Revista Exame

Como resolver o embate entre indivíduo e sociedade

Diante dos desafios da revolução tecnológica e do populismo, o Nobel Jean Tirole faz um apelo em favor do debate sobre o bem comum

Jean Tirole: “O papel dos economistas é analisar situações em que o interesse individual entra em conflito com o interesse coletivo”  (Fred Lancelot/Reuters)

Jean Tirole: “O papel dos economistas é analisar situações em que o interesse individual entra em conflito com o interesse coletivo” (Fred Lancelot/Reuters)

ES

Eduardo Salgado

Publicado em 15 de fevereiro de 2018 às 05h00.

Última atualização em 3 de agosto de 2018 às 08h15.

Desde que ganhou o prêmio nobel de economia de 2014 por sua pesquisa de 2014 por sua pesquisa em áreas bastante técnicas do poder do mercado e da regulação de monopólios, o francês Jean Tirole começou a ser chamado para opinar sobre os mais variados assuntos.

É assim mesmo o script pós-Nobel: no ápice da carreira acadêmica, o laureado se vê instado a falar ao grande público sobre novos temas. Foi nessa transição que nasceu Économie du Bien Commun (“A Economia do Bem Comum”, numa tradução livre), livro publicado em 2016 na França e, no final do ano passado, nos Estados Unidos.

Num tom impetuoso, Tirole escreve em favor de um debate sobre os desafios da atualidade guiado pelo rigor da economia. Uma das discussões é a busca pelo bem comum —  o ideal coletivo de práticas e políticas boas para toda a sociedade, e não somente para o indivíduo.

Presidente da Toulouse School of Economics, Tirole também é professor visitante no Massachusetts Institute of Technology, nos Estados Unidos. Acompanhe, a seguir, a entrevista que ele concedeu a EXAME.

Comecemos com uma definição: o que é bem comum?

O bem comum é uma referência ao anseio coletivo para nossa sociedade. A questão é como esse desejo coletivo pode ser definido. Nosso julgamento provavelmente vai refletir nossas preferências individuais, as informações à nossa disposição e nossa posição na sociedade. A melhor maneira de fazer frente a esses vieses que todos temos é o experimento conhecido como “véu da ignorância”.

Esse experimento faz parte de uma tradição intelectual que remonta ao século 17, com filósofos como Thomas Hobbes e John Locke. Imagine que você ainda não tenha nascido e não saiba nada sobre sua família, etnia, religião, genética, saúde ou se seu lar é abastado ou pobre. Em que tipo de sociedade você gostaria de nascer?

A maioria provavelmente vai preferir nascer numa sociedade em que haja um sistema de saúde amplo, boa educação pública e um sistema tributário redistributivo. Essas políticas públicas são, digamos, um seguro contra os riscos de nascer numa família pobre. Também podemos dizer que a maioria não gostaria de nascer numa sociedade dominada por cartéis de empresas. A partir da ideia do véu da ignorância, podemos ir mais longe.

Ao extremo, seu exemplo de bem comum nos levaria a pensar numa sociedade idealizada e irreal, não?

É verdade que temos de focar nossa atenção num projeto de sociedade possível. Mais especificamente, temos de pensar nos incentivos pessoais. Caso contrário, caímos no mito soviético do “novo homem” — aquele sujeito totalmente generoso com uma devoção desmedida em prol do bem comum.

Os soviéticos não olharam para a questão dos incentivos e as consequências foram, logicamente, frustração, coerção, totalitarismo e organizações sociais empobrecidas. Políticos, trabalhadores empregados ou desempregados, presidentes de empresas e professores, todos reagimos aos incentivos que temos. E aqui é que entram os economistas.

Como os economistas podem contribuir?

Os economistas não podem substituir a sociedade na definição dos objetivos, mas podem contribuir para que eles sejam atingidos. O papel dos economistas é analisar situações em que o interesse individual entra em conflito com o interesse coletivo e como, ao final, podemos chegar a um resultado que reforce o bem comum.

Nossa primeira missão como economista é apresentar uma caixa de ferramentas. Como saber se um conjunto de políticas públicas está atingindo seu objetivo? Temos instrumentos. Há um melhor jeito de atingir determinado objetivo? Temos instrumentos para medir isso também.

O papel dos economistas é somente oferecer o instrumental para o debate?

Há outros papéis. Nossa segunda missão é alertar a sociedade quando o Estado ataca aquilo que a sociedade considera o bem comum. Políticos tendem a ter uma visão de curto prazo por causa do ciclo eleitoral. Posso dar alguns exemplos das consequências desse olhar restrito: aquecimento global, dívida pública, sistema de previdência insustentável, desigualdade social, desemprego e um sistema educacional de baixa qualidade.

Esses são todos os problemas que os políticos de diferentes países estão deixando de herança para as próximas gerações. Mas nem tudo se resume a uma questão eleitoral. Governos podem errar por ficar reféns de lobbies ou por questões internacionais, por exemplo.

Campanha de Marine Le Pen, na França: para Tirole, o programa econômico de políticos populistas fere conceitos básicos | Jean-Paul Pelissier/Reuters

Como diz a piada, se alguém quiser três opiniões diferentes é só fazer a mesma pergunta a dois economistas. Do jeito que o senhor fala, parece que existe uma unanimidade, não?

O embate de ideias faz parte. É o que faz a ciência progredir. Mas eu diria que a discordância entre economistas é relativamente menor do que vemos em outras áreas. Há muitos pontos em que existe convergência. A vasta maioria dos economistas em universidades de ponta concorda que é preciso colocar um preço na emissão de carbono para reduzir o aquecimento global. Poucos economistas teriam a audácia de dizer que um alto nível de dívida pública não seja perigoso. O debate está em qual nível de dívida é considerado alto, mas não na premissa. Eu poderia dar muitos outros exemplos.

De que forma o debate econômico ajuda na formação de consensos nacionais?

Minha contribuição é com as ideias. Por exemplo, no livro que lancei defendo a reforma das leis trabalhistas na França. Do jeito que estão, as leis trabalhistas são ineficientes porque geram um alto índice de desemprego, baixa mobilidade entre empregos e alto custo para as contas públicas. Isso sem contar que são discriminatórias. Uma fração dos trabalhadores goza de empregos altamente protegidos e o resto fica desempregado ou só encontra subempregos. Para a situação atual, essas leis já não servem. Mas vai ficar pior.

Escola pública em São Paulo: o sistema educacional deveria servir de seguro contra o risco de nascer numa família pobre | Alexandre Tokitaka/Pulsar Imagens

Por causa da revolução digital e da robotização?

Sim. Hoje, na França, a maioria dos empregos novos é de curto prazo. Esse é um processo que vai se intensificar. Propostas de ajustes rápidos são uma falácia. Não vamos resolver os problemas com empregos subsidiados ou com protecionismo comercial. Não há bala de prata.

Quais são as possíveis saídas?

Precisamos ter claro que a meta é preservar o pacto social. E que o desemprego em massa é algo que podemos evitar. É necessário preservar o trabalhador, não o emprego. Educação e treinamento constante são cruciais porque as demandas dos empregos vão mudar rapidamente. Além disso, outras formas de redistribuição serão necessárias. Também temos de pensar em novas regras para as empresas. Hoje as companhias pagam, por meio das contribuições, o salário-desemprego daqueles funcionários demitidos por empresas menos virtuosas. O valor da seguridade social pago pelas empresas deveria variar e ser calculado com base no histórico de demissões de cada uma.

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Como o debate sobre essas ideias pode se dar de forma sensata se temos agora a participação dos populistas?

O programa econômico dos populistas fere conceitos básicos. Mais do que nunca, é preciso explicar quais são as saídas para os problemas que enfrentamos. Uma questão importante tem relação com a mídia. Ao dar o mesmo espaço a um populista e a um político não populista, a imprensa passa ao público a ideia de que ambos os lados são igualmente qualificados.

Foi o que aconteceu no Reino Unido durante a campanha que antecedeu a votação sobre se o país deveria ficar na União Europeia ou não. Daí saiu uma nova expressão, “a síndrome da BBC”. Isso nos remete ao dilema entre a necessidade da pluralidade de ideias e uma situação em que damos pesos iguais para coisas desiguais. Não existe uma saída fácil.

Estudiosos da área de psicologia receberam o Nobel de Economia de 2002 e de 2017. Por que vemos poucos prêmios para pesquisadores de áreas importantes, como a do crescimento econômico?

A economia se tornou muito ampla. Além do campo do comportamento, há várias outras. Há conexões com ciência política, sociologia, história, direito… Em economia mesmo, muito mudou. No tema da teoria do crescimento, Robert Solow ganhou o Nobel de 1987. Não tenho nenhuma informação sobre o que o comitê de seleção do Nobel vai fazer no futuro, mas não ficaria surpreso se prêmios fossem dados a quem faz a ligação entre crescimento econômico e progresso tecnológico ou o papel de instituições. 

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