Eleitores em manifestação a favor de Trump: eles são o grupo mais preocupado com problemas financeiros (Mike Segar/Reuters)
Raphaela Sereno
Publicado em 4 de novembro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 4 de novembro de 2016 às 10h49.
São Paulo — Não adianta olhar para o passado em busca de uma referência para tentar prever o que vai acontecer em 8 de novembro, dia da eleição presidencial americana. O pleito deste ano já tem seu lugar na história como um dos mais emocionantes. Quando tudo parecia acabado para o candidato republicano Donald Trump, o FBI reabriu a investigação sobre o suposto uso irregular de uma conta de e-mail particular da candidata democrata Hillary Clinton quando era secretária de Estado, de 2009 a 2013.
A desconfiança é que ela tenha tratado de assuntos secretos no e-mail privado. Todos os olhos agora estão no FBI, que prometeu apressar a investigação para chegar a uma conclusão assim que possível. Até o dia 31 de outubro, data do fechamento desta edição, ainda era incerto se o tema seria suficiente para descarrilar a campanha democrata na reta final, mas o anúncio do FBI encheu de esperança a base do eleitorado de Trump, a classe média branca, empobrecida e com baixa escolaridade.
O grau de insatisfação dessa faixa do eleitorado é outra novidade deste pleito — e, mesmo que Hillary confirme seu favoritismo, ela terá, como presidente, de lidar com os milhões de eleitores de Trump. Eles são uma parcela dos americanos que poucos turistas estrangeiros têm contato. É a América profunda, da classe média trabalhadora do interior que viu seu emprego desaparecer nas últimas décadas.
É a ala que se sente negligenciada pelos políticos e para a qual o slogan da campanha de Trump foi especialmente lapidado: “Fazer a América grandiosa outra vez”. “O apoio a Trump é um movimento de resistência e não vai desaparecer após a eleição”, diz Bill Schneider, um dos mais influentes analistas políticos americanos e professor na Universidade da Califórnia. A explicação para o desencanto dos eleitores de Trump é a profunda transição ocorrida no mercado de trabalho dos Estados Unidos.
Em três décadas, o setor industrial deixou de ser o principal empregador na maior parte dos estados. Entre o fim dos anos 80 e o início desta década, 6 milhões de empregos foram perdidos na indústria. Em parte, a queda foi compensada pela criação de vagas em novos segmentos da economia — como saúde, tecnologia da informação, telecomunicações e serviços financeiros. Mas os novos empregos exigem alta qualificação e nem todos os que saíram da indústria acharam um lugar ao sol.
A transformação ficou evidente com a crise econômica de 2008, quando 5 milhões de vagas de empregos menos qualificados foram eliminadas. De lá para cá, só 80 000 postos que exigem apenas o ensino médio foram criados. O grosso das vagas abertas desde 2010 — 11,5 milhões — foi para pessoas com ensino superior, segundo um estudo da Universidade de Georgetown. A saída para grande parte dos ex-trabalhadores da indústria foi tentar se recolocar em ocupações com salários menores, o que fez cair a renda dessa parcela da população.
Hoje, um americano que tem apenas o ensino médio ganha 42 000 dólares por ano, 13% menos do que em 1991 — descontada a inflação. No mesmo período, os rendimentos das pessoas- com ensino superior subiram 7%. A mudança no mercado de trabalho americano é explicada por dois fatores: o avanço tecnológico, que permitiu maior automação no setor industrial, e os efeitos da globalização.
Um estudo feito em conjunto por economistas da Universidade de Zurique, na Suíça, da Universidade de San Diego e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, ambos nos Estados Unidos, identificou que o aumento da importação de produtos chineses para os Estados Unidos foi responsável pelo fechamento de até 2,4 milhões de postos de trabalho de 1999 a 2011.
“A abertura da China para o comércio exterior afetou principalmente as indústrias que dependem de mão de obra de baixo custo, como as de roupas, móveis ou montagem de produtos eletrônicos”, diz o economista David Dorn, um dos autores do estudo e professor na Universidade de Zurique. O fechamento de vagas provocou a reação da população diretamente afetada. Isso já havia sido sentido em menor grau nas eleições para o Congresso americano em 2010.
Os candidatos do movimento Tea Party, a ala do Partido Republicano mais crítica ao livre comércio, tiveram mais sucesso justamente entre os eleitores que vivem nas regiões onde as empresas foram mais afetadas pela competição chinesa.
Ao mesmo tempo que as mudanças no mercado de trabalho fizeram a renda diminuir, ficou mais caro conseguir finalizar um curso universitário. De 1995 a 2015, o custo médio de uma graduação nos Estados Unidos aumentou 179% — no mesmo período, a inflação acumulada foi de 55%. Diante disso, fica fácil entender por que oito em cada dez eleitores de Trump acreditam que a vida piorou nos últimos anos.
Em setembro, o pesquisador Jonathan Rothwell, economista sênior do instituto de pesquisa de opinião Gallup, publicou a mais extensa pesquisa sobre as características dos eleitores de Trump. Com base em entrevistas com mais de 106 000 pessoas, Rothwell descobriu que os defensores do republicano são mais preocupados com a situação financeira da família do que a média dos eleitores e tendem a viver em regiões onde os índices de mobilidade social são menores. “É evidente que esse grupo está tendo de lidar com sérios problemas econômicos e sociais”, disse Rothwell.
Uma das poucas unanimidades entre republicanos e democratas é que, quando o próximo presidente dos Estados Unidos tomar posse no dia 20 de janeiro de 2017, um dos maiores desafios econômicos e políticos será lidar com os problemas dessa classe média empobrecida. Parar a globalização e impedir que a tecnologia continue evoluindo não são opções viáveis. As soluções passam por outros caminhos. “Temos de preparar as novas gerações para uma economia de mão de obra altamente qualificada.
Isso requer facilitar o acesso a serviços de saúde e educação e aumentar os subsídios para os desempregados”, diz Peter Wehner, ex-conselheiro da Casa Branca no governo de George Bush filho. Investir em educação e treinamento de trabalhadores menos qualificados é uma maneira de tentar amenizar as dificuldades econômicas, mas pode levar mais tempo para surtir efeito. Uma solução mais imediata é investir em grandes projetos de infraestrutura, o que criaria imediatamente empregos não qualificados.
Nesse ponto, tanto Hillary quanto Trump concordam. Ambos têm propostas para elevar os gastos na área — a execução dessa medida depende da aprovação do Congresso. “É uma boa solução de curto prazo para ajudar a criar empregos para quem tem sofrido com as mudanças no mercado de trabalho”, diz o economista americano Lawrence Jeff Johnson, vice-diretor de pesquisas da Organização Internacional do Trabalho.
Com a eleição presidencial ainda aberta, é incerto quem vai ocupar a Casa Branca e qual dos dois partidos terá maioria no Senado. Curiosamente, os eleitores mais radicais de Trump podem ser os grandes vencedores neste ano — mesmo que seu candidato seja derrotado nas urnas.