Revista Exame

É hora de copiar a China

Até pouco tempo atrás, as empresas chinesas contentavam-se em copiar as ocidentais. Agora, uma geração de empreendedores nascidos lá quer dominar o mundo

Sede da Didi, em Pequim:a startup vale 50 bilhões<br />de dólares e é símbolo de uma geração empreendedora | Lucas Amorim /

Sede da Didi, em Pequim:a startup vale 50 bilhões<br />de dólares e é símbolo de uma geração empreendedora | Lucas Amorim /

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Da Redação

Publicado em 30 de novembro de 2017 às 05h56.

Última atualização em 18 de dezembro de 2020 às 16h03.

Não é à toa que a região de Zhongguancun, 25 quilômetros ao norte de Pequim, ficou conhecida como o Vale do Silício chinês. A zona, vizinha à Universidade de Pequim, reúne 1 milhão de pessoas e 20 000 empresas de tecnologia. Elas ocupam enormes áreas verdes, com ônibus elétricos, bicicletas e muitos copos de café da Starbucks para lá e para cá. Graças a Zhongguancun, há poucos dias, a empresa de pesquisas Expert Market escolheu Pequim como o principal hub tecnológico do mundo. Rankings são sempre polêmicos, mas há de fato algo de novo acontecendo por aqui. Especialmente num edifício espelhado de cinco andares, com um mercadinho no térreo, na Dongbeiwang Road. É onde fica a sede da Didi Chuxing, empresa de aplicativos de transporte líder no país e sócia, no Brasil, da 99. Com estimados 50 bilhões de dólares de valor de mercado, a Didi é a segunda startup mais valiosa do mundo, atrás apenas da Uber. A sede da companhia tem biblioteca, terraços verdes e até um escorregador.

Pedestres em Shenzhen: o país estabeleceu a meta de ser líder global em inteligência artificial até 2030 | Brent Lewin/Getty Images

A Didi tem um ambiente empreendedor que poderia ser encontrado em São Francisco, Tel-Aviv ou Berlim, e representa a face mais moderna da China, um país que está rápida e decididamente se transformando num novo polo global de inovação. “A China chegou muito atrasada à era dos computadores. Nos smartphones, já ficamos mais próximos. Agora estamos prontos para liderar a próxima etapa, de inteligência artificial e de veículos autônomos”, afirma Haichen Wang, diretor de estratégia da Didi. Wang estudou numa das melhores universidades americanas, a Cornell, e voltou a Pequim em 2012 para trabalhar no escritório do banco Goldman Sachs antes de se mudar para o Vale do Silício chinês. Sua história é a mesma de tantos outros executivos e empreendedores que simbolizam a mais bem formada e internacionalizada geração de profissionais do país.

Criada em 2012 como um aplicativo para táxis, a Didi entrou em novos nichos de mercado, como carros particulares, ônibus e, desde 2016, bicicletas, com o investimento na empresa de aluguel Ofo (que sozinha já vale 3 bilhões de dólares). “Ao abrir nosso aplicativo você recebe todas as opções de transporte disponíveis, inclusive ir a pé, se for o mais conveniente para a situação”, diz Wang. Até 2016, a Didi competia com a Uber na China, mas os americanos capitularam e aceitaram vender sua operação no país para a Didi. E não só porque a China é um país complexo mas porque a Didi investe seriamente em inovação. Todos os dias, a Didi coleta 70 terabytes de dados sobre o trânsito de Pequim e colabora com as autoridades sugerindo, por exemplo, onde deveria haver novo semáforo ou nova linha de ônibus.

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A meta é levar a mesma estratégia para outros países, especialmente Brasil, Estados Unidos, Índia e Sudeste Asiático, sempre em parceria com empresas locais. Em março, a Didi abriu um centro de pesquisa e desenvolvimento, o Didi Labs, no Vale do Silício — o da Califórnia. “Somos uma empresa global de tecnologia que por acaso nasceu na China”, diz Wang. O mesmo discurso e a mesma ambição são encontrados a alguns quilômetros de distância, na sede de uma das empresas de tecnologia mais tradicionais do país, o Baidu (o Google chinês). Seus funcionários não usam mais crachás e entram no edifício com reconhecimento facial. O Baidu também abriu um escritório nos Estados Unidos, em 2014, e tem um projeto de veículos autônomos focado não em carros, como Google e Uber, mas em ônibus urbanos. “A China vive um ‘chinese dream’. Há uma onda de otimismo inédita no país, e uma ambição crescente de liderar a corrida global de inovação”, diz Yan Di, diretor-geral do Baidu no Brasil.

Apesar de ter a segunda maior economia do mundo, a China continua a ser um país essencialmente pobre, com PIB per capita semelhante ao brasileiro — na casa dos 8 000 dólares. Ainda é também o maior poluidor do planeta. E, apesar de estar subindo nos rankings mundiais de inovação, ainda está longe do topo: é o 22o país mais inovador, segundo o Global Innovation Index 2017. Mas não é na média, e sim nos extremos, que a face inovadora da China aparece. Até pouco tempo atrás, as empresas chinesas contentavam-se em copiar as ocidentais. Agora, uma geração de empreendedores nascidos lá quer dominar o mundo.

Os empreendedores chineses alimentam e são alimentados por uma vibrante indústria de investidores privados. De 2014 a 2016, fundos de capital de risco investiram 77 bilhões de dólares em startups chinesas, seis vezes mais do que no triênio anterior. O país já é o segundo com mais “unicórnios”, as startups avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares, atrás apenas dos Estados Unidos — são 89 companhias. Em novembro, uma empresa de tecnologia chinesa, a Tencent, criada em 1999, chegou a 500 bilhões de dólares de valor de mercado e superou o Facebook, maior rede social do planeta. Duas gigantes chinesas das telecomunicações, a Huawei e a ZTE, são as empresas que mais depositam patentes no mundo. O país que inventou a pólvora e a bússola hoje corre de igual para igual com os mais avançados do mundo em pesquisas de reconhecimento facial, carros elétricos e robôs.

Competição de robôs: um desafio da China é tornar a educação mais voltada para o empreendedorismo | VCG/Getty Images

E drones. A DJI, de Shenzhen, criou esse mercado no mundo. A empresa começou há 11 anos, num dormitório estudantil em Hong Kong, com helicópteros de controle remoto. Em 2012, lançou seu primeiro drone, o Phanton 1, que usava uma câmera Go Pro acoplada. Em 2013, a segunda geração já veio com câmera desenvolvida pela própria DJI. Em 2015, a terceira geração incluiu o estabilizador de imagens, um avanço que permitiu a entrada no universo do cinema. A DJI consegue uma combinação rara: é a maior e mais inovadora empresa do setor. Tem valor de mercado superior a 8 bilhões de dólares e mais de 8 000 funcionários, 25% deles envolvidos em pesquisa e desenvolvimento em laboratórios na China, nos Estados Unidos e no Japão. O próximo passo é desenvolver drones para tarefas como inspeção e pulverização de plantações. “Uma prioridade agora é o mercado latino-americano, especialmente a agricultura no Brasil”, diz Kevin On, diretor de comunicações da DJI.

Como tudo na China, o governo teve papel decisivo na arrancada da inovação no país. Em 2006, começou a dar subsídios à pesquisa e prêmios às patentes. Começou também a cobrar pela transferência de tecnologia para empresas estrangeiras, numa estratégia que trouxe uma série de problemas com a Organização Mundial do Comércio. Mas a China não deu muita bola e foi em frente. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento passaram de 20 bilhões de dólares, na virada do século, para quase 200 bilhões. Em 2015, o Partido Comunista lançou o programa Made in China 2025, inspirado no alemão Indústria 4.0, de 2013. Neste ano, veio um novo plano, de tornar o país líder global em inteligência artificial até 2030. Segundo estimativas da consultoria McKinsey, o projeto poderá aumentar o crescimento da economia chinesa de 0,8 a 1,4 ponto percentual por ano. Metade dos trabalhos no país pode ser automatizada, numa mudança que altera as principais cadeias globais de produção.

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A mão do governo

A trajetória da BYD, maior fabricante de carros elétricos do planeta, mostra como decisões do governo têm ajudado empresas inovadoras no país. A BYD nasceu como fabricante de baterias de celulares, há 22 anos. Em 2005, lançou seu primeiro carro, o F3, um sedã a gasolina criticado por se parecer muito com um Corolla. Em 2008, veio o primeiro híbrido da BYD e também o primeiro carro com plugin do mundo. O grande salto foi dado graças a incentivos oficiais à compra de carros elétricos, e com grandes lotes de táxis, ônibus e caminhões elétricos vendidos a municípios e a estatais chinesas. O próximo alvo da BYD são os trens elétricos. Vinte cidades já estão interessadas, segundo a empresa. Em duas décadas, a BYD acumula mais de 12 000 patentes registradas. Desenvolve e fabrica tudo, entre motores, baterias e equipamento de bordo.

Mas, para virar líder global em inovação, os chineses sabem que não podem depender só do governo e têm se abrido como nunca. Atualmente, o país é o terceiro que mais recebe investimento privado em inteligência artificial, segundo um estudo da consultoria McKinsey. Fundos de investimento chineses aplicaram 38 bilhões de dólares em empresas de tecnologia de outros países entre 2014 e 2016, ou 14% de todo o investimento global (ante 4% de participação no triênio anterior).

Laboratório da BYD, em Shenzhen: em 22 anos, a montadora de carros elétricos registrou 12 000 patentes | Qilai SheN/Getty Images

“A maior fragilidade da China atualmente é a dificuldade de atrair talentos globais”, diz Diogo Castro e Silva, presidente do fundo chinês de investimento Fosun no Brasil. Um dos lugares que atacam esse problema é o oitavo andar de um prédio comercial de Shenzhen que abriga, no térreo, o Huangiangbei, maior mercado de quinquilharias eletrônicas do planeta. É onde fica a Hax, maior aceleradora de hardware- do mundo. Ali, computadores de ponta dividem o espaço com martelos, serras elétricas e furadeiras. Criada há quatro anos, a aceleradora seleciona por ano 30 empresas (entre cerca de 1 000 candidatas) focadas em projetos de robótica. Como diz seu coordenador, o engenheiro francês Benjamin Joffe, passear por entre suas mesas de trabalho dá uma ideia de como anda a inovação pelo mundo. As equipes, com cerca de quatro pessoas, vêm de países como Estados Unidos, Canadá, Índia, Montenegro, Portugal e Taiwan. O Brasil nunca enviou times.

Para participar do programa de 111 dias, cada equipe recebe 100 000 dólares e aceita ceder à Hax 9% do capital. Se tudo der certo, a empresa sai dali não só com um produto mais bem acabado como também com uma cadeia de fornecedores estabelecida. Essa é uma vantagem de Shenzhen, em particular, como também da China: seu gigantesco parque fabril. “Shenzhen nunca vai ser igual ao Vale do Silício, e nem quer. Mas a cidade oferece acesso a 10 000 fábricas. Seu maior diferencial não é mais o custo, é a agilidade”, diz Joffe.

As startups espalhadas pelas mesas de trabalho da Hax ainda dão seus primeiros passos, mas sonham alto. A Mindset, do Canadá, desenvolve fones de ouvido com eletrodos que ajudam os usuários a se concentrarem. A Teamosa, de Taiwan, criou uma máquina no estilo da Nespresso para chás. Ela identifica o tipo de chá e ajusta a temperatura da água e o tempo de infusão. A Nuada, de Portugal, projeta luvas que permitem erguer até 40 quilos com a mão relaxada — o foco é a reabilitação física e a terceira idade.

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O sonho de todos os empreendedores do país é seguir a trajetória da fabricante de brinquedos Makeblock, que nasceu na Hax há quatro anos e hoje vale 200 milhões de dólares (veja quadro ao lado). A história da companhia e de outras startups também mostra que, apesar dos grandes avanços, a China ainda tem enormes barreiras a superar. As principais são a pressão das famílias por carreiras estáveis para seus filhos, a educação pouco empreendedora e, principalmente, a censura. Se conseguir se tornar o país mais inovador do planeta sem permitir a livre troca de ideias, a China surpreenderá o mundo outra vez. 

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