Área desmatada na Amazônia: ritmo de perda aumenta de forma acentuada. (Luoman/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 15 de agosto de 2019 às 05h50.
Última atualização em 15 de agosto de 2019 às 10h40.
“Cerca de 150 homens com 80 motosserras derrubaram freneticamente árvores com mais de 20 metros de altura. A corrida para pôr abaixo uma área de cerca de 5.000 hectares antes da temporada de chuvas, em setembro, durou meses. Tudo aconteceu à luz do dia, para quem quisesse ver. No começo de agosto, botaram fogo em tudo. Foi assustador.” O relato é do pecuarista mineiro Mauro Lúcio de Castro Costa, que há mais de 30 anos vive no Pará e ainda se choca com a voracidade do desmatamento.
A derrubada que Costa testemunhou ocorreu em São Félix do Xingu, um dos municípios com maior perda vegetal no país. Na cidade, dizem que o proprietário da terra devastada é de Redenção, cidade a 400 quilômetros dali. O certo é que cerca de 50 quilômetros quadrados de floresta desapareceram e engrossarão as estatísticas de degradação da floresta no Brasil.
O cenário descrito por Costa é um fragmento da realidade que tem colocado o Brasil na posição de uma espécie de pária num debate público com proporções globais. O estopim foram os alertas gerados pelo renomado Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, acusando uma alta expressiva no conjunto de novos focos de desmatamento. Apenas as áreas detectadas em junho e julho somam mais de 6.000 quilômetros quadrados de derrubada de mata, o equivalente a quatro vezes o município de São Paulo.
A polêmica cresceu diante da reação do presidente Jair Bolsonaro, com declarações como a de que “maus brasileiros” usavam “números mentirosos contra a Amazônia”. Na confusão, pela primeira vez um diretor do Inpe, órgão criado em 1961 e vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, foi demitido antes do fim do mandato de quatro anos. Ricardo Galvão estava havia dois anos no posto.
A postura de Bolsonaro gerou um repúdio internacional. A revista britânica The Economist estampou na capa a manchete Deathwatch for the Amazon, algo como “Vigília da morte para a Amazônia”. A publicação rotulou Bolsonaro como “o chefe de Estado mais perigoso para o meio ambiente”. O jornal americano The New York Times e o britânico The Guardian também publicaram editoriais com duras críticas.
Para além do tiroteio verbal, já há prejuízos concretos. No início de agosto, o governo alemão suspendeu um investimento de 155 milhões de reais em projetos de proteção florestal na região amazônica. Em meio a uma das maiores crises econômicas e fiscais do país, a resposta de Bolsonaro foi que “não precisamos desse dinheiro”. Em julho, a Alemanha bloqueara uma doação de 151 milhões de reais ao Fundo Amazônia, criado em 2008 para ajudar a frear a devastação por meio da junção de recursos vindos de países desenvolvidos.
No total, 103 projetos já receberam o equivalente a 1,8 bilhão de reais do fundo. A Alemanha é o segundo maior doador, contribuindo com 5,6% dos 3,4 bilhões de reais já arrecadados. A Noruega é a principal mantenedora. Em maio, o governo Bolsonaro sinalizou interesse em usar o fundo para indenizar donos de propriedades privadas em áreas de conservação, algo que foi confirmado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Procurada por EXAME, a embaixada da Noruega afirmou que “continua seu diálogo sobre a governança e a eficiência do Fundo Amazônia com representantes do governo federal brasileiro. Atualmente, estamos no aguardo de uma proposta do ministro Salles”.
É curioso notar que boa parte da polêmica surgiu do que é um ponto consensual. Governo, ambientalistas, especialistas brasileiros e estrangeiros sabem que os dados gerados pelo sistema de alertas do Inpe, o Deter, não devem ser usados para comparações mês a mês. Isso porque os meses de detecção não correspondem, necessariamente, aos períodos de ação dos desmatadores.
Existe a possibilidade, por exemplo, de uma nuvem ter passado sobre aquela área no mês anterior e impedido a detecção. Com uma margem de erro de 12%, a finalidade do sistema é outra. Implementado em 2003, ele orienta ações de combate à destruição implementadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
O início de operação do Deter coincide com uma queda notável nas estatísticas de desmatamento: se em 2004 a área desflorestada foi estimada em 27.000 quilômetros quadrados, em 2012 o número caiu para cerca de 4.500 quilômetros quadrados. Foi uma redução de 83%, um ganho histórico que o país pode colocar a perder. “O Brasil é respeitadíssimo, no mundo inteiro, na área de observação da Terra”, diz Gilberto Câmara, diretor do instituto na época da implementação dos sistemas de monitoramento e atualmente à frente do Group on Earth Observations, rede global de organizações para gestão de informações sobre a Terra, com sede na Suíça. “Revistas científicas de alto nível usam os dados do Inpe, e isso não veio de mão beijada, e não ocorre apenas porque o satélite não mente. São mais de 30 anos que construíram uma credibilidade internacional.”
Há também outro consenso: o sistema tem sido eficiente em apontar tendências. Historicamente, o cálculo anual divulgado pelo Inpe, que, além das imagens de satélite, usa outros instrumentos de averiguação, como radares e trabalho em campo, costuma indicar uma taxa 20% superior ao registrado pelo sistema de coleta diária. A escalada da devastação, segundo mais de 30 especialistas procurados por EXAME, é inequívoca.
Na medida mais conservadora, de agosto de 2018 a julho de 2019, a destruição da floresta avançou 17% em comparação com o mesmo período do ano anterior, apontam dados do sistema de alertas SAD, do Imazon, instituto de pesquisas fundado em Belém em 1990 e que realiza estudos periódicos sobre o tema. É um aumento que se soma a um acréscimo de 39%, que já foi registrado no ano passado em relação a 2017. “Não há nenhuma dúvida de que a perda aumentou, e aumentou muito”, diz Tasso Azevedo, coordenador da iniciativa MapBiomas, que mapeia a cobertura e o uso do solo brasileiro, e ex-diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro. “O aumento vem desde 2012 e se acentuou de 2015 para cá. Nesse meio tempo não houve nenhum movimento eficiente de ONGs ou ambientalistas para dar dinamismo econômico aos mais de 20 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia”, afirma o ministro Ricardo Salles (veja entrevista na pág. 28).
Ambientalistas projetam que o desmatamento tem um ponto de ruptura, limite a partir do qual o clima e a vegetação da região mudariam de forma irreversível. O ponto de inflexão seria atingido se o desmatamento alcançasse de 20% a 25% da extensão original da floresta.
Atualmente, a perda está na casa dos 15%. “Com as taxas atuais de desmatamento, daqui a 30 anos parte da floresta poderia virar uma savana empobrecida”, afirma Carlos Nobre, um dos maiores especialistas em mudanças climáticas do Brasil. Nobre é o autor de um estudo a respeito, ao lado do cientista americano Thomas Lovejoy, outra referência mundial no tema. Já há impactos no clima local. A duração da estação seca aumentou, em média, seis dias por década nos últimos 30 anos. No longo prazo, a mudança pode tornar inviável o agronegócio na região e em outras partes do país, cujo regime de chuvas sofre influência da Amazônia.
Além do prejuízo concreto e potencialmente irreversível, há uma perda intangível tão ou mais difícil de recuperar: a reputacional. O Brasil reúne ativos que colocam o país numa posição de vantagem no tema ambiental. Temos 12% das florestas do mundo. São quase 5 milhões de quilômetros quadrados de cobertura florestal, uma área maior do que a da União Europeia.
Apenas a Rússia, com mais de 8 milhões de quilômetros quadrados de florestas, 20% do total mundial, supera o Brasil nesse quesito. Mais do que pela vastidão, a Amazônia é um ativo inestimável por concentrar a maior biodiversidade do planeta. Um estudo realizado neste ano pela incensada Singularity University, escola de negócios baseada no Vale do Silício, reconhece no Brasil todos os elementos para liderar as discussões globais nessa frente.
As condições estão postas para que o país use esses atributos para exercer o que o cientista político americano Joseph Nye, professor na Universidade Harvard, chama de soft power. Enquanto o “poder duro” reside na capacidade de coagir, e se origina na vantagem militar ou econômica, o poder brando surge da cultura e das políticas. O Brasil reúne elementos favoráveis, como a miscigenação e o histórico de convivência pacífica com o mundo, pelo menos nos últimos 150 anos.
Por algum tempo, o país caminhou no sentido de capturar esse potencial ao conquistar a simpatia mundial na seara do meio ambiente. Após anos de uma estratégia de desenvolvimento a todo o custo empreendida pelos militares, o discurso mudou e a diplomacia ambiental brasileira tomou forma nos anos 90, após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro.
A imagem consolidou-se com os resultados de políticas para a redução de desmatamento ao longo dos anos 2000. Deixar isso de lado pode abalar o bolso das empresas e os investimentos no Brasil. “Um retrocesso nessa área pode até inviabilizar investimentos de multinacionais, que costumam ser sensíveis a esses temas”, diz o embaixador Paulo Roberto de Almeida, que até março ocupava o cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores.
O tema tem sido central na avaliação da reputação das nações. Um levantamento realizado pela consultoria americana BCG e obtido com exclusividade por EXAME evidencia que, nessa questão, a imagem do Brasil está piorando.
A consultoria faz a avaliação dos países em dez dimensões, sendo o meio ambiente um deles. Até 2016, o país teve um desempenho ascendente. Desde então teve uma trajetória errática. Neste ano, a queda de sua nota nesse quesito foi de 9% — de 2014 a 2019, teve uma redução acumulada de 5%.
Enquanto isso, países europeus com histórico de desmatamento recuperam suas florestas. A França, segunda colocada no levantamento de 2019, atrás da Islândia, teve uma evolução na nota de 12% nos últimos cinco anos. A Alemanha obteve uma avaliação 7% melhor no período.
O peso da questão ambiental também aparece em estudo da consultoria americana FutureBrand, que avalia a imagem de países. Neste ano, a consultoria destacou três dimensões mais relevantes na avaliação de uma nação: uma delas é a política ambiental, ao lado da qualidade de vida e dos produtos e serviços produzidos localmente.
Quanto à liberdade política e ao compromisso com o meio ambiente, o Brasil é bem avaliado por apenas 15% dos entrevistados. Em países como a Noruega a taxa é de 67%. Caindo quatro posições no ranking geral, o Brasil ocupa o 47o lugar, bem abaixo da média dos dez primeiros nas seis dimensões avaliadas. Ao compararmos com a média global, o país é superior em só dois critérios: turismo e patrimônio e cultura. O estudo mostra, porém, que é possível reverter a imagem negativa. O Japão, que perdera pontos após o acidente nuclear em Fukushima em 2011, ganhou 14 pontos percentuais na seara ambiental neste ano em relação ao ano anterior. Recentemente, o governo japonês anunciou a meta de cortar as emissões de carbono em 26% até 2030.
Ainda que pese o fato de 59% do território brasileiro estar coberto por florestas, o país tem se afastado da rota do bom protagonismo nessa seara no mundo. O Brasil figura no topo da lista das nações que mais desvastaram no mundo de 2010 a 2015, segundo o levantamento Global Forest Resources Assessments, produzido a cada cinco anos pela FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
Nesse período, foram perdidos aqui 9.840 quilômetros quadrados de florestas, ou 0,2% do total. Pode parecer ínfimo diante da imensidão remanescente. Mais preocupante que o dado é a tendência. Desde 1990, o Brasil perde cobertura florestal em todas as décadas. É o oposto do que se vê em nações desenvolvidas, como Austrália, França e Estados Unidos, que historicamente aniquilaram sua vegetação nativa e passaram a recuperar áreas florestais recentemente.
É interessante notar que não é necessário abrir mão de desenvolvimento econômico, de um lado, para bancar a floresta em pé, de outro. Dados mostram que o desmatamento não está nas grandes propriedades: 99% dos grandes produtores não desmatam ilegalmente. O desmatamento na Amazônia é majoritariamente ilegal. Segundo dados do Mapbiomas, 40% da retirada de floresta nativa ocorre em áreas não autorizadas, como Unidades de Conservação, terras indígenas e reservas legais. Outros 55% da derrubada foram feitos sem obtenção prévia de autorização, portanto também classificada como ilegal.
O primeiro passo dos criminosos é a grilagem — a ocupação irregular e fraudulenta de terras —, que gera um mercado especulativo nas áreas passíveis de produção agrícola. O segundo é uma consequência da grilagem: a conversão das terras em pasto, com queimada, acomodação de sementes e preparo do solo. Em 2017, a reportagem de EXAME percorreu 1 418 quilômetros dentro da Floresta Amazônica e constatou que o avanço da devastação é um retrato do Brasil que deu errado: afrouxamento das leis, impunidade e ausência de políticas públicas. Problemas graves que, infelizmente, se acentuam ano a ano. De janeiro a abril de 2018, o Ibama fez 56 operações de fiscalização ambiental na Amazônia. No mesmo período deste ano foram apenas 17.
Os dados, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, foram repassados a EXAME pelo Observatório do Clima, coalizão que reúne diversas organizações de defesa do meio ambiente. A falta de comando no órgão é outro problema. Das 27 superintendências do Ibama, 19 estão vagas. Entre os estados da Amazônia Legal, apenas o Mato Grosso conta com um superintendente. Procurado, o Ibama não retornou ao pedido de entrevista. “Houve um desmanche da estrutura de combate ao desmatamento, e isso está incentivando a atuação de grupos criminosos”, diz Carlos Rittl, secretário-geral do Observatório do Clima. “Não são os fazendeiros que destroem a floresta, é o crime organizado.”
Segundo Carlos Souza, do Imazon, há abertura de novas frentes de desflorestamento, em especial no sul do Amazonas, estado com o menor índice de degradação da floresta. Nessa região, os últimos dias do mês de julho foram particularmente cruéis com os moradores de Apuí, cidade de 21.000 habitantes a 408 quilômetros de Manaus. Em alguns dias, eles nem enxergaram a luz do sol. E o problema não foi o tempo nublado. Desde 27 de julho, o município vem sofrendo com severas queimadas. Segundo o governo do Amazonas, houve quase 700 registros de focos de incêndio em Apuí, o maior número registrado em todo o país. O problema se mostrou tão grave que foi decretada situação de emergência pelo vice-governador Carlos Almeida Filho, que ocupava o cargo de governador interinamente. “Os próprios moradores da região afirmaram que não se observava esse tipo de situação havia muitos anos”, diz Ricardo Mello, gerente do Programa Amazônia da ONG WWF-Brasil.
Não apenas terras desocupadas vêm sendo invadidas mas também áreas exploradas regularmente pela iniciativa privada. A Amata, empresa de manejo florestal que tem entre os donos Guilherme Leal, um dos sócios da fabricante de cosméticos Natura, tem sido alvo de ladrões de madeira em uma área de 46 000 hectares na região do Jamari, em Rondônia.
A empresa ganhou uma licitação para a exploração da terra em 2008 e, desde então, utiliza um modelo que permite o aproveitamento da floresta com técnicas de impacto ambiental mínimo. Em 2016, a área registrou seis invasões de madeireiros.
No ano passado, foram 29. “Registramos a ocorrência policial, mas o poder público não tem estrutura suficiente para fazer os atendimentos”, diz Ana Leite Bastos, presidente da Amata. Outra área recentemente invadida foi a reserva legal de uma das fazendas no Pará da Agropalma, maior fabricante de óleo de palma do país. Madeireiros ilegais entraram três vezes na floresta da empresa e derrubaram árvores como o angelim-vermelho, que chega a ter 60 metros de altura. “Havia anos não tínhamos invasões”, disse Marcello Brito, presidente da Agropalma e, desde janeiro, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio.
As reservas indígenas também têm sido alvo frequente. Imagens de satélites da Terra Indígena Kayapó, no Pará, mostram que, entre janeiro e julho, houve uma forte expansão de garimpo ilegal. Segundo a cooperativa de organizações não governamentais Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada, foram identificados 453 garimpos ilegais na região da Amazônia brasileira em dezembro. “Essas explorações trazem uma série de consequências danosas ao meio ambiente”, afirma Wilson Brumer, presidente do conselho diretor do Instituto Brasileiro de Mineração. O mapeamento da cooperativa Rede Amazônica, por exemplo, apontou que 30 rios foram afetados por resquícios de metais tóxicos, como o mercúrio.
Não ajuda nada a conter a expansão da atividade criminosa a alusão do governo Bolsonaro a liberar terras indígenas para mineração, cuja exploração não chega a ser proibida, mas requer autorização do Legislativo. Interesse em permitir essa exploração não falta. Dados de abril do Instituto Socioambiental da Amazônia apontam 4 332 processos de pedidos de mineração em 214 terras indígenas.
Os processos incidem sobre 25% das áreas indígenas da Amazônia Legal. A campeã de requerimentos é a Reserva Ianomâmi, localizada no Amazonas e em Roraima, na qual os 536 pedidos somam 9,6 milhões de hectares, o equivalente a 42% das terras. A proposta de liberação surgiu após a polêmica envolvendo os dados de aumento do desmatamento, e não foi bem recebida. Depois de uma pesquisa realizada pelo instituto Datafolha mostrando que 86% dos brasileiros são contra a mineração em terras indígenas, o presidente recuou. Colocou como opção uma consulta pública sobre o tema.
O tema esfriou, mas não foi esquecido. Para o secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia, Alexandre Vidigal, é necessário um debate sobre o assunto sem “ideologia à mesa”. “Temos um patrimônio mineral reconhecido por nossos concorrentes, mas a mineração só representa 4% de nosso PIB, enquanto nos países desenvolvidos chega a 9%”, diz Vidigal.
Na visão do ministério, é necessário fazer um estudo para identificar os minerais de cada região e qual vale a pena ser explorado. “A questão não tem de ser se é terra indígena ou não, mas qual mineral se quer aproveitar para suprir a demanda global.”
Há outras propostas no Congresso que trazem riscos. Uma delas propõe maior flexibilização nos licenciamentos ambientais, de autoria do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), e deve ir a plenário até o fim de agosto. O principal ponto é o que passaria aos estados a decisão de quais projetos precisam ou não de licença ambiental. A ideia é liberar atividades consideradas menos impactantes, como a agropecuária e as melhorias em obras de infraestrutura.
Hoje, para uma obra ser liberada, conselhos ambientais dos estados e da União precisam dar o aval. Para o deputado Kataguiri, as novas regras ajudarão a dar mais celeridade aos processos de licenciamento ambiental. Segundo a proposta, os órgãos estaduais de fiscalização terão até 90 dias para enviar um parecer para a decisão de seu respectivo governador. “Com essa mudança na legislação, o governador vai assumir o risco político de aprovar.
Se acontecer algum problema, ele poderá ser responsabilizado pela população”, diz Kataguiri. A versão final do texto já está nas mãos do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e há a expectativa de que já existam votos suficientes para a aprovação.
Outra proposta, esta bem mais controversa, de autoria do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), corre no Senado. Em abril, o primogênito do presidente apresentou um projeto de lei para eliminar do Código Florestal a reserva obrigatória em propriedades rurais. No texto, o senador classifica a questão como um “entrave”. Atualmente, os donos de terras precisam manter parte das propriedades com vegetação nativa, parcela que chega a 80% na Amazônia Legal.
Os efeitos mais imediatos de uma política antiambientalista recaem sobre um único destinatário: o agronegócio. Responsável por 100 bilhões de dólares em exportações em 2018, o setor teme as repercussões da polêmica.
Entidades que monitoram a percepção do agronegócio brasileiro registraram mais de 10.000 postagens negativas sobre o setor no Twitter desde janeiro, o que gerou 144 milhões de interações nas redes sociais. “O desmatamento ilegal é causado por diversas formas de criminalidade, mas ele cola diretamente no agronegócio”, diz Brito, da Associação Brasileira do Agronegócio. Estudos da Embrapa e do Inpe mostram que apenas 14% da área desmatada desde 1988 é destinada à agricultura e à pastagem de alta produtividade. O pasto de baixa produtividade ocupa 63% do espaço, enquanto outros 23% são áreas abandonadas em fase de regeneração. Os grandes produtores já aprenderam que ter a produção associada ao desmatamento custa caro.
Os produtores de soja conhecem bem essa história. Em 2006, um relatório da ONG Greenpeace denunciava que o mundo estava comendo frangos alimentados com grãos que derrubavam a Floresta Amazônica. E, de fato, 30% da expansão das lavouras de soja na região vinha de áreas recém-desflorestadas naquela época.
A reação dos consumidores foi imediata, com protestos na Europa. Ali nasceu a Moratória da Soja, um acordo que suspendeu a compra de grãos produzidos em novas áreas de desmatamento. A ação prevista para durar dois anos virou política permanente — e reconhecida em todo o mundo. Hoje apenas 1,4% da área total de soja cultivada no bioma Amazônia vem de áreas desmatadas.
A área cultivada mais do que quadruplicou nos 13 anos de vigor da moratória, com a conversão de pastagens degradadas em novas áreas para a agricultura. “As empresas do agronegócio de fato criaram soluções para dissociar a produção do desmatamento. Mas o problema não deixou de existir. Afinal, existem 12 milhões de pessoas que vivem na floresta e precisam de alternativas de renda e trabalho”, diz Mariano Cenamo, diretor do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia.
Desenvolver a geração de renda local é fundamental para manter a floresta em pé. “O maior potencial da Amazônia é a biodiversidade, não é a pecuária nem a agricultura tradicional, tampouco o minério”, afirma o especialista Carlos Nobre. Nobre cita o exemplo do açaí, que já gera mais de 1 bilhão de dólares para a economia da região por ano. Mais de 250.000 toneladas de polpa de açaí são produzidas por ano, beneficiando cerca de 300.000 pessoas, principalmente no estado do Pará.
O desmatamento da Amazônia destinado à produção agropecuária extensiva gerou, em média, 453 milhões de reais por ano em valor bruto de produção, de 2007 a 2016, menos da metade da renda gerada apenas pelo açaí. A contribuição adicional de cada ano de desmatamento para a economia brasileira foi de apenas 0,013% do PIB. Os dados constam no estudo Desmatamento zero na Amazônia: como e por que chegar lá, realizado pelo Grupo de Trabalho pelo Desmatamento Zero, composto de especialistas de organizações de defesa do meio ambiente, como Greenpeace, Imaflora, Imazon e WWF.
Outro artifício para remunerar a floresta intacta, mas que ainda não tem uma regulamentação nacional para ser aplicado, é o REDD+, ou redução das emissões de gases de efeito estufa por desmatamento e degradação florestal, da sigla em inglês. A ideia é gerar créditos de carbono pela manutenção e recuperação de florestas em regiões sob pressão de derrubada. Os exemplos ainda se resumem a iniciativas pontuais.
E sofrem com as complexidades locais. Os indígenas da etnia suruí paiter, em Rondônia, conseguiram obter 3 milhões de reais em 2012. Mas, com a volta da exploração ilegal da madeira no local, não foi possível gerar mais créditos.
Inibir o crime — não é esta afinal uma das bandeiras do governo Bolsonaro? —, desenvolver condições de conciliar a geração de renda com a manutenção da floresta nativa, explorar a biodiversidade. Diante de tantas medidas a tomar no sentido da preservação, há a percepção de que o governo persegue os inimigos errados. Trata-se de uma escolha a ser feita sob a pressão do tempo — e com consequências implacáveis.
Com reportagem de Vanessa Barbosa e Maria Fernanda Ribeiro
Para o cientista político Ian Bremmer, o aumento do desmatamento da Amazônia no Brasil trará impactos no longo prazo | Fabiane Stefano
O cientista político americano Ian Bremmer, fundador e presidente da consultoria Eurasia, tem alertado para o pouco espaço que a agenda ambiental tem conquistado nas maiores economias do mundo. “A realidade é que lidar de forma bem-sucedida com os efeitos da mudança climática exige dinheiro dos cofres públicos e leva muito tempo para os benefícios surgirem”, diz ele. Apenas países pequenos e em situação ambientalmente crítica têm alçado para valer essa bandeira. Para Bremmer, no entanto, o que o Brasil tem feito na área ambiental é um desastre contra sua própria população.
Leia trechos da entrevista que ele concedeu a EXAME.
O desmatamento na Amazônia brasileira está subindo. Quais são os possíveis impactos para o país?
No curto prazo, a agenda pró-reforma impulsionará o crescimento da economia. Mas, olhando para o longo prazo, esse é um desastre singular para o povo brasileiro.
A Amazônia é um ecossistema crítico para o Brasil sustentar sua população e está sendo destruída. É incrivelmente míope e um horror assistir ao que está sendo perpetrado contra o povo brasileiro.
Mas, sem uma verdadeira liderança global no mundo de hoje e com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, alinhado ao líder do Brasil, há muito pouca reação internacional que faça diferença.
O Brasil pode acabar se tornando um pária na área ambiental?
Não no curto prazo por aqueles que importam para a economia brasileira. É provável que grupos da sociedade civil continuem alertando para o que ocorre na Amazônia, mas é improvável que detenham investimentos estrangeiros na economia brasileira.
O presidente Jair Bolsonaro já fez várias declarações polêmicas sobre o meio ambiente. Isso pode afetar a reputação do Brasil?
O impacto na reputação do país hoje é pequeno, porque há um vácuo de poder na política internacional e o ímpeto político em grupos tradicionais, como o G20, é determinado por líderes populistas ou nacionalistas. Mas, no longo prazo, muitas coisas vão ter de mudar.
A revista The Economist chamou Bolsonaro de “o chefe de Estado mais perigoso em termos ambientais do mundo”. Concorda com isso?
Absolutamente, não. O mais perigoso é o presidente chinês Xi Jinping, porque seu país é o que mais importa quando se trata do aquecimento global. A China gera três vezes mais emissões de carbono do que os Estados Unidos e elas crescem de forma constante.
O presidente americano é o segundo. Trump é, na melhor das hipóteses, um cético sobre o clima. Na pior, um negacionista ocasional. Ele terá apenas um ou, no máximo, dois mandatos e as tomadas de decisão nos Estados Unidos são menos centralizadas nas mãos do presidente. E a população americana começa a se preocupar mais com as ameaças das mudanças climáticas.
Políticos populistas são muitas vezes hostis à política antimudança climática. Por quê?
A realidade é que lidar de forma bem-sucedida com os efeitos da mudança climática exige dinheiro dos cofres públicos e leva muito tempo para os benefícios surgirem. Nenhum desses fatores atrai os eleitores, que querem ver sua vida sendo melhorada aqui e agora.
Portanto, o resultado final são partidos populistas que usam esse compreensível medo de que as políticas climáticas reduzam as oportunidades econômicas para o próprio ganho político.
É legítimo que países imponham sanções a outras nações que não se comportam bem na área ambiental?
Sanções são decisões que impõem o poder de um país sobre outro, desafiando noções de soberania. É legítimo os Estados Unidos deixarem o acordo nuclear com o Irã, impondo sanções econômicas ao país? Os Estados Unidos dizem que sim. O Irã diz que não.
A governança internacional é muito fraca nessas questões. Portanto, é menos uma questão de legitimidade e mais de capacidade. Outros países podem impor “taxas” de carbono nas importações de nações que estejam fazendo muito pouco em proteção ambiental.
Qualquer movimento desse tipo seria enfrentado com uma resistência feroz, mas é possível que os países tentem “punir” uns aos outros dessa maneira.
Para além do discurso sustentável, há países que realmente estão adotando uma estratégia ambiental?
O interessante é que alguém como o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, é visto como um dos melhores líderes mundiais quando se trata de questões climáticas, mas ele também tem sido um grande defensor de novos oleodutos e da expansão da economia canadense.
Os únicos países que realmente defendem o meio ambiente são os pequenos que precisam dele para sua economia, como a Costa Rica, ou aqueles ameaçados pelas mudanças climáticas, como as Maldivas. Infelizmente, o resto do mundo ainda não chegou lá.