O ano de 2021 foi um ano sem identidade, espremido entre as mazelas do início da pandemia em 2020 e a antecipação das eleições de 2022 (Huber & Starke/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 20 de janeiro de 2022 às 05h58.
Última atualização em 25 de julho de 2022 às 19h36.
“É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.” A escritora Clarice Lispector fala de si na linda frase, mas poderia muito bem falar do Brasil. Entramos em 2022 prontos para comemorar os 200 anos da Independência brasileira ainda em busca de uma identidade nacional. Um país, desde sua fundação, à procura de um pai, como nos lembraria o psicanalista Contardo Calligaris. O colonizador saiu da Europa, que lhe negara as possibilidades desejadas, para explorar uma terra nova, onde a mãe não estaria interditada pelo pai. Sem pecado ao sul do Equador, estaria aqui à procura do gozo infinito, sem restrições. Édipo, enfim, livre e realizado.
Também neste ano celebramos os 100 anos da Semana de Arte Moderna, com ligação estreita ao posterior Manifesto Antropofágico, que viria a ser resgatado tempos depois pelo Tropicalismo. Talvez representem as manifestações socioculturais mais emblemáticas como tentativas de caracterizar a identidade nacional. Macunaíma é nosso herói duplamente preguiçoso, índio que viaja a São Paulo para recuperar a pedra mágica agora em posse do gigante burguês Piaimã. Estamos mais identificados com o silvícola do que com o capitalista, associado ao colonizador explorador, que viria a negar a cidadania do colono.
Em Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, a representação da América e, mais especificamente, do Brasil estaria ligada de maneira coletiva ao Jardim do Éden bíblico. Se na “América inglesa” predominavam selva e deserto, um horto fechado a ser propriamente colonizado e construído por meio do trabalho dos homens, numa espécie de paralelo da ética calvinista e protestante de Weber que empurrava à labuta, na “América espanhola e portuguesa” o Paraíso estava já dado. Na “Ilha Brasil”, não haveria necessidade de construir ou trabalhar, apenas gozar sobre o Paraíso sem interdição.
De algum modo, o ano de 2021 também não teve uma identidade clara. Viveu espremido entre as mazelas da covid-19 — o desdobramento da pandemia de 2020 — e a antecipação das eleições de 2022 e da subida de juro nos Estados Unidos. Se você não dispõe de identidade, duvida de si mesmo. Não pode haver incerteza maior do que essa. A incapacidade de reconhecer em si características que o distinguem do outro catalisa neuroses agudas. Se não há identificação com uma autoimagem clara, questiona-se absolutamente tudo, perde-se qualquer referência.
Os mercados detestam a incerteza. A dispersão muito grande de resultados possíveis à frente é paralisante. Sob aversão ao risco, todos se alojam na segurança. Inicia-se um círculo vicioso. Com medo, o cotista resgata. O gestor do fundo é obrigado a vender posições para honrar o resgate. A venda dispara nova queda da cota. O cotista se assusta e dobra o resgate. A dinâmica espiral continua. Se, no entanto, 2021 não teve elementos marcantes para chamar de seus, sendo um ano sem identidade, 2022 aponta na direção oposta. Além do ducentenário da Independência e dos 100 anos da famosa Semana de Arte Moderna, temos eleições presidenciais. Talvez seja um momento oportuno de resgatar os elementos mais tradicionais da identidade nacional ou, pelo menos, se esses ainda não estão muito bem definidos, de persegui-los.
O que nos caracteriza em essência?
O economista Eduardo Giannetti gosta de lembrar da vitalidade iorubá, uma espécie de felicidade ou disposição intrínseca aos brasileiros, cujos níveis de satisfação pessoal, medidos em várias pesquisas científicas, sobrepujam os de cidadãos de outros países, mesmo aqueles em que os indicadores sociais são superiores aos nossos. Estaríamos marcados por certa alegria de viver, por uma espontaneidade vital indissociável e indisputável. Embora a ideia esteja formalizada de maneira mais explícita em seu livro Trópicos Utópicos, o observador mais atento talvez pudesse inferir se tratar de uma questão que o acompanha há bastante tempo. No programa Roda Viva de 1996, Giannetti pergunta a Caetano Veloso se poderíamos unir essa “natureza espontânea e feliz” a um processo civilizatório ou se, à medida que o Brasil se desenvolvesse social e economicamente, estaríamos condenados a, de forma inexorável, perder a vitalidade iorubá.
Recentemente, tive o prazer de conversar com Giannetti e expus o que, humildemente, me parecia uma atualização preocupante da dúvida original: “Estaríamos condenados a perder a vitalidade iorubá, nossa alegria de viver, mesmo sem nos civilizar?”. Com suas típicas sabedoria e serenidade, ele alertou para uma possível confusão de minha parte entre fatores e elementos transitórios diante daqueles estruturalmente presentes; estes, de fato, identitários. O período de 200 ou 100 anos não é propriamente tão extenso quando pensamos em formação de Estados nacionais. Mas também não é pouco.
O Brasil sempre teve uma posição, mesmo em questões diplomáticas, de certa neutralidade e afastamento aos extremismos. A preguiça macunaímica revelava certa complacência e desvio a rupturas, com suas mazelas, sim, mas também como desdobramento, certo conservadorismo (no sentido de preservação) das instituições. Talvez em 2022 possamos nos reconectar à nossa essência da mediocridade e do caminho do meio, evitando os polos de lado a lado, em linha com a virtude aristotélica. No final do dia, países são como pessoas: eles não conseguem fugir de si mesmos. Voltar para a média pode ser uma notícia alvissareira. Se você está com a pontuação de 1 e volta para o 5, experimenta uma multiplicação notável. A visão do paraíso vai muito além do CDI.