Centro de reciclagem da engarrafadora de bebidas Coca-Cola Femsa, em São Paulo: 700.000 garrafas PET processadas por dia (Eduardo Frazão/Exame)
Da Redação
Publicado em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.
Última atualização em 6 de maio de 2020 às 11h23.
A cada ano, o Brasil produz quase 80 milhões de toneladas de lixo. Um terço desse volume vai parar nos lixões a céu aberto ou em aterros improvisados, sem a vedação adequada para impedir a contaminação do solo. Cerca de 90% dos resíduos descartados de forma inadequada poderiam ser reaproveitados, mas, por falta de políticas públicas para coleta seletiva e reciclagem do lixo, o país reutiliza menos de 4% do total descartado. Esse índice é pior ainda quando se considera apenas o lixo plástico, um dos vilões da poluição de mares e oceanos.
O Brasil é o quarto maior produtor mundial de lixo plástico, mas recicla apenas 1,3% desse material. Na Índia, 60% de todo o plástico produzido é reciclado. Além do impacto ambiental, há perda de uma importante fonte de receita. Na Alemanha, a reciclagem de lixo movimenta 70 bilhões de euros por ano. No Brasil, cerca de 14% do lixo produzido é de embalagens de plástico. Se fosse embalagem reciclável, esses resíduos poderiam gerar mais de 6,5 bilhões de reais para a economia.
“É muito dinheiro, sem falar nos benefícios que poderiam ser criados para o meio ambiente e para a qualidade de vida da população”, diz Carlos Silva Filho, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).
Algumas iniciativas tentam mudar esse cenário. No fim do ano passado, a unidade Coca-Cola Femsa, engarrafadora da fabricante de bebidas Coca-Cola, criou um centro de reciclagem em São Paulo, o SustentaPet. Mais de 700.000 garrafas PET chegam ao local todos os dias. Em uma área de 3.000 metros quadrados, que exigiu um investimento de 2,5 milhões de reais, as embalagens são prensadas em uma máquina e enviadas a empresas de reciclagem, que trituram o plástico e o transformam numa resina.
Ao ser prensado, o material ocupa muito menos espaço nos caminhões e reduz o número de viagens até as indústrias de reciclagem. Depois disso, a Coca-Cola e outras empresas compram o material para fazer novas embalagens. “A grande vantagem é que estamos conseguindo um volume muito grande de garrafas PET, movimentando toda a cadeia de reciclagem”, diz Thais Vojvodic, gerente de sustentabilidade da Coca-Cola. Hoje, as embalagens de suas bebidas levam, em média, apenas 7% de plástico reciclado. Até 2030, a meta da empresa é que as embalagens tenham 50% de plástico reciclado.
Para conseguir um volume significativo de garrafas, a Coca-Cola fez parcerias com dezenas de cooperativas de catadores de lixo, oferecendo contratos de um ano, com preços definidos — algo raro no setor. Em outra frente de trabalho, a empresa investiu cerca de 1 milhão de reais no aplicativo Cataki, criado em 2017 para conectar os consumidores e os catadores de lixo por meio de um sistema de geolocalização. A ideia é que a plataforma ganhe novas funcionalidades e chegue a mais gente.
Hoje, o aplicativo conta com cerca de 90.000 usuários, sendo 3.660 catadores individuais e 178 cooperativas de catadores. “Vamos direcionar o investimento em tecnologia para crescer exponencialmente neste ano”, diz Juliana Fullmann, coordenadora de projetos do Cataki.
O Brasil tem um marco regulatório que estabelece as diretrizes para promover a reciclagem e a reutilização do lixo. Aprovada em 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos instituiu a responsabilidade compartilhada dos geradores de resíduos, como fabricantes, distribuidores, comerciantes e consumidores, para reduzir o volume de lixo e o desperdício de materiais. Muitas coisas previstas pela lei, no entanto, ainda não saíram do papel.
“Precisamos fomentar a logística reversa do lixo, que ainda deixa a desejar no Brasil. Por isso, lançamos em fevereiro o programa Lixão Zero, que visa, entre outras coisas, à instalação de usinas de reciclagem de lixo, como as que existem nos países desenvolvidos”, disse Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, à EXAME. “Até agora, muito pouco havia sido feito, por parte do poder público, em relação à reciclagem de lixo e à agenda ambiental urbana. Queremos mudar esse cenário.”
Nos Estados Unidos, 35% do lixo é reaproveitado. Com isso, milhares de empresas têm acesso a material reciclado para fabricar embalagens, papel, garrafas e produtos de madeira. Usinas de reciclagem de lixo distribuídas pelo país transformam a cada ano 35 milhões de toneladas de resíduos, ou 10% do total do lixo gerado, em energia elétrica.
No Brasil, a primeira unidade desse tipo deverá ser construída neste ano na Região Centro-Oeste, com investimentos de 500 milhões de dólares obtidos pelo Ministério do Meio Ambiente junto ao Novo Banco de Desenvolvimento do Brics, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A usina deverá ser operada pela iniciativa privada.
Os consumidores também parecem dispostos a fazer sua parte. Uma pesquisa realizada pela consultoria Kantar no ano passado mostra que 43% dos brasileiros preferem comprar produtos com embalagens feitas de material reciclado. Outros 25% concordariam em pagar mais por esses itens e 40% dizem adotar medidas para reduzir o consumo de plástico. São números próximos aos dados internacionais. “Trata-se de uma preocupação mundial”, diz Manoela Bastos, diretora da Kantar. “As empresas já perceberam essa tendência e estão se esforçando para atender ao desejo do consumidor.”
Um exemplo é a fabricante de cosméticos Natura, que estabeleceu parâmetros de sustentabilidade para seus fornecedores de embalagens, cooperativas de catadores de lixo e empresas de reciclagem. Com várias iniciativas nessa área, a empresa garante que 33% dos resíduos de suas embalagens sejam reciclados — a meta neste ano é elevar esse índice para 50%. Para cumprir as metas de sustentabilidade, algumas empresas no país estão até assumindo funções que tradicionalmente estão na alçada do poder público.
Neste ano, a fabricante de bens de consumo Unilever deve destacar executivos para participar de reuniões com gestores de aterros sanitários espalhados pelo país. A ideia é apresentar métodos mecanizados de separação do lixo já amplamente utilizados na Europa e nos Estados Unidos. Por aqui, boa parte desse processo ocorre de forma manual ou ele nem é feito. A intenção é que um volume maior do material que pode ser reciclado volte para o mercado.
A Unilever também está de olho nas startups focadas no estímulo à reciclagem. No ano passado, a empresa fez uma parceria com o programa de fidelidade ambiental Molécoola, que criou um sistema de troca de frascos usados das marcas parceiras por pontos que, somados, dão direito a um novo item da marca. A entrega das embalagens é feita nas 18 unidades da Molécoola em São Paulo e em outras cidades. Para participar é só baixar o aplicativo. “Essas iniciativas podem contribuir muito para estimular a reciclagem no país”, diz Paula Schreiber, gerente de compras da Unilever.
É bom para o meio ambiente e para os negócios. Em 2018, as chamadas “marcas com propósito” da Unilever, baseadas em princípios de sustentabilidade, foram responsáveis por 75% do aumento das vendas. São linhas de produtos de beleza, como Seda e Tresemmé, vendidos em frascos em que metade do plástico utilizado foi reciclada.
Muitos executivos responsáveis por estratégias de gestão ambiental entendem que campanhas de educação para o descarte correto do lixo são fundamentais. Em 2019, a suíça Nestlé lançou um conjunto de estratégias para incentivar ações de reciclagem e de proteção da natureza entre os consumidores. Em janeiro deste ano, a empresa criou um robô, baseado em inteligência artificial, que responde em um número de – WhatsApp às dúvidas sobre quais produtos podem ser reciclados, como deve ser feita a separação do lixo, entre outras questões relativas à destinação dos resíduos.
Nos últimos três anos, a Nestlé investiu cerca de 200 milhões de reais na plataforma e em outras iniciativas para promover a coleta seletiva de lixo. “O brasileiro ainda não tem muitas informações sobre como separar o lixo, que é o pontapé inicial da coleta seletiva e da agenda ambiental urbana”, diz Barbara Sapunar, gerente de criação de valor compartilhado da Nestlé no Brasil. “Nossa estratégia é investir na ponta inicial da cadeia.” Se tudo der certo, será o fim dos urubus que rondam os aterros a céu aberto e dos lixões que contaminam o meio ambiente em várias cidades brasileiras.