cujo nome mudava no decorrer da vida —, Claudia os fotografou com um número pendurado no pescoço.
De uma expedição fotográfica para descobrir as tribos mais isoladas da Amazônia, o trabalho de Claudia Andujar transformou-se em um manifesto político pelos direitos dos yanomamis. Sua vida e obra hoje estão representadas na exposição A Luta Yanomami, na Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, em Paris, onde ficará até o dia 10 de maio para depois partir para Suíça, Itália e Espanha.
As fotos dos indivíduos com os números fazem parte da exposição. A mostra é uma parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS) e tem suporte da Hutukara Associação Yanomami e do Instituto Socioambiental.
O primeiro contato de Claudia com os yanomamis foi no início dos anos 70, numa reportagem para a extinta revista Realidade. Logo depois, com uma bolsa oferecida pela Fundação Guggenheim, Claudia voltou às terras indígenas. Nos anos seguintes, dedicou-se a traduzir a comunidade xamânica dos yanomamis em fotografia.
Com técnicas experimentais, como filtros coloridos e uso de vaselina na lente da câmera para borrar as bordas das imagens, ela buscou simbolizar os espíritos da floresta, chamados de xapiri. As imagens trazem uma sensação de intimidade ao apresentar as pessoas em momentos de relaxamento ou em festas da comunidade.
A tribo isolada que ela buscava retratar, no entanto, passou a sofrer com a influência externa. Como resposta, não apenas a técnica de fotografia de Claudia mudou como também seu propósito. As centenas de imagens que ela produziu da região viraram instrumento político.
Em 1978, ao lado do missionário Carlo Zacquini e do antropólogo Bruce Albert, a artista fundou a ONG Comissão Pró-Yanomami para reivindicar a posse de territórios indígenas. As terras yanomamis foram demarcadas em 1992 pelo então presidente Fernando Collor, contemplando uma área de 96.650 quilômetros quadrados no norte dos estados de Roraima e Amazonas, duas vezes maior que a Suíça, país de origem da fotógrafa.
Claudia Andujar nasceu em 1931, sob o nome de Claudine Haas, e passou parte da infância na Hungria. Viu o pai e a família paterna serem levados a um campo de concentração durante o nazismo, onde seriam mortos.
Foi para os Estados Unidos, teve um casamento breve e adotou o sobrenome do marido, antes de imigrar para o Brasil para encontrar a mãe e iniciar a prática da fotografia. Para Claudia, a imagem de pessoas numeradas evoca a época do regime nazista. Agora, porém, os números representariam uma forma de tentar salvar outra população.
Desde o início, os assuntos de interesse da artista incluíram pessoas marginalizadas e causas humanitárias. Para Thyago Nogueira, curador do IMS, o trabalho de Claudia é maior do que a arte. “Sua fotografia começou jornalística, virou arte e resultou numa luta política, numa militância que em muito extrapolou a estética”, afirma.
Mais de 40.000 imagens foram analisadas para chegar às 300 que compõem a mostra. “Conhecer mais sobre a vida e sobre a situação dos yanomamis é tão urgente hoje quanto na década de 70, pelas ameaças às políticas de demarcação de terras indígenas e queimadas na Amazônia”, diz Leanne Sacramone, curadora da Fundação Cartier. “Apesar das diferenças culturais, é uma luta com a qual todos nós podemos nos identificar.”