Revista Exame

Como será a volta ao escritório (ainda em 2020) sem vacina?

A maioria dos executivos brasileiros deve ampliar o trabalho presencial até o fim do ano, mas muitos negócios apostam em esquemas flexíveis

Escritório: apesar das incertezas aqui e ali, muitas empresas estão bolando esquemas para autorizar a volta (Germano Lüders/Exame)

Escritório: apesar das incertezas aqui e ali, muitas empresas estão bolando esquemas para autorizar a volta (Germano Lüders/Exame)

Luísa Granato

Luísa Granato

Publicado em 10 de setembro de 2020 às 05h30.

Última atualização em 10 de setembro de 2020 às 10h21.

Em meio à pandemia, os 93 funcionários da Evoltz, uma operadora de linhas de transmissão de energia sediada no Rio de Janeiro, passaram os últimos meses ouvindo o mantra de que o “novo normal” das empresas significaria trabalhar num cantinho de casa, de bermuda e chinelo, por tempo indeterminado. Tudo isso para minimizar ao máximo as aglomerações capazes de espalhar o novo coronavírus com mais força. O passar do tempo, contudo, mostrou que as coisas não são bem assim.

No início de setembro, quase 90% dos funcionários voltaram a bater cartão nos dois escritórios da empresa, no Rio e em Brasília. O motivo: a conexão entre os funcionários estava perdendo a liga em meio à infinidade de percalços típicos da rotina de trabalho à distância, como os horários descasados entre chefia e funcionários, as quedas constantes de internet e o ritmo arrastado típico das reuniões por videoconferência. “É um desafio manter a cultura do negócio com todo mundo em casa”, diz Luciana Caldas, gerente de recursos humanos da Evoltz.

RaiaDrogasil: A volta ao escritório de pais e mães entre os 42.000 funcionários é opcional enquanto as escolas ainda estão fechadas — e muitas famílias não têm quem cuide das crianças (Germano Lüders/Exame)

A volta dos funcionários da Evoltz ao escritório está se tornando uma história cada vez mais comum em empresas Brasil afora. É, claro, uma decisão que vem tirando o sono de muito gestor por aí. Como garantir um mínimo de segurança a funcionários sentados a uma baia de distância entre si contra um vírus ainda sem tratamento decente nem uma vacina aprovada pela ciência?

Apesar das incertezas aqui e ali, muitas empresas estão bolando esquemas para autorizar a volta. Segundo uma pesquisa recente da consultoria KPMG com 1.124 executivos de todas as regiões brasileiras, 51% deles planejam chamar uma parte de seus funcionários de volta ao batente presencial até o fim do ano. Desse total, quase um terço vai fazer isso ainda em setembro.

Somente 26% pretendem deixar a decisão para 2021. “As empresas estão fazendo análises de tempos em tempos, e com cuidado, para definir esse prazo”, diz André Coutinho, sócio da KPMG, responsável pela pesquisa. “Todas as variáveis precisam ser consideradas, não só as financeiras mas também as sanitárias.”

Por causa dos riscos da decisão de convocar o pessoal para voltar ao escritório, muitas empresas estão virando verdadeiros bunkers contra o vírus. Em boa medida as experiências brasileiras copiam o que deu certo na China, primeiro epicentro da pandemia e até agora um dos poucos lugares no mundo minimamente bem-sucedidos no controle do vírus.

Em escritórios de unicórnios chineses, como o varejista Alibaba, tornou-se frequente medir a temperatura dos funcionários no trabalho. Na Evoltz, o jeito foi investir 2 milhões de reais na reforma das duas unidades da empresa.

As baias agora ficam mais distantes entre si, como recomendam epidemiologistas. Entre uma posição de trabalho e outra, barreiras de acrílico evitam que partículas de saliva de um funcionário cheguem perto do colega durante uma conversa — uma situação que já era desagradável e agora, além de tudo, é vetor de contágio do novo coronavírus.

Pelos corredores, cartazes lembram os funcionários sobre o uso obrigatório de máscaras. Sinais no chão mostram onde os funcionários podem sentar e as áreas que devem ser evitadas. Na portaria, os funcionários esticam o celular em direção à porta. Um aplicativo de reconhecimento facial faz as vezes do cartão de ponto.

A temperatura de todos é monitorada a rigor por uma técnica de enfermagem. Quem dependia de transporte público antes da pandemia pôde dar adeus à condução — vouchers de táxi estão liberados pela empresa pelos próximos dois meses. “O momento não é normal, mas nada substitui o olho no olho. É bom estar perto, apesar de não tão perto”, diz Caldas, da Evoltz.

