Revista Exame

A administração pública está em estado de coma

Incapaz de concluir projetos, a administração pública brasileira chegou a uma situação calamitosa: há obras de infraestrutura que viram ruínas antes mesmo de terminadas. A má notícia é que existe espaço para a coisa piorar


	Secura: a transposição do Rio São Francisco, prometida para 2010, ainda não rendeu nem uma caneca de água ao sertão
 (Marcelo Curia/EXAME.com)

Secura: a transposição do Rio São Francisco, prometida para 2010, ainda não rendeu nem uma caneca de água ao sertão (Marcelo Curia/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 19 de maio de 2014 às 06h00.

São Paulo - Numa conversa recente com um repórter do jornal The New York Times, o ministro dos Transportes, César Borges, teve um acesso de sinceridade e, talvez, de pura e simples exasperação.

A entrevista era sobre os chocantes índices de inépcia nas obras públicas do Brasil, que pelo jeito começam a se tornar um caso de espanto internacional — provocado, certamente, pela atenção crescente que o miserável desempenho brasileiro na construção das obras da Copa vem despertando pelo mundo.

“Vá construir uma obra”, desabafou o ministro, “onde estão em cima de você, o tempo todo, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral (também da União), repartições que fiscalizam possíveis e impossíveis impactos ambientais na área da construção, agentes da Funai para verificar se estaria havendo algum problema com índio, mesmo que não haja índio nenhum em volta, fiscais para detectar quilombolas, o Ministério Público da União, os dos estados, procuradores-gerais e não gerais — arre... Será que ficou faltando alguma coisa?”

O ministro Borges foi enumerando todos os fatores que o próprio poder público põe em ação para garantir que não se faça nada, seja lá o que for, em qualquer área em que houver presença do Estado. Em que lugar deste planeta seria possível construir uma obra pública em tais condições?

A obra em questão era a Ferrovia Transnordestina, uma história apavorante de incompetência do governo como executor de qualquer tarefa — mesmo uma mísera linha de trem, coisa que já se faz no mundo há 200 anos.

Com 1 700 quilômetros de extensão, foi iniciada oito anos atrás, em 2006, e já deveria estar funcionando há quatro se tivesse sido inaugurada em 2010, como o ex-presidente ­Lula e sua candidata e sucessora, Dilma Rousseff, prometeram nessas cerimônias filmadas para aparecer em telejornais — onde fingem estar inaugurando alguma coisa, quando não há inauguração nenhuma.

Deveria custar menos de 2 bilhões de dólares; já passou dos 3 bi, fácil, e só Deus sabe quanto custará até ficar pronta — ou simplesmente ser abandonada, como tantas outras.

A promessa do momento é entregar a Transnordestina em 2016. Vai ser difícil. Enquanto o doutor fulano conversa com o doutor beltrano, ladrões aparecem à noite para roubar trilhos já colocados. Quer dizer: se está demorando colocar 1 metro de trilho hoje, imagine quanto mais vai demorar se tiverem de botar os trilhos uma segunda vez.

Essa Transnordestina é uma humilhação para Lula, Dilma e quem mais teve alguma coisa a ver com ela. Na propaganda que o governo soca na população, é mais uma realização do “projeto PT”. Basta passar na TV um filminho pago com dinheiro público mostrando algum trecho já feito e de onde ainda não tenham roubado os trilhos. Quem vai duvidar? Só mesmo a mídia de direita a serviço das elites brancas.

Os canais de concreto que deveriam estar conduzindo águas do Rio São Francisco para “matar a sede do Nordeste”, como anunciou Lula, não renderam até agora uma caneca sequer de H2O — quem acreditasse que a transposição ficaria pronta em 2010, como prometido, estaria há quatro anos sem beber água.

As obras, em grande parte abandonadas, são hoje apenas um espantoso amontoado de ruínas, possivelmente as maiores em exposição no país. O metrô de Salvador vem sendo construído desde 1997, sem ter transportado um único passageiro até hoje. A promessa é que alguma coisa ainda possa ser entregue lá para o fim deste ano.

A torre de TV digital de Brasília, projetada — é claro — por Niemeyer e chamada de “Flor do Cerrado”, custou 30 milhões de dólares e foi inaugurada em 2012, mas não emitiu nem um sinal eletromagnético nestes dois anos. Faltam geradores, cabos e outros itens rudimentares para que funcione e venha a ter alguma utilidade.

A má notícia? A culpa disso tudo está longe de ser só de Lula, Dilma e PT. É uma doença que começou antes. Eles levaram a administração brasileira ao atual estado de coma — mas ainda há um bom espaço para piorar.

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