Revista Exame

Deus é brasileiro?

Não sabemos. Mas é melhor não contar com isso. Lula lega ao sucessor um Brasil mais autoconfiante. O maior risco, agora, é o da arrogância

Produção da FIAT, em Betim: em diversos setores, a economia brasileira atrai cada vez mais investimentos de empresas estrangeiras (Germano Lüders/EXAME.com)

Produção da FIAT, em Betim: em diversos setores, a economia brasileira atrai cada vez mais investimentos de empresas estrangeiras (Germano Lüders/EXAME.com)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

No início do ano, passei quase dois meses no Brasil, minha visita mais longa desde que morei em São Paulo entre 1996 e 1999 como chefe da sucursal da revista The Economist. Foi uma oportunidade para apreciar com mais detalhes o que mudou na última década. Fiquei impressionado com a profusão de motocicletas, que antigamente seriam bicicletas. Mais brasileiros negros são taxistas, antes um monopólio dos brancos. Talvez tenha sido sorte minha, mas até o infame trânsito de São Paulo não pareceu tão ruim graças ao rodoanel, aos novos viadutos sobre as marginais e à expansão dos serviços de trens e metrô.

Novos hotéis, restaurantes e shopping centers pipocaram por todo o país. Vinho argentino razoável pode ser comprado em supermercados instalados em favelas, em vez dos lamentáveis produtos alemães em garrafas azuis que eram muito comuns até em bairros nobres uma década atrás. Já não é mais apenas o estado de São Paulo que está se saindo bem - as cidades médias do interior estão mais dinâmicas do que nunca. O Brasil se tornou um país mais integrado tanto geográfi ca como socialmente, com o Nordeste finalmente se aproximando das demais regiões. Mas a transformação mais inesperada para mim foi a do Rio de Janeiro. Quando morei no Brasil, o Rio era sinônimo de declínio, com suas favelas governadas pelas máfi as, seus políticos corruptos e incompetentes, sua economia estagnada e seus serviços públicos incuráveis. Agora, há de novo uma primavera no caminho do Rio. A economia do estado está crescendo de maneira acelerada. José Beltrame, um admirável secretário de Segurança do estado, está começando a mostrar que o caminho para pacificar as favelas passa pelo policiamento. Meio dia passado com o pessoal da ONG Afro Reggae no Complexo do Alemão sugeriu um futuro melhor, com base na noção de que a empresa privada pode prosperar se e quando o governo, em todos os seus três níveis, fornecer os bens públicos básicos de infraestrutura e segurança que faltaram durante tanto tempo. O denominador comum de todas essas mudanças é que há muito mais dinheiro em todo o Brasil, tanto para governos e empresas como para moradores de favelas.


Confiança Internacional

A mudança na percepção do Brasil no exterior tem sido igualmente dramática.Quando o governo de Fernando Henrique Cardoso foi forçado a desvalorizar o real, em janeiro de 1999, muitos comentaristas estrangeiros imaginaram que o Plano Real, como seus antecessores menos inteligentes, havia fracas sado. Quando ficou claro que Lula venceria em 2002, investidores nervosos elevaram os spreads da dívida brasileira de tal modo que renomados economistas disseram que um default era inevitável. Lula foi mais sábio que eles: sabia que os maiores prejudicados por um calote seriam os fundos de investimento e de pensão brasileiros.

Oito anos depois, os investidores estrangeiros estão extraordinariamente confiantes em relação à eleição. Quase todo dia surgem novos investimentos estran gei ros no Brasil: fundos de private equity e imobiliários, empresas de publicida de pagando quantias vultosas por agências locais, ou novos investimentos industriais de grupos americanos, europeus ou asiáticos. Todos querem um pedaço do Brasil. Tentamos captar essa empolgação em The Economist na reportagem de capa de novembro passado. Intitulada O Brasil Decola, a edição trazia na capa a imagem do Cristo levitando no Corcovado. A eleição presidencial e a troca de comando suscitam duas perguntas. Qual a natureza do legado de Lula? Será justifi cado o otimismo atual? O Brasil está certamente menos injusto e mais próspero. Mas quanto disso se deve a Lula? Na minha visão, menos do que ele afirma e mais que sugerem seus detratores. Ao contrário das alegações de Lula de estar quebrando o molde de subdesenvolvimento brasileiro ("nunca antes na história..."), os historiadores julgarão que seu governo continuou as políticas de Fernando Henrique Cardoso, em especial na economia e na educação. Essa é uma grande quali da de. É fácil esquecer que a nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central e a elevação da meta de superávit primário por Antônio Palocci não foram instantaneamente populares. Lula também teve sorte. Graças às reformas liberalizantes com frequência impopulares de FHC, o Brasil estava bem situado para surfar a onda da demanda de commodities desencadeada pela industrialização da China e da Índia.

Os críticos de Lula subestimaram, porém, sua coragem política e a ousadia de algumas de suas iniciativas. Políticas sociais mais justas foram responsáveis por cerca de metade da redução da pobreza e desempenharam um papel ainda maior na queda da desigualdade de renda. Lula sabe, por experiência pessoal, o que signifi ca ajudar os brasileiros mais pobres a subir na escala social. Quando eu o entrevistei, em agosto, para The Economist, ele falou de seu orgulho de ser "o presidente que mais fez escolas técnicas na história do Brasil", tendo inaugurado 214 em oito anos. Lula entregará ao sucessor um país mais forte, mais autoconfi ante, desfrutando de um círculo virtuoso em que o boom de commodities afrouxou a tradicional limitação ao crescimento pelo balanço de pagamentos, enquanto uma melhor política social fomentava o consumo doméstico. O próximo presidente não deverá ter problemas de apoio no Congresso. Tudo isso compõe a transição mais suave de um presidente a outro na história moderna do Brasil.


Estado empresário?

Assim, o principal risco que o Brasil corre talvez seja o da arrogância, de acreditar que Deus é mesmo brasileiro. Seria mais sábio ser agnóstico. Isso porque há muitos problemas e perigos à frente. O maior desafi o para o próximo governo será como administrar o desenvolvimento dos campos de petróleo do pré-sal enquanto mantém a competitividade industrial do Brasil e melhora a qualidade da governança do país. Usar o pré-sal para criar uma indústria petrolífera de serviços do petróleo de classe mundial, como o governo deseja, faz sentido. Mas