TIM-TIM POR TIM-TIM

Por causa de toda a função envolvida na volta aos escritórios, as empresas estão indo aos poucos. Segundo a pesquisa da KPMG, a maioria dos negócios deve colocar menos da metade dos funcionários para trabalhar lado a lado num primeiro momento.

Na startup paulistana Loft, uma plataforma online para compra e venda de imóveis, a orientação é evitar muvucas. Em julho, apenas 10% dos 600 funcionários podiam ir ao escritório — em geral, só aqueles cujo ofício depende de uma interação mais próxima com clientes ou fornecedores e os que precisam do telefone e do Wi-Fi mais estável da empresa.

Agora, com a epidemia em curva descendente na capital paulista, o limite passou para 25%. Antes de sair de casa, contudo, o funcionário deve explicar a seu chefe, tim-tim por tim-tim, os motivos do deslocamento. “Funcionários que convivem com idosos e outros grupos com risco de desenvolver sintomas mais agudos da covid-19 são desaconselhados a colocar os pés na sede da empresa”, diz Renata Feijó, diretora da área de pessoas da Loft.

Do ponto de vista dos funcionários, a saudade do escritório ainda está longe de ser uma unanimidade — e a ânsia é maior em algumas carreiras do que em outras. Numa enquete recente da rede social LinkedIn com 2.500 internautas brasileiros, poucos demonstraram ânimo para voltar ao batente como antigamente.

Entre os mais ansiosos, como é o caso dos profissionais da construção civil e os da educação, os interessados mal chegam a 40% do total. Quase um terço daqueles que trabalham com tecnologia da informação, carreiras já acostumadas ao home office antes mesmo da crise sanitária, quer continuar a labuta em casa, de chinelão e bermuda.

“As empresas não vão conseguir virar a página da pandemia e simplesmente decretar o retorno ao modelo de antigamente”, diz Alexandre Fialho, diretor do Seer, um programa de formação de executivos da escola de negócios Saint Paul, em São Paulo.

(Arte/Exame)

Não é à toa que o movimento de retomada aos escritórios está sendo feito em paralelo a uma saraivada de anúncios de home office sem data para acabar em muitas empresas. Em gigantes de tecnologia, como Google e Facebook, a orientação global é estender o trabalho remoto até meados de julho de 2021 — quando, se tudo der certo, uma vacina estará disponível em larga escala.

No Brasil, a petroleira Petrobras anunciou na semana passada regras bem flexíveis sobre o local de trabalho dos empregados. Os 28.500 funcionários administrativos em escritórios espalhados pelo Brasil poderão escolher se querem ou não o home office.

A ideia é dar até três dias por semana fora do escritório. Só quem está envolvido na extração de petróleo vai ter o compromisso de bater o cartão todo dia. Numa pesquisa interna com 13.400 empregados, 82% optaram por esquemas para ficar em casa ao máximo. “Temos a regra de adotar o teletrabalho como prática oficial”, diz Cláudio Costa, gerente de recursos humanos da Petrobras.

DESAFIOS COMPLEXOS

Em negócios que conseguiram crescer na pandemia, a volta ao escritório esbarra em desafios complexos. O espaço comporta quem foi contratado na quarentena? E mais espinhoso ainda é o fato de que muitas empresas aproveitaram a normalização do trabalho remoto para sair contratando profissionais pelo interior do Brasil, onde o salário é mais baixo.

Agora, com a pressão para ir trabalhar no escritório, como remunerar o funcionário por gastos maiores com deslocamentos e alimentação em empresas sediadas em regiões com custo de vida mais alto? Esses foram dilemas com que a startup de investimentos Vitreo, de São Paulo, precisou lidar. Na pandemia, a empresa triplicou de tamanho: hoje são 115 funcionários, boa parte deles contratada em estados como Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, onde a média salarial é mais baixa do que em São Paulo.

“Decidimos manter as contratações com piso salarial da matriz, em São Paulo”, diz Dani Nascimento, gerente de recursos humanos da Vitreo. Por ora, os novatos vão à sede só para conversas estratégicas. Pedir a transferência dos novos contratados para São Paulo está fora de cogitação. “O escritório teria de ser ampliado para acomodar todo mundo”, diz Nascimento.

VITREO: na pandemia, a startup paulistana de investimentos triplicou de tamanho: hoje são 115 funcionários, boa parte deles contratada em estados como Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, onde a média salarial é mais baixa do que em São Paulo. “Decidimos manter as contratações com piso salarial da matriz, em São Paulo”, diz a gerente de RH Dani Nascimento (Leandro Fonseca/Exame)

Se em algumas empresas pode faltar espaço na hora de o pessoal trabalhar lado a lado de novo, nos escritórios compartilhados, os chamados coworkings, pode sobrar espaço. Convencer as empresas a autorizar a convivência de seus funcionários com os de outros negócios não tem sido tarefa fácil. Um sinal disso são os desafios do WeWork, a estrela desse setor, cujo controle frouxo das despesas já vinha sendo alvo de críticas dos investidores.

No início da pandemia, unidades da empresa nos Estados Unidos e na China chegaram a fechar por medo do contágio. Por isso, a avaliação de mercado da empresa é hoje 89% abaixo do patamar de 2019. A empresa diz seguir protocolos sanitários de diversas fontes, como da Organização Mundial da Saúde, que preveem maior distanciamento dos assentos e higienização frequente dos espaços.

No Brasil, mesmo na pandemia, a empresa abriu operações em seis prédios em grandes centros, como Rio e São Paulo. Apesar das apostas na retomada do setor, quem vive de escritórios compartilhados sofreu com a crise de confiança. Segundo a Ancev, associação de empresários do setor, a demanda caiu 40% na pandemia.

A queda só não foi maior porque muitos escritórios criaram pacotes de serviços virtuais, como o de telefonista para organizar a comunicação das startups com clientes e fornecedores. Para convencer o pessoal a voltar aos escritórios, o jeito foi reforçar medidas de segurança, como redução da capacidade das salas e respeito a protocolos como máscara e álcool em gel em todo canto.

A esperança de quem vive desse setor é que os clientes sejam atraídos pela flexibilidade do modelo. “É uma solução sem amarras: em geral, os contratos podem ser cancelados com uma antecedência de apenas 30 dias. Ninguém hoje quer ficar preso a um modelo antigo de trabalho”, diz Ismar Marquardt, vice-presidente da Ancev.

(Arte/Exame)

A volta aos escritórios, se feita com os devidos cuidados, pode contornar o fato de profissionais com ambiente doméstico mais conturbado — por exemplo, por filhos pequenos — terem mais dificuldade de manter a produtividade do que colegas moradores de locais com mais condições para a concentração. Ao que tudo indica, a pandemia acentuou a desigualdade de gênero no mercado de trabalho.

Numa pesquisa da consultoria de RH BoardList com 1.000 americanos, quase seis em cada dez homens revelaram estar confiantes com a progressão na carreira, mesmo com o home office. Entre as mulheres, só 30% tiveram essa opinião.

“Por um lado, a presença dos homens em casa pode fazer com que eles percebam o peso das tarefas domésticas e aumentem sua empatia com as esposas e funcionárias”, diz Tatiana Iwai, professora de comportamento organizacional na escola de negócios Insper, de São Paulo. “Por outro lado, a percepção sobre o tempo consumido pelas tarefas domésticas pode gerar dúvidas sobre o compromisso possível da mulher com seu trabalho, reforçando a visão de que as mulheres são menos capazes de fazer entregas.”

No Brasil, a discussão de discriminação no ambiente de trabalho em meio à volta aos escritórios passa por um problema adicional: onde deixar as crianças, uma vez que a grande maioria das escolas segue com as portas fechadas? Esse foi um dos maiores desafios para a retomada na RaiaDrogasil, rede de farmácias com 42.000 funcionários.

“Ficou como opcional. Procuramos dar suporte para o contexto individual, como mães e pais com filhos fora da escola, e oferecemos suporte emocional com teleterapia”, afirma Maria Susana de Souza, vice-presidente de gente e cultura da RaiaDrogasil. Os funcionários da área administrativa da RaiaDrogasil voltaram em julho aos escritórios, mas a ocupação máxima é de 20% da capacidade.

Afinal, existe um jeito certo de voltar ao escritório? O primeiro passo, para os especialistas, é ouvir os funcionários sobre a decisão. E, ato contínuo, entender como minimizar o risco de contágio no trajeto da casa ao ambiente de trabalho.

“As maiores preocupações de quem nos procura são o espaço e as pessoas”, diz Anarita Buffe, diretora do Hospital Albert Einstein, que dá consultorias sobre a retomada. Na cartilha do Einstein estão sugestões que devem nortear a arquitetura de escritórios no futuro, como layouts das baias em zigue-zague para dificultar o caminho do vírus. Até lá, com ajustes, as empresas vêm encontrando jeitos de adaptar seus escritórios. Resta saber se os funcionários estarão contentes — e seguros.

Acompanhe tudo sobre:Ambiente de trabalhoflexibilidade-no-trabalhofuturo-do-trabalhoGestãoHome officeMercado de trabalhoPandemia

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda