Revista Exame

O dia em que a bolsa surtou

No último dia 6, o mercado financeiro americano teve uma das mais bruscas desvalorizações da história - até agora, ninguém sabe o que aconteceu

Operadores no pregão da bolsa de Nova York: "As máquinas estão no comando" (Spencer Platt/Getty Images)

Operadores no pregão da bolsa de Nova York: "As máquinas estão no comando" (Spencer Platt/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 4 de março de 2011 às 17h30.

Desvalorizações repentinas, quedas violentas e ondas de pânico fazem parte do jogo para quem investe em ações. As sessões mais famosas da história da Bolsa de Valores de Nova York são aquelas em que o dia começou bem e terminou muito mal: a Quinta-Feira Negra, em 1929, e a Segunda-Feira Negra, em 1987.

Em 13 de outubro de 2008, aconteceu o contrário. Em apenas um dia, em meio à crise pós-Lehman Brothers, a bolsa teve uma valorização de 11%. Pois o último dia 6 de maio entrou nessa lista de dias históricos do mercado financeiro americano - e será lembrado como o dia em que a bolsa surtou. Até por volta das 14h30, aquele era um dia normal. Influenciados pela crise do euro, os investidores vendiam suas ações e o Índice Dow Jones caía cerca de 300 pontos. A partir daí, e sem nenhuma justificativa aparente, as ações começaram a perder valor numa velocidade anormal. Em poucos minutos, o Índice Dow Jones caiu 500, 600, 700, 800, 900 pontos, até chegar ao fundo do poço, numa queda de 998 pontos, a maior da história.

Naquele momento, as perdas totais na bolsa americana chegaram a 1 trilhão de dólares. Simultaneamente, os operadores começaram a notar uma série de anomalias no pregão. As ações da gigante de bens de consumo Procter&Gamble caíram quase 30% em 5 minutos, algo praticamente impossível dado o tamanho da empresa. As ações da consultoria Accenture também tiveram comportamento bizarro. Num momento, valiam 40 dólares. Segundos depois, eram negociadas a 1 centavo. Veio, em seguida, a outra surpresa. Na mesma velocidade com que caiu, o Dow Jones se recuperou. Ao fim do dia, teve uma queda de modestos 347 pontos. Tudo isso sem que ninguém tivesse a mais singela ideia do que ocorreu.

Imediatamente, começaram a circular teorias sobre as razões da montanha-russa da quinta-feira. Segundo a primeira delas, um infeliz operador do Citigroup teria apertado um botão errado e vendido 16 bilhões de ações em vez de 16 milhões. O Citi negou a história. Logo depois, a culpa foi transferida para uma corretora de Chicago, a Terra Nova, que também negou ter qualquer coisa a ver com o pânico. Ataques de hackers e ciberterrorismo também chegaram a fazer parte da lista de razões para o que já ficou conhecido como o "Crash das 14:45".

No início da semana seguinte, surgiu outro potencial culpado: o fundo Universa, que tem entre seus sócios o escritor Nassim Taleb, autor de livros sobre o mercado financeiro. No meio da tarde, o Universa teria feito uma grande aposta na queda do mercado, levando outros investidores a se desfazer de suas posições. Finalmente, houve quem dissesse que a bolsa caiu simplesmente porque estava cara demais. As operações com as 286 ações que oscilaram mais de 60% nos minutos em que o mercado ficou desgovernado acabaram sendo canceladas.


Seja lá o que deu início ao Crash das 14:45, o fato é que a brutal oscilação mostrou que há algo de errado com as bolsas do país mais rico do mundo. Na última década, o mercado financeiro americano passou por uma transformação sem precedentes. Uma das principais mudanças foi a criação de pregões eletrônicos que concorrem com os tradicionais (como a bolsa de Nova York e a Nasdaq), o que tornou o sistema muito mais complexo, interconectado e, dizem os críticos, sujeito a falhas. Há dez anos, as bolsas tradicionais respondiam por 80% do volume negociado diariamente. Hoje, dois terços das operações acontecem em dúzias de instituições espalhadas pelo país, em cidades como Kansas City (no Missouri), Austin (no Texas) e Red Bank (em Nova Jérsei).

Quase 30 bilhões de ações trocaram de mãos nos Estados Unidos naquela quinta-feira. Apenas 2,58 bilhões delas foram negociadas no pregão da bolsa de Nova York. O que isso tem a ver com o pânico? Segundo especialistas, no momento em que as ações começaram a despencar, algumas bolsas eletrônicas deixaram de negociar com outras - porque seus computadores foram programados para interromper negócios em situações de estresse. Em razão disso, não havia liquidez no mercado: faltavam compradores, o que levou os preços ao chão. Como tudo isso aconteceu de maneira automática, com sistemas eletrônicos de última geração, um colunista do jornal Wall Street Journal afirmou: "As máquinas estão no comando agora".

O surto das bolsas deixou reguladores, investidores e congressistas de cabelo em pé. Não é preciso pensar muito para imaginar o risco que uma bolsa descontrolada representa para a economia americana e o resto do mundo. Logo nos dias seguintes, foi iniciada pelo Congresso uma investigação para entender o que diabos aconteceu naquela quinta-feira. Paralelamente às investigações, começou o ataque às bolsas eletrônicas.

"A tecnologia se antecipou aos reguladores, e os reguladores precisam se antecipar à tecnologia", disse o senador republicano Richard Shelby. Os defensores das bolsas eletrônicas alegam que seu surgimento barateou os custos de transação para os investidores e que é impossível voltar atrás. Para tentar dar uma resposta às críticas, os responsáveis pelos pregões paralelos já negociam formas de tornar o sistema menos instável.

Uma solução discutida é a criação de sistemas que interrompam as negociações com base em parâmetros semelhantes - ou seja, todas as bolsas parariam ao mesmo tempo, evitando o que aconteceu no dia 6. Outra ideia é que todos concordem em interromper a negociação de papéis que caiam mais de 10% num mesmo dia, para evitar que o pânico se autoalimente. Enquanto nada acontece, convém torcer para que o mercado financeiro mais importante do mundo não surte outra vez.

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