Miguel Krigsner e Artur Grynbaum, do Boticário: “Nossa essência continua a mesma. Nascemos para fazer negócios do jeito certo” (Leandro Fonseca/Exame)
Publicado em 18 de junho de 2024 às 06h00.
De quanta terra precisa uma empresa?
Após 40 anos, o enorme terreno de 150.000 metros quadrados da sede do Grupo Boticário, em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, começou a ficar pequeno. É o resultado de décadas de obras constantes, visando atender o crescimento da maior rede de franquias de beleza do mundo. A última leva de ampliações, começada em 2022, inclui a da fábrica de Camaçari, na Bahia, e está prestes a ser concluída. No Paraná, as obras abrangem a construção de um centro de visitação que resgata o início da empresa, com a batedeira usada para fazer as primeiras misturas de cosméticos e até o cheiro das fragrâncias mais tradicionais. A conexão do futuro — com suas novas fábricas e linhas de produção — com a história é essencial para um crescimento sustentável, na visão da liderança da companhia. “Nossa essência continua a mesma. Nascemos para fazer negócios do jeito certo”, diz Miguel Krigsner, fundador do Grupo Boticário. “Reverenciamos o passado, mas temos um olhar para o futuro.”
A consistência da estratégia de negócios que alia o crescimento à sustentabilidade fez do Grupo Boticário a empresa do ano da premiação Melhores do ESG de 2024 da EXAME. É um reconhecimento a uma companhia que não trata sustentabilidade como mera perfumaria. Coloca as práticas ambientais, sociais e de governança no centro de uma estratégia de negócios das mais ambiciosas. Os números falam por si. De 2013 a 2023, o Grupo Boticário multiplicou seu faturamento por 4, e fechou o ano passado com receita superior a 30 bilhões de reais. O avanço ganhou tração nos últimos dois anos, quando a receita quase dobrou. A companhia vem expandindo o número de lojas (mais de 3.800), de marcas (já são 12), de lançamentos (já são 3.000 todos os anos) e de canais de distribuição (que incluem franquias, lojas próprias, comércio eletrônico, vendas diretas, farmácias e supermercados). “Somos a empresa com a estrutura mais completa no mercado global de beleza”, diz Artur Grynbaum, sócio e vice-presidente do conselho da companhia.
Some-se a isso uma estrutura que já tem 20.000 funcionários diretos, 25.000 indiretos, estimadas 2 milhões de distribuidoras porta a porta, 24 milhões de clientes recorrentes e mais de 50 países atendidos. Brasil adentro, existe uma loja do Boticário a cada 3 quilômetros. Como fazer as práticas ambientais e sociais chegarem a toda essa enorme cadeia de negócios? Para os líderes da companhia, o segredo está na palavra muitas vezes esquecida da sigla ESG: “governança”. “Governança é o eixo central. As ações não podem ser falsas e têm de se encontrar num objetivo maior”, diz Krigsner. “Um novo modelo de loja, por exemplo, já pressupõe produtos certificados e arquitetura com tratamento de resíduos. Não pode ser um adicional, tem de fazer parte de cada decisão”, complementa Grynbaum. Para os controladores do Boticário, a maior mostra da relevância da sustentabilidade é o fato de que as reuniões anuais com os 1.200 líderes tratam 70% do tempo sobre valores e apenas 30% sobre estratégia. “O crescimento não pode atrapalhar a cultura, ele precisa impulsionar a cultura”, diz Krigsner.
O efeito de ter o “G”, de “governança”, como o pilar mais destacado se manifesta na participação de um número expressivo de pessoas envolvidas em debates sobre sustentabilidade internamente. Diretamente, são 40 profissionais focados em ESG, mas o tema perpassa todos os setores. O grupo implementou de forma integrada os critérios ESG na estratégia de negócios, garantindo que cada área tenha seus próprios indicadores a serem repassados a um departamento central: a diretoria de sustentabilidade. Esta, no entanto, não tem ingerência sobre as demais; assim, os diretores não perdem sua autonomia. A relevância do tema com os acionistas, em paralelo, incentiva a incorporação dos princípios da sustentabilidade empresarial e garante uma adesão natural, por parte dos executivos, ao modelo de gestão. A frase “é preciso dar retorno ao acionista”, no Boticário, significa pensar de maneira sustentável.
Essa centralização dos dados possibilita não apenas a formulação de estratégias abrangentes mas também a identificação de oportunidades para aprimorar a gestão por meio dos princípios ESG. O cenário se desdobra em cada projeto — sejam eles industriais, comerciais, sejam de marketing. Um exemplo prático ocorreu durante a pandemia, quando informações e impressões obtidas pela área de venda direta destacaram a necessidade de viabilizar a telemedicina para as revendedoras do grupo. Na recente tragédia do Rio Grande do Sul, por sua vez, a liderança da companhia enviou produtos e água para áreas necessitadas horas após as primeiras notícias de inundação.
A agilidade começa na liderança dos dois sócios controladores, que têm quase quatro décadas de parceria. A visão de negócios é a mesma, assim como o olhar sustentável para o futuro. “Temos até 2030 já planejado e seguiremos olhando o longo prazo. Para nós, os trimestres são de 30 anos”, diz Grynbaum. Esse olhar para o futuro pressupõe avaliar oportunidades que aliem integração de negócios, com ganhos de escala e de mercado, mas que também tragam integração de culturas complementares. “Não tomamos decisões porque os concorrentes fazem. Sabemos onde queremos estar, e de que jeito queremos estar”, diz o vice-presidente do conselho. Nos últimos anos, vale lembrar, a Natura protagonizou grandes compras e grandes vendas, de marcas como Avon e The Body Shop, enquanto o Grupo Boticário preferiu aquisições menores, como da marca brasileira de produtos capilares Truss, presente em 50 países. Também seguiu investindo em projetos próprios, como das marcas Eudora, de venda direta, e Quem Disse, Berenice?, de cosméticos mais coloridos e descontraídos. Questionado sobre se os planos para o futuro incluem uma abertura de capital na bolsa, Krigsner responde de pronto: “Para quê?”. “Além do mais, já temos nosso capital aberto, de certa forma, já que dividimos nossos investimentos e resultados com nossos milhares de franqueados há décadas”, complementa Grynbaum.
Pensamento de longo prazo
A trajetória do Boticário se mistura com a evolução do pensamento socioambiental nos últimos 50 anos. Nos anos 1980, Krigsner foi influenciado pelo agrônomo e filósofo José Lutzenberger, que deixou a Basf para se dedicar à proteção do meio ambiente. Ele não concordava com diversas práticas adotadas na agricultura brasileira, em especial no que se refere ao uso de agrotóxicos. Lutzenberger recebeu diversos prêmios, entre eles o Right Livelyhood Award, conhecido como Nobel alternativo. No início da década de 1990, foi secretário especial do Meio Ambiente no governo Fernando Collor e coordenou os esforços para realizar a ECO92, no Rio de Janeiro, primeira conferência ambiental da ONU e precursora das COPs. Rachel Louise Carson, bió-loga autora do livro Silent Spring (“Primavera silenciosa”), é outra grande influência de Krigsner. A obra é considerada um marco na história do ambientalismo e levanta a questão dos efeitos nocivos dos pesticidas à saúde das aves.
Ao longo dos anos, Krigsner ajudou, a partir do exemplo, a converter executivos e empresários para a causa. Grynbaum foi um deles, assim como Fernando Modé, com 25 anos de casa e atual- CEO da companhia. O trio viu essa filosofia corporativa avançar pelo mundo, até chegar ao ponto de se tornar referência, ou mainstream. Em 2021, quando, nos estertores da pandemia, o mercado financeiro e a sociedade civil pressionavam por uma maior preocupação com as questões ambientais, o Boticário apresentou seus Compromissos para o Futuro, uma série de 15 indicadores socioambientais organizados em sete frentes: mudanças climáticas, resí-duos, água, biodiversidade, diversidade e inclusão, desenvolvimento social e cadeia de suprimentos. A empresa se comprometeu a rever as metas a cada triênio, o que aconteceu neste ano. Os compromissos foram reduzidos para oito, uma forma de facilitar o entendimento e o acompanhamento das 30 metas estabelecidas.
As metas estabelecidas posicionam a empresa entre as mais sustentáveis do mundo. O Boticário possui o maior programa de coleta de logística reversa no varejo de beleza do Brasil, com mais de 4.500 pontos. Todos os novos produtos cosméticos incorporam pelo menos um atributo de sustentabilidade, na formulação ou na embalagem, demonstrando um compromisso com a economia circular. Em 2023, 34% do resíduo gerado pelas embalagens foi reciclado, com a meta de atingir 45% até 2030. A empresa busca alcançar a utilização de 30% de material reciclado nos frascos até 2030, já tendo chegado a 11%. Há também um olhar para as debêntures atreladas às metas ESG, os chamados sustainability-linked bonds. Para Carolina da Costa, membro independente do Comitê ESG do Grupo Boticário, debêntures são chave no compromisso das empresas. “No Brasil, essa categoria de títulos não chega a 2% do total. Ver uma companhia de capital fechado fazendo esse tipo de movimento mostra quanto ela está comprometida”, diz Costa.
No campo da diversidade e inclusão, o Grupo Boticário tem 46% de colaboradores negros e 60% de mulheres em seu quadro geral de funcionários. A representatividade- de pessoas nas campanhas de comunicação é de 47% de pessoas negras, 17% de LGBTI+, 26% de diversidade de corpos (incluindo pessoas gordas), 9% de pes-soas mais velhas e 2,5% de pessoas com deficiência. Essa diversidade se reflete em campanhas icônicas, como a Respeita meu Capelo, parceria entre Vult e Dendezeiro para redesenhar chapéus de formatura e incluir diferentes tipos capilares e finalizações. A preocupação com a diversidade aumenta a capacidade da marca de escutar e se relacionar com os consumidores, como evidenciado no show recente da cantora Madonna em Copacabana. A empresa inovou ao criar um camarote na casa da socialite Narcisa Tamborindeguy, convidando alguns consumidores para uma experiência singular. Utilizando uma abordagem inversa ao marketing tradicional, a marca busca ouvir ativamente os clientes e desenvolver ações de comunicação com base nessa escuta. Ano após ano a marca O Boticário figura em todas as listas das mais lembradas e mais valiosas do país, e sua executiva de marketing, Renata Gomide, virou uma das vozes mais ativas na integração de marketing e sustentabilidade.
Os negócios e a fundação
De todo esse universo de ideias e conceitos sustentáveis, talvez o projeto que melhor define o modelo ESG do Grupo Boticário seja a sua fundação. Krigsner decidiu criar a Fundação Grupo Boticário no início dos anos 1990, como um instrumento de proteção ambiental e de incentivo a pesquisas científicas. Em 1994, ele adquiriu a Reserva Natural de Salto Morato, no litoral norte do Paraná, uma área de Mata Atlântica preservada com 2.253 hectares — o equivalente a mais de 3.000 campos de futebol. Hoje, além da Salto Morato, a fundação controla a Reserva Natural Serra do Tombador, um santuário do Cerrado com uma área equivalente a 9.000 campos de futebol, na divisa entre os estados de Goiás e Tocantins.
Nas primeiras três décadas, a empresa e a fundação permaneceram completamente separadas, exceto financeiramente. Desde a criação do braço filantrópico, 1% da receita líquida do Grupo Boticário é destinado a ações sociais e de conservação, sendo a maior parte dos recursos direcionada para a fundação. Mas, no final dos anos 2010, houve uma aproximação. À medida que o grupo se aprofundava nas boas práticas industriais, surgia a necessidade de -lidar com questões ligadas à gestão de água, uso do solo, regeneração e mudanças climáticas. Em dado momento, a associação dessas demandas com o trabalho realizado pela fundação foi inevitável. “Não fazia sentido contratar profissionais para fazer algo que já fazíamos”, afirma Grynbaum. Iniciou-se, então, um processo de integração do conhecimento gerado pela área filantrópica, com os desafios ambientais das áreas de negócio.
“Quando anunciei a compra da primeira reserva, um repórter me perguntou: ‘Mas qual é o pulo do gato?’”, conta o fundador. Não havia. Até hoje, a Salto Morato nunca proveu nenhum recurso para o negócio, a não ser conhecimento. “Pensaram que eu utilizaria a área para desenvolver novas fragrâncias, ou matérias-primas. O objetivo era só preservar.” Era a coisa certa a fazer. Essa maneira de enxergar o mundo, de enxergar o papel da empresa e de seus líderes na sociedade, é o que direciona todas as decisões de negócios. E o retorno ao acionista? No ano passado, o Grupo Boticário encostou em sua principal concorrente no setor de beleza. A combinação de ESG e negócios em ritmo acelerado tem dado muito certo para a companhia.
Alguns indicadores importantes, como carbono e água, foram impactados por aquisições, mas as metas para 2030 estão mantidas
O Melhores do ESG é o principal guia de sustentabilidade do país há mais de duas décadas. Sua credibilidade é garantida pela excelência nos critérios de avaliação e pelo rigor no tratamento dos dados
Há 24 anos, a EXAME publica o maior e mais importante guia de sustentabilidade empresarial do país. Ao longo desse quarto de século, milhares de histórias foram contadas nas páginas do Guia Exame de Sustentabilidade, título que vigorou até 2020, e do Melhores do ESG, sua versão atual com os mais recentes critérios sociais, ambientais e de governança adotados pelo mercado. O conceito de sustentabilidade muda com o tempo, e a EXAME busca sempre estar na vanguarda, sem abrir mão de dois aspectos: a excelência dos critérios e o rigor no tratamento dos dados. A edição deste ano consagra o Grupo Boticário como a empresa do ano. A decisão seguiu a análise criteriosa feita pelo Ibmec, uma das escolas de negócios mais respeitadas da América Latina. O modelo de avaliação se baseia na capacidade da empresa de comprovar ações que realmente geram impacto positivo nas comunidades em que estão inseridas.
Para participar do guia, as empresas respondem a dois questionários. O primeiro traz 45 questões quantitativas, subdivididas em perguntas “sim e não”, de proporções e de volume. Cada questão vale 1 ponto. O segundo traz cinco questões qualitativas específicas para cada setor, às quais são atribuídas notas de zero a 10. Os avaliadores, escolhidos entre o corpo docente do Ibmec e alunos da pós-graduação, não sabem qual empresa estão avaliando, o que garante a isonomia.
A última fase do processo acontece na redação. O Ibmec apresenta, para cada setor, uma lista tríplice de empresas. A equipe de jornalismo da EXAME, então, realiza um trabalho de apuração que vai além dos dados, em busca de elementos para diferenciar, entre as finalistas, a companhia que mais avançou no ESG e nos negócios. É também o momento de checar eventuais controvérsias em relação ao discurso propagado pelas corporações e o que se vê na prática, algo que somente um jornalismo profissional e engajado pode entregar. Esse processo inovador é o que garante o mais alto padrão editorial e a credibilidade da EXAME, há mais de meio século o principal canal de informações de qualidade para as empresas brasileiras.
DESTAQUES DO SETOR
As empresas que junto com o Grupo Boticário se destacaram em Farmacêutico e Beleza
A Natura &Co atualizou metas ambiciosas da Visão 2030: 100% das embalagens serão recicláveis, reutilizáveis ou compostáveis. Incorporando a Regeneração à estratégia, o CEO ressalta a importância da sustentabilidade ambiental e social. Em 2023, 87,8% das embalagens já atendiam aos critérios. Na descarbonização, seis fluxos de trabalho para redução, 15 milhões de reais investidos em projetos de compensação de carbono. Diferenças salariais de gênero na América Latina e de raça no Brasil eliminadas, salário digno para 100% dos funcionários garantido. Anúncio do “Amazônia Viva”, com aporte inicial de 6 milhões de reais da Natura, Good Energies Foundation e Fundo Vale, com mais de 6 milhões de reais depositados em um fundo não reembolsável.
A L’Oréal implementa práticas ESG para transformar o negócio, respeitar limites planetários e contribuir para desafios ambientais e sociais. Reduziu 94% das emissões de CO2 no transporte entre a fábrica e o centro de distribuição com posto de biometano. Dos novos produtos, 98% têm performance ambiental melhorada. Pontos de venda têm móveis sustentáveis. Metas de diversidade incluem contratar lideranças negras. Fundo L’Oréal para Mulheres destinará 80 milhões de euros a organizações que auxiliam mulheres em vulnerabilidade social. No Brasil, impactará mais de 12.700 mulheres até 2026. O Projeto com a Conservação Internacional visa criar espaços de trabalho para mulheres indígenas em 39 aldeias.