Funcionários da rede Livraria Cultura: 25 imigrantes refugiados já foram contratados (Germano Lüders/Exame)
Aline Scherer
Publicado em 26 de abril de 2018 às 05h00.
Última atualização em 26 de abril de 2018 às 05h00.
Aos 41 anos, Marthe Shirukanya chegou ao aeroporto Internacional de Guarulhos acompanhada dos seis filhos, de 1 a 16 anos de idade na época, e pediu asilo à Polícia Federal. Seu país de origem, o pequeno Burundi, no leste da África, vive conflitos violentos há décadas, e a escola de seus filhos acabara de explodir num ataque com granadas. Decidida a reconstruir a vida no Brasil, ela deixou para trás a loja de material de construção da família para uma irmã cuidar. Logo recebeu o protocolo de solicitação de refúgio, que permite fazer o CPF e a carteira de trabalho. Em seguida, foi acomodada com a família num abrigo. Mesmo antes mesmo da chegada ao país, há quase três anos, Marthe já não sabia o paradeiro do marido, um perseguido político. Após muita procura, em setembro ela encontrou um emprego: na limpeza de uma loja da Livraria Cultura em São Paulo.
Hoje ela é uma dos 25 imigrantes — a maioria deles chegou ao Brasil em condições semelhantes à de Marthe — entre os 2.300 funcionários das 30 lojas da Cultura, cujo faturamento alcançou 837 milhões de reais no ano passado. É um esforço existente na empresa desde setembro de 2017, quando também abriu vagas para brasileiros em situação de rua, que viviam em abrigos. “A história do Brasil é feita de imigrantes. Ser refugiado é uma característica momentânea”, diz Sérgio Herz, presidente da Livraria Cultura —empresa fundada há 70 anos por sua avó, Eva Herz. Refugiada de guerra e da perseguição nazista, Eva chegou ao porto de Recife em 1938, aos 30 anos de idade, e três anos mais tarde fincou residência em São Paulo. “Minha avó deixou uma carta, antes de falecer em 2002, agradecendo ao Brasil pela acolhida e pela oportunidade de poder trabalhar.”
Atualmente, mais de 100.000 estrangeiros de cerca de 80 nacionalidades aguardam resposta do Brasil para pedidos de visto de residência temporária, ajuda humanitária ou reconhecimento da condição de refugiado. O caso mais notório é dos venezuelanos, que somam quase metade das solicitações e se concentram em sua maioria nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, em Roraima. É uma situação que tem se intensificado no mundo. Diariamente, 28.300 pessoas no planeta são forçadas a abandonar o lar devido a conflitos e perseguições. São mais de 22 milhões de reconhecidos formalmente como refugiados — 51% têm menos de 18 anos. Trata-se do maior nível de deslocamento já registrado na história da humanidade, segundo a Organização das Nações Unidas, desde que o levantamento começou a ser feito na Segunda Guerra Mundial.
A causa ganha a atenção de grandes empresas. Uma medida do avanço está nos dados de ONGs como a Missão Paz, ligada à Igreja Católica, que já ajudou a empregar 2 214 imigrantes no Brasil desde 2015. No Programa de Apoio para a Recolocação dos Refugiados, criado em 2011 pelo jurista João Marques, o número de empregadores associados cresceu de apenas um, no início, para 269. O projeto reúne quase 3.000 currículos de profissionais de 26 nacionalidades.
Quando o projeto Estou Refugiado, da publicitária Luciana Capobianco, começou, em 2015, as 30 empresas adeptas eram de pequeno e médio porte. Hoje, são 60 companhias, como a fabricante de bens de consumo Pepsico. Outra iniciativa, da bancária e professora universitária Ana Paula Candeloro, criada em 2017, reúne 45 executivos e empresários refugiados para treinamento e desenvolvimento profissional. O objetivo é ajudá-los a formar uma rede de relacionamentos. “Há casos de executivos que tiveram de fugir com a roupa do corpo, a universidade onde estudaram foi bombardeada e não é possível obter a segunda via do diploma”, diz Ana Paula. O resultado é que, aqui, acabam aceitando colocações que não aproveitam sua qualificação e experiência.
Um dos alunos, o empresário colombiano Cristiano Botero, especialista em comércio exterior, conseguiu emprego como operário na montadora GM. Vive há quatro anos no Brasil com a mulher e duas filhas pequenas. A família fechou sua exportadora de madeiras e mudou de país depois que Botero sofreu um sequestro. Mesmo sendo libertado ao pagar o resgate de 400.000 dólares, guerrilheiros continuaram em seu encalço.
Em diversos países europeus, como Croá-cia, Suécia e Dinamarca, empresas que contratam refugiados recebem subsídios para custear parte do salário desses profissionais. Na Alemanha, os imigrantes são entrevistados sobre suas habilidades e educação formal, de modo a auxiliar os órgãos de governo na busca por emprego. No Brasil não há incentivos desse tipo, mas algumas novidades ajudaram a tornar o contexto mais favorável para os refugiados. Desde novembro, passou a vigorar uma portaria que tornou mais simples a contratação de imigrantes, independentemente de seu tipo de visto. Além disso, neste ano, a validação de diplomas passou a ser gratuita em universidades públicas em estados como São Paulo.
A experiência de quem já começou a contratar refugiados mostra que há barreiras, mas também recompensas nessa jornada. O principal obstáculo, sobretudo para contratá-los para postos mais gra-dua-dos, é o idioma. É o que constatou uma pesquisa de 2017 da consultoria BCG com 300 empregadores alemães que admitiram 2 500 refugiados. O mesmo levantamento aponta que o retorno do investimento em treinamento e integração se dá em até um ano. Na mesma pesquisa, mais de 70% dos empregadores disseram que pretendem contratar mais forasteiros em condições semelhantes.
A empresa de aluguel de carros Localiza percebeu bons resultados ao contratar 68 imigrantes, boa parte deles haitianos com visto de ajuda humanitária que chegaram ao Brasil após o terremoto de 2010. Todos têm carteira de habilitação e recebem os mesmos benefícios e salários que os colegas brasileiros no cargo de higienizador de veículos. Desde 2016, quando os haitianos começaram a ser contratados, a rotatividade no posto caiu de 40% para 17%. No Haiti, eles trabalhavam como motoristas e mecânicos. Na Confidence, uma empresa de casas de câmbio, a contratação de 20 imigrantes desde 2014 para o atendimento ajudou a elevar o fluxo de estrangeiros nas lojas. O haitiano Winzor Doricent, formado em administração e especializado em gestão de projetos, contratado há dois anos como atendente, acaba de ser promovido para o departamento de estratégia.
Preparar os gestores para receber imigrantes é essencial para a adaptação dos novos funcionários. Na rede de supermercados Carrefour, com 86.000 funcionários, há 150 imigrantes em cargos como estoquista e auxiliar de caixa. No ano passado, 380 diretores e gerentes passaram por treinamento sobre como solucionar possíveis conflitos derivados da diversidade de funcionários. A prestadora de serviços Sodexo começou a contratar refugiados em 2010, depois de uma diretriz global da matriz francesa sobre o tema. Atualmente emprega 70 imigrantes no Brasil em cargos como recepcionista bilíngue e técnico de manutenção. “O comprometimento e a gratidão pela oportunidade de emprego demonstrados pelos imigrantes aumentam a motivação de quem está ao redor”, afirma Lílian Rauld, responsável pelo programa de diversidade da Sodexo.
Se a falta de fluência em português atrapalha em alguns casos, em outros pode ser um trunfo. Recentemente, uma funcionária congolesa da Sodexo resolveu rapidamente o problema de um cliente francês, língua oficial do Congo. Além disso, a troca cultural tem ajudado os brasileiros. Um grupo de refugiados passou a dar aulas de inglês aos colegas. É um jeito de todo mundo ganhar com as mudanças.