Revista Exame

O BNDES em busca do trilhão

O plano federal de venda de estatais ainda não decolou. Com a queda de Joaquim Levy, o governo promete que o BNDES será o motor da privatização

Gustavo Montezano, do BNDES: uma das missões do novo presidente é acelerar privatizações (Hoana Gonçalves / ME/Divulgação)

Gustavo Montezano, do BNDES: uma das missões do novo presidente é acelerar privatizações (Hoana Gonçalves / ME/Divulgação)

AJ

André Jankavski

Publicado em 20 de junho de 2019 às 05h48.

Última atualização em 25 de junho de 2019 às 14h11.

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social está entrando em uma nova fase. Pelo menos essa é a expectativa do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, após a abrupta — e deselegante — troca de presidente no banco. Com a saída de Joaquim Levy, que se viu forçado a renunciar ao cargo no dia 16 de junho, chega ao BNDES o economista Gustavo Montezano, até então número 2 da Secretaria de Desestatização do Ministério da Economia.

A passagem, cercada de frases duras e críticas públicas do presidente e do ministro em relação a Levy — um economista respeitado, que foi ministro da Fazenda e secretário do Tesouro Nacional —, também é uma tentativa de transformar o banco estatal em motor das privatizações do governo federal. Guedes espera dar vazão a seu plano de levantar 1 trilhão de reais com desestatização, que ainda está no papel.

O problema, no entanto, é que o BNDES parece estar longe de ser a principal razão da lentidão dos planos de privatização. Boicotes internos, demora na aprovação dos projetos e insegurança de regras são alguns dos problemas que travam os negócios. A consultoria americana Oliver Wyman fez uma pesquisa com 70 grandes investidores para entender quais são os maiores obstáculos para investir em países da América Latina e localizou, no topo da tabela, o risco político, que compreende continuidade e estabilidade dos planos, e o de governança, que inclui problemas como escândalos de corrupção.

Ainda assim, o Brasil se mostra atraente para o capital estrangeiro. O mesmo estudo nota que o país foi o que mais captou investimentos privados em infraestrutura no mundo emergente de 2007 a 2017. Foram cerca de 250 bilhões de dólares, 63% do total recebido pela América Latina e 23% do capital investido nos emergentes. O segundo país foi a Índia, que levou 200 bilhões de dólares no mesmo período. A China ficou só em quarto lugar.

Mesmo com esse histórico, o próprio país consegue se atrapalhar. As últimas semanas do governo Bolsonaro foram um exemplo. Os primeiros dias de junho transcorriam razoavelmente tranquilos para um governo acostumado com turbulências praticamente semanais. Em meados do mês, no entanto, a cena mudou. Um vazamento de conversas entre o ministro Sergio Moro, da Justiça, e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato, criou uma nova fonte de turbulência. De outro lado, Bolsonaro em uma semana demitiu três generais em cargos-chave, incluindo Carlos Alberto Santos Cruz, então ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República. Logo depois foi a vez de Levy, um técnico de excepcional qualidade, ser “fritado” em praça pública pelo próprio presidente — um dos motivos foi a escolha do advogado Marcos Barbosa Pinto, que ocupara cargos em gestões petistas (como o próprio Levy fez), para ser diretor de Mercado de Capitais do BNDES.

Enquanto isso, as previsões de crescimento seguem caindo. O Boletim Focus, que compila semanalmente as previsões dos economistas, aponta uma expansão de 0,9% para 2019 — na primeira semana do ano a projeção era de 2,5%. “Os fatos deste governo falam por si. Em poucas ocasiões vimos estabilidade de políticas e consistência macroeconômica no país”, diz Pedro Parente, presidente do conselho de administração da fabricante de alimentos BRF.

Parente também ocupou, de 2016 a 2018, a presidência da Petrobras e é exatamente a petroleira que acaba de passar por um perrengue para privatizar um de seus ativos. A operação de venda da Transportadora Associada de Gás (TAG), braço de transporte e armazenagem de gás da Petrobras, foi iniciada ainda sob a gestão de Parente, em setembro de 2017. A conclusão do negócio, no entanto, só ocorreu em meados de junho, depois de o Supremo Tribunal Federal decidir que as estatais estão livres para a venda de subsidiárias sem a necessidade de um crivo do Legislativo.

As empresas-mães, como a própria Petrobras, a Eletrobras, o Banco do Brasil e a Caixa, continuam precisando da aprovação do Congresso. “A decisão traz mais segurança jurídica e enxergo um mercado maduro para as vendas de ativos da Petrobras e da Eletrobras”, diz Marina Anselmo, sócia do escritório de advocacia Mattos Filho e especialista no setor de infraestrutura. Nos corredores do grupo francês de energia Engie, a decisão do STF trouxe um alívio. A empresa tinha comprado, mas não levado a TAG. Após 18 meses de negociação, os 35 bilhões de reais destinados à aquisição de 90% da empresa puderam ser liberados, finalmente consumando a maior transação realizada no Brasil neste ano e a maior desestatização feita pela Petrobras. “A negociação mobilizou 40 pessoas das empresas, além de muito dinheiro. Mas vai trazer retorno”, diz um alto executivo participante do processo.

Estação de gás da TAG: a Petrobras levou 18 meses para conseguir consumar a venda da empresa | André Valentim/Petrobras

O caminho desobstruído pelo STF não significa necessariamente que aquisições e parcerias vão ganhar velocidade. Em alguns momentos, os entraves internos podem ser tão problemáticos quanto os macroeconômicos. A antiga gestão dos Correios, ainda no governo Temer, passou por isso. No fim de 2017, a estatal e a empresa aérea Azul assinaram um memorando para a criação de uma nova empresa. A sociedade seria 50,01% da Azul e 49,99% dos Correios e prometia uma economia de 200 milhões de reais por ano para a estatal. A ideia era utilizar a capilaridade de cidades atendidas pela Azul para acelerar as entregas dos Correios.

Para chegar a esse ponto, no entanto, três vice-presidentes dos Correios e o então presidente, Guilherme Campos, tiveram de se reunir às escondidas. Campos enfrentava protestos recorrentes de funcionários e sindicalistas que pediam sua saída em razão da implementação de metas de produção e da intenção anunciada pelo governo Temer de privatizar a empresa. Campos saiu da estatal em março de 2018 para disputar as eleições. Mesmo assim, o negócio caminhou e conseguiu o aval do Conselho Administrativo de Defesa Econômica em fevereiro deste ano. Um mês depois o negócio foi desfeito. “A nova direção da estatal ficou incomodada com a parceria, considerando que criaria uma concorrência aos Correios. Mas tratava-se de uma empresa dos próprios Correios”, diz uma fonte próxima às negociações. Procuradas, as empresas afirmaram que a decisão foi tomada em comum acordo.

À frente dos Correios desde novembro está o general da reserva Juarez Cunha. Acusado por Bolsonaro de “se comportar como sindicalista” e resistir à ordem de privatização dos Correios emitida pelo governo, Cunha, dois dias antes de Levy, sofreu uma fritura semelhante. Bolsonaro anunciou que iria demiti-lo nos dias seguintes. Até o fechamento desta edição, em 18 de junho, Cunha continuava no cargo.

Em razão de problemas como esse, especialistas ouvidos por EXAME acreditam que será difícil o BNDES dar maior celeridade aos processos de privatização. Mas o banco poderá retomar o protagonismo na condução de processos de venda de ativos. Para o professor da Fundação Getulio Vargas Armando Castelar, a mudança da presidência pode ser um indicativo de que o BNDES terá uma atuação semelhante à que teve na década de 90, quando começaram privatizações como a do sistema de telefonia. Sob o comando de Levy, o banco de investimento tentou focar a proposição de planos de parcerias público-privadas em estados e municípios, além de projetos de concessão de infraestrutura.

Para o secretário de Desestatização, Salim Mattar, não era o suficiente. Não à toa, ventila-se que ele foi um dos fiadores das críticas de Bolsonaro a Levy. Mattar teria sido convidado a assumir o banco, mas preferiu se manter à frente da secretaria, indicando seu número 2, Montezano, para o posto. Mattar é um dos incumbidos de concretizar o plano trilionário de privatizações e concessões e, assim como Guedes, estava incomodado com o fato de Levy não dar agilidade ao processo de venda de participações do BNDES em empresas como Vale, Petrobras e Suzano, que somam cerca de 115 bilhões de reais.

Para completar, Guedes insiste na devolução de 126 bilhões do BNDES ao Tesouro ainda neste ano. Analistas, no entanto, acreditam que a nova direção terá dificuldade para entregar o que Guedes pede. “Não é fácil, tendo posições tão relevantes, vender tais participações de forma rápida sem provocar impactos significativos no preço das ações das empresas no mercado”, diz um ex-funcionário do BNDES que não quis se identificar. Ou seja, o banco correria risco de perder dinheiro ao sair vendendo suas cotas.

Especialistas também concordam que a legislação a que os funcionários do banco estão submetidos não facilita. “Falta clareza ao governo sobre as dificuldades de como funcionam os processos dentro do banco. O servidor público tem regras a seguir e, se ele erra, pode responder na Justiça”, diz Marcos Lisboa, presidente da escola de negócios Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. O economista Paulo Rabello de Castro, presidente do BNDES de 2017 a 2018, não enxerga espaço para uma mudança tão rápida como pretende o governo. “O BNDES é um transatlântico e só muda de direção com muito planejamento. O banco acabará indo para a mesma direção que iria com o Levy. Nem o banco nem o governo podem ser tocados com bravatas”, diz Castro.

De fato, as privatizações nem sempre seguem a lógica econômica. As paixões ideológicas e o corporativismo costumam trazer problemas mais graves para quem se coloca na linha de frente desses processos. EXAME ouviu agentes públicos que relataram até ameaças de morte por conduzir projetos na área. O caso do ex-secretário de Desestatização da prefeitura de São Paulo, Wilson Poit, é emblemático. Em sua passagem pelo cargo, convidado pelo ex-prefeito e agora governador João Doria, ele foi responsável por coordenar as parcerias público-privadas na cidade.

Para tocar os projetos, Poit visitou a Câmara dos Vereadores 32 vezes. Em duas delas, precisou sair escoltado pela polícia ante a fúria de alguns dos presentes. Não à toa, poucos projetos saíram do papel no âmbito municipal. Poit, no entanto, enxerga avanços: o estádio do Pacaembu foi concedido ao setor privado. “A parceria com a iniciativa privada é um caminho sem volta”, diz ele, que atualmente é presidente do Sebrae São Paulo. Planejamento, bons projetos e ideologia fora da mesa de negociações, portanto, podem ser mais importantes do que uma atuação mais célere do BNDES no processo. Claro que, se o banco estatal puder ajudar, melhor.

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