Revista Exame

É o câmbio, estúpido

Em uma fase de baixo crescimento mundial, as moedas viraram armas para uma batalha entre as maiores economias — e o Brasil é uma das principais vítimas dessa guerra

Contra os donos do dinheiro: protesto de ativistas durante a reunião do G20, na França (Christopher Furlong/Getty Images)

Contra os donos do dinheiro: protesto de ativistas durante a reunião do G20, na França (Christopher Furlong/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 8 de dezembro de 2011 às 05h00.

São Paulo - Em novembro de 2008, o Federal Reserve, ou Fed, o banco central americano, anunciou que utilizaria um novo instrumento monetário para combater a crise nos Estados Unidos, deflagrada no ano anterior: o quantitative easing — ou flexibilização monetária.

Tratava-se da compra de títulos do Tesouro americano no mercado financeiro para prover liquidez a uma economia apática. A manobra marcou também a primeira ofensiva da guerra cambial em curso, “declarada” pelos Estados Unidos contra o resto do mundo. Ao injetar 600 bilhões de dólares na economia, o Fed provocou a valorização de quase todas as outras moedas — incluindo o real.

É essa a premissa que permeia o livro do economista americano James Rickards, Currency Wars: the Making of the Next Global Crisis (“Guerras cambiais: os bastidores da próxima crise global”, numa tradução livre), lançado em novembro nos Estados Unidos.

A obra de Rickards, ex-executivo do Citibank e diretor de um banco de investimento em Nova York, aponta que o mundo estaria vivendo a terceira guerra cambial, cujas consequências para a economia mundial podem ser desastrosas, a exemplo dos conflitos anteriores. A primeira batalha das moedas, iniciada nos anos 20, acabou contribuindo para a ascensão do nazismo.

A guerra cambial seguinte, na década de 70, levou o mundo a uma espiral inflacionária. Portanto, todo cuidado é pouco. Nos últimos três anos, o Fed injetou 2,3 trilhões de dólares na economia americana por meio da impressão de moeda.

“Os Estados Unidos estão enfraquecendo o dólar para aumentar suas exportações, transferindo inflação para o mundo”, diz Rickards. “Em uma guerra cambial, sempre há ganhadores e perdedores.”

O Brasil parece estar na ponta perdedora — o real foi a moeda que mais se valorizou no mundo. Por isso, o governo brasileiro não tem se furtado a usar diferentes armas contra a apreciação do real, algumas altamente questionáveis. Em julho, o Banco Central anunciou a cobrança de 1% de IOF sobre os derivativos cambiais, medida que passa a valer em dezembro.

O país também embarcou numa onda protecionista sem precedentes no passado recente. Hoje, 80 medidas que limitam o comércio internacional estão em vigor — a mais estridente foi o aumento do IPI para os carros asiáticos. Esgotadas as armas tradicionais, a diplomacia brasileira entrou em campo.


O Brasil é líder de uma campanha em Genebra para que a Organização Mundial do Comércio (OMC) passe a contemplar as distorções cambiais nas relações de comércio exterior. O tema é tratado com cautela pela diplomacia brasileira. As discussões cambiais sempre ocorreram no âmbito do Fundo Monetário Internacional, cuja missão é zelar pelo funcionamento do sistema financeiro global.

À OMC, por sua vez, caberia organizar o comércio internacional, mas sem lidar com as oscilações das moedas. Criou-se, assim, um muro entre comércio e câmbio. “Há 60 anos a realidade vem sendo ignorada”, diz Vera Thorstensen, professora da Fundação Getulio Vargas e que durante 15 anos assessorou o Brasil na OMC.

Vera liderou um estudo que mostra que a valorização do real frente ao dólar e ao iuane chinês está anulando o efeito de qualquer proteção tarifária no Brasil e ainda incentivando as importações.

Segundo o estudo, diante da apreciação de 30% do real em 2010, automóveis e tratores estrangeiros, por exemplo, que pagam tarifa de 22% para entrar no Brasil, ainda assim são 14% mais competitivos que os similares nacionais. Se a tarifa fosse de 33%, a máxima permitida, a desvantagem para o produto nacional ainda seria de 7%.

“A OMC precisa recuperar a eficácia das regras que criou ou continuará sendo uma ficção jurídica”, diz Vera. A expectativa era que o Brasil levasse o tema para a reunião ministerial da OMC, que acontece em dezembro em Genebra, já que foi o ministro da Fazenda, Guido Mantega, um dos primeiros a apontar os efeitos das distorções cambiais.

Mas China e Estados Unidos bombardearam as intenções brasileiras. “A discussão não pode ser varrida para debaixo do tapete”, diz Roberto Azevedo, embaixador do Brasil na OMC. Para piorar, os Estados Unidos prometem mais uma rodada de injeção de dólares na economia.

Invasão estrangeira

Ninguém contesta que o real valorizado tem reduzido a competitividade da indústria brasileira. As importações de máquinas quadruplicaram em seis anos e atingiram o valor de 28 bilhões de dólares. No segmento de válvulas industriais, as peças chinesas chegam ao Brasil valendo o mesmo que a matéria-prima para sua produção.


O resultado é que 80% dos fabricantes nacionais deixaram de produzir para importar. O déficit comercial do setor de têxteis deverá atingir 5 bilhões de dólares em 2011. “A competição é predatória”, diz Aguinaldo Diniz Filho, presidente da Cedro Têxtil, indústria centenária de Minas Gerais.

Mas, em temas cambiais, é mais fácil elencar os problemas do que as soluções. Na OMC, por exemplo, seria preciso a concordância dos 153 países-membros para incorporar a análise cambial à dinâmica do comércio — algo próximo do impossível. Mais fácil é que cada país lute para abrandar os efeitos negativos da competição cambial.

No caso brasileiro, é extensa a lista de problemas de competitividade a ser atacados: alta carga tributária, logística ruim, alto custo de capital, entre muitos outros.

“É uma infantilidade o Brasil discutir o câmbio na OMC”, diz o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central. “Se o Brasil quer uma moeda desvalorizada, que aumente sua poupança interna, como faz a China.” Uma taxa de poupança maior permitiria uma taxa de juro menor e, portanto, um câmbio mais fraco.

O fato é que os desdobramentos do comércio global deixaram de ser previsíveis quando mais atores entraram em cena. Na década de 70, as crises cambiais eram discutidas praticamente apenas entre americanos, japoneses e alemães — o resto do mundo se curvava a eles.

A ascensão dos emergentes mexeu nessa dinâmica. Hoje, Brasil e China utilizam reais e iuanes em transações comerciais. Em 2000, 70% das reservas mundiais eram em dólares — hoje essa participação é de 60%. “Em uma década, dólar, euro e iuane dividirão o papel de moeda global.

Em 25 anos, talvez o real seja uma delas”, diz Barry Eichengreen, professor da Universidade da Califórnia. Enquanto isso não ocorre, nossa moeda vai conti­nuar na linha de tiro.

Acompanhe tudo sobre:CâmbioCrises em empresasEdição 1006Estados Unidos (EUA)EuropaG20Países ricosPolítica no BrasilProtestos

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda