Li, da Sany, Fang, da Zongshen, e Zhang, do Bank of China: executivos que vieram ao país em meio à maior onda de investimentos chineses da história brasileira (Germando Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 28 de maio de 2012 às 08h57.
São Paulo - Há quase 100 anos, o milenar Império da China deixou de existir. O último imperador, Pu Yi, abdicou em 1912 e pôs fim à mais longa história imperial de que se tem notícia. Sua vida, narrada em um belo filme de Bernardo Bertolucci, encerrou-se com um câncer em 1967, e imaginava-se que ninguém mais voltaria a ouvir falar tão cedo sobre o assunto.
Mas a história guarda lá suas ironias. Foi preciso que o império fosse formalmente encerrado para que o mundo começasse de fato a temê-lo. É provável que estejamos debatendo o imperialismo chinês mais hoje do que em qualquer momento ao longo dos milhares de anos em que ele efetivamente existiu.
Os sinais do avanço chinês no mundo estão por toda parte - de fábricas de eletrodomésticos nos Estados Unidos a plantações na África, de montadoras no Uruguai a indústrias de papel na Indonésia.
Em sua marcha rumo à vice-liderança da economia global, a máquina chinesa não para de assombrar - e parece ter chegado a vez dos brasileiros de sentir sua força. Nos últimos meses, o Brasil tornou-se destino do capital chinês.
Com muito dinheiro e apetite para investir, companhias apoiadas e incentivadas pelo governo de Pequim despejaram mais de 10 bilhões de dólares na aquisição de campos de petróleo, minas de ferro, terras para o plantio de soja e ativos de energia elétrica - e tudo indica que seja apenas o começo.
De um modestíssimo 29º lugar no ranking dos maiores investidores no país, a China deve assumir o topo da lista em 2010, desbancando países tradicionais, como Estados Unidos, Espanha e Alemanha.
"Essa presença deve crescer muito nos próximos anos, não só porque a China precisa das commodities brasileiras mas também porque o Brasil vem ganhando importância no cenário internacional", diz Martin Jacques, pesquisador da London School of Economics e autor do livro When China Rules the World ("Quando a China dominar o mundo").
De janeiro a maio, os chineses anunciaram investimentos no Brasil equivalentes a mais de dez vezes o volume de recursos que trouxeram para o país em toda a sua longa história. Os negócios impressionam.
A siderúrgica Wuhan Iron & Steel, uma das maiores do setor na China, comprou 21% da mineradora MMX, do empresário Eike Batista, por 400 milhões de dólares e confirmou um investimento de 3,5 bilhões de dólares para deter 70% da usina de aço que o grupo EBX, também de Eike, está construindo no Rio de Janeiro.
A petrolífera Sinochem, uma das maiores do país, adquiriu 40% do campo de Peregrino, na área do pré-sal, que pertencia à norueguesa Statoil. A State Grid, líder na área de energia elétrica na China, comprou sete concessionárias de transmissão que pertenciam à espanhola Plena por 1,7 bilhão de dólares.
A mineradora ECE pagou 1,2 bilhão pela Itaminas e suas minas de ferro. A também mineradora Honbridge investiu 400 milhões de dólares no projeto Salinas de minério de ferro, da Votorantim em Minas Gerais, e se comprometeu a investir 3 bilhões de dólares no projeto até 2013.
A Chongqing Grain Group anunciou que vai investir 300 milhões de dólares na compra de terras no Nordeste para produzir soja. A Sany Heavy Industries aplicará 100 milhões de dólares em uma fábrica de guindastes e escavadeiras no interior paulista.
Isso sem contar dezenas de investimentos menores que não entram nos radares de consultorias e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, e intenções de grandes grupos, como o China Investment Corporation (CIC), poderoso fundo soberano do país que tem 300 bilhões de dólares para investir.
O presidente do CIC, Gao Xiqing, anunciou recentemente que o Brasil está entre suas prioridades e receberá mais dinheiro do que a Europa. Além disso, recentemente, a Petrobras recebeu um aporte de 10 bilhões de dólares do governo chinês para ser pago em barris de petróleo ao longo dos próximos anos. "Uma frase sobre o momento atual: sai da frente que lá vem chinês", diz Eike.
Como decifrar o enigma posto pela China? Devemos ficar preocupados com o poderio do novo parceiro? Ou, ao contrário, temos de comemorar tanto dinheiro? São questões que vão estar conosco por muito tempo. O fato é que o recente movimento chinês pode ser traduzido como a terceira fase de uma investida iniciada há exatas duas décadas, após a abertura do mercado brasileiro.
Naquele momento, os produtos chineses passaram a fazer parte do dia a dia dos consumidores com uma infinidade de bugigangas, que iam de brinquedos a calçados, passando por material de escritório, pratos, talheres e roupas - quase sempre com preços muito competitivos, qualidade questionável e design que em muito lembrava o de marcas consagradas.
Uma década depois, a indústria da China, mais desenvolvida, passou a exportar aparelhos de som, televisores, computadores, motos, carros, celulares e equipamentos pesados. O preço competitivo e a "inspiração" em marcas famosas continuaram presentes, mas a qualidade dos produtos já apresentava melhorias significativas.
Agora, o Brasil deixa de ser visto apenas como mais um mercado para os produtos de baixo custo para se transformar em parceiro estratégico da China. Os chineses estão chegando para produzir aqui a matéria-prima que garantirá a alimentação de sua população e de sua indústria nas próximas décadas e também para investir em infraestrutura e na produção local de bens de consumo.
"O Brasil é um mercado cada vez mais importante para nós e deve atrair mais empresas chinesas", diz Zhang Jianhua, presidente do Bank of China no Brasil.
Com população de 1,4 bilhão de habitantes e reservas de 2,4 trilhões de dólares, as maiores do mundo em ambos os casos, a China precisa de muita comida, petróleo, minério de ferro, energia, celulose e uma infinidade de matériasprimas. O contexto doméstico brasileiro reforça o apelo, para o governo chinês, do interesse em fazer negócios no - e não apenas com o - Brasil.
Após a crise financeira de 2008, as autoridades em Pequim buscam menor dependência econômica em relação às exportações. Um mercado interno pujante se tornou estratégico, o que pressupõe acelerar o processo de urbanização dos 750 milhões de chineses que ainda vivem no campo.
Para a economia, isso se traduz não apenas na necessidade de suprir uma enorme população que deixa de produzir o próprio sustento mas também na urgência de erguer dezenas de metrópoles literalmente do chão.
A demanda por comida e infraestrutura poderá ser reforçada se o governo confirmar os indícios que vem dando de que pode flexibilizar as restrições à população trabalhadora itinerante, de 140 milhões de pessoas, para que possa se fixar nas cidades e levar consigo suas famílias.
O Brasil também desponta como um bom destino para o investimento do capital excedente acumulado por lá. Os chineses têm uma montanha de dinheiro aplicado em títulos do Tesouro americano e precisam diversificar a carteira. Nós carecemos de dinheiro para desenvolver nossa própria infraestrutura - e os chineses já se mostraram interessados em investir em rodovias, portos, energia elétrica, obras para a Copa de 2014 e para a Olimpíada de 2016 e até no trem-bala que deve ligar o Rio de Janeiro a São Paulo.
Some-se a isso uma legislação que impõe poucas restrições a investimentos de empresas estrangeiras, mesmo que controladas por governos de outros países, e o resultado é a avalanche de iuanes que se vê na compra de participações em empresas de mineração, petróleo, transmissão de energia e terra para cultivo de grãos.
É ótimo que o Brasil seja alvo do interesse externo - o capital de fora oxigena a economia e favorece o crescimento do país. Mas há dilemas novos a ser enfrentados. Os chineses têm a intenção declarada de produzir no Brasil boa parte da comida para sua enorme população e também da matéria-prima para sustentar o crescimento de sua indústria.
Num caso extremo, para suprir as necessidades chinesas, os brasileiros podem ter de abrir mão de recursos naturais necessários a seu próprio sustento. "Isso já ocorre na África, onde muita gente passa fome, enquanto países como China e Arábia Saudita produzem alimento para exportação", diz José Carlos Hausknecht, sócio da empresa de consultoria MB Agro.
O que torna o investimento chinês diferente é sua natureza estatal. Quem melhor captou a questão foi o cientista político americano Ian Bremmer, que cunhou a expressão "capitalismo de Estado" para designar o que pode ser um novo modelo econômico a disputar corações e mentes.
As empresas chinesas confundem-se com o governo em uma simbiose que dá a elas um poder de fogo do qual nem mesmo as grandes corporações americanas dispõem. É bom lembrar: a China tem 2,4 trilhões de dólares em reservas e boa parte disso poderá ser - e está sendo - usada para garantir o crescimento de suas companhias.
Há um conflito evidente quando um gigante desses, com objetivos estratégicos de longo prazo que nem sempre respeitam as lógicas do mercado, negocia com empresários que buscam o melhor valor para seu investimento no curto prazo. É importante ressaltar que tanto o governo chinês quanto os brasileiros que fecham negócios com companhias chinesas não estão fazendo nada errado.
As leis brasileiras permitem e até incentivam esse tipo de relação. "É preciso rever essa posição. Falta coordenação do governo para estabelecer estratégias e objetivos de longo prazo que tornem essa relação boa para os dois lados", diz o embaixador Sérgio Amaral, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, que reúne 60 empresas de ambos os países. Segundo Amaral, o Brasil deveria estabelecer uma política para atrair o capital chinês não só para a produção de commodities mas também para a produção industrial.
A lei brasileira permite que empresas estrangeiras, mesmo estatais, comprem até 10 000 hectares de terra - o equivalente à área da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro - com uma autorização do Incra. Acima disso, é necessária a autorização do Congresso Nacional. Há planos de enrijecer essa legislação.
Também não há políticas de contrapartida de produção local, como a própria China tem. No caso das relações trabalhistas, o controle é mais rigoroso. O Ministério do Trabalho só concede vistos de trabalho quando a empresa comprova que um brasileiro não pode exercer a função pleiteada por um estrangeiro.
Alguns empresários brasileiros estão buscando negociar contrapartidas com os chineses. "Em nossa parceria, eles aceitaram transformar 1 em cada 3 toneladas de minério de ferro em aço no Brasil", diz Eike.
Esses limites ao investimento já foram analisados por outros países que estiveram na mira do apetite chinês. Na África, até pe la debilidade das economias locais, o interesse foi basicamente por atrair recursos, sem impor restrição alguma. Lá, a China não apenas explora recursos naturais como também usa mão de obra própria em atividades que vão da construção civil à agricultura, passando pela mineração.
Nos Estados Uni dos e na Eu ropa, por outro lado, algumas tentativas de investimento chinês foram barradas pelos governos. Fragilizados pelas recentes crises econômicas, países europeus viram suas empresas se tornar alvos relativamente fáceis para os chineses.
"Mas uma série de barreiras legais torna muito difícil o investimento na Europa em setores estratégicos", diz Ernesto Lo zar do, economista da Fundação Getulio Vargas. Nos Estados Unidos, a oferta de 18 bilhões de dólares da petrolífera chinesa CNOOC pela Unocal foi vetada pelo Congresso americano.
Mas investimentos chineses em setores como o automotivo, o eletroeletrônico e o de serviços têm cres cido nos estados americanos. Empresas como a Haier, de eletrodomésticos, já têm fábricas nos Estados Unidos.
Uma combinação de encarecimento gradual da mão de obra chinesa, perspectivas de valorização do iuane, necessidade de consolidar suas marcas no exterior e aumento de barreiras às importações em grandes mercados explica a decisão de indústrias chinesas de produtos manufaturados de se aventurar com fábricas em outros países.
O Brasil também começa a se beneficiar disso. A Chery, maior montadora chinesa de automóveis, anunciou que terá uma fábrica no Brasil, um investimento de 700 milhões de dólares. A fabricante de motos e motores Zongshen, que no ano passado comprou a brasileira Kasinski, vai inaugurar uma nova fábrica em Manaus com capacidade para produzir 110 000 motos por ano.
"O Brasil tem um grande mercado interno e será nossa plataforma para a expansão em todo o continente", diz Fang Ming, diretor administrativo da Zongshen no Brasil. A Sany, que produz equipamentos pesados, como guindastes e escavadeiras, vai investir 100 milhões de dólares em uma fábrica no interior de São Paulo.
"Há muitas oportunidades no Brasil, principalmente com as obras que serão feitas para a Copa de 2014 e para a Olimpíada de 2016", diz John Li, diretor-geral da subsidiária brasileira da Sany. Outras indústrias, como Lenovo, de computadores, e ZTE, de equipamentos para telecomunicação, já produzem há alguns anos no Brasil. A
Haier também negocia a instalação de uma fábrica aqui. A presença de tantas empresas chinesas abriu espaço no setor de serviços. O Bank of China, maior banco comercial do país, inaugurou uma agência no Brasil no ano passado com o objetivo de atender empresas chinesas que começam a chegar por aqui e para atender brasileiros que querem fazer negócios na China.
"A maioria das companhias chinesas que têm interesse no Brasil é cliente do banco na China e isso facilita o relacionamento", afirma Zhang, do Bank of China. A filial brasileira do HSBC, banco que tem sede em Hong Kong, abriu em março um escritório na China para buscar clientes que têm intenção de investir no Brasil.
"Tentamos ser uma ponte para que os empresários chineses entendam melhor algumas peculiaridades brasileiras", diz Henrique Vianna, diretor da mesa de operações de América Latina do HSBC em Xangai.
A dificuldade de adaptação dos chineses a um ambiente tão diferente do asiático, por sinal, é um fator que postergou a entrada de investidores no Brasil. Por afinidade cultural, antes de se voltarem para o Ocidente, os chineses invadiram praticamente todo o sudeste da Ásia, onde havia maior identificação.
Os maiores problemas no Brasil, dizem os chineses, são a língua, a cultura e os sistemas legal e tributário. "São questões que afetam todo o negócio, desde a definição do design dos produtos para o mercado até a obtenção de licenças para a construção de uma fábrica", diz Zou Zongshen, presidente mundial e fundador do grupo que leva seu nome.
Para contornar o problema, Zongshen associou-se ao empresário local Cláudio Rosa, ex-sócio da Sundown. "Isso nos permitiu economizar tempo e nos livrou de muita dor de cabeça."
Há também muita desconfiança por parte dos chineses, que querem rever contratos diversas vezes antes de assiná- los, repetem os mesmos questionamentos e demoram muito tempo para fechar negócios. "São obstáculos que temos de superar. O brasileiro não vai mudar seu jeito de ser nem vai passar a falar mandarim", diz Li, da Sany.
A empresa, que fatura cerca de 5 bilhões de dólares anualmente, planeja dobrar de tamanho no Brasil nos próximos anos. Para isso, contratou 30 brasileiros, que estão aprendendo mandarim e inglês e passarão uma temporada na China. E também trará 20 gerentes da matriz para ficar um ano no Brasil conhecendo a cultura local e aprendendo português.
O modo de a Sany operar lembra uma característica do avanço chinês - diferentemente de outros impérios no passado, há pouco ou nada de ideologia em sua conquista do mundo. Os chineses estão aqui para fazer negócios, não para impor seu modo de vida.
O jeito com que negociam é, sem dúvida, diferente de tudo o que conhecemos. Precisamos aprender - e já - a tirar o melhor de uma invasão que parece irreversível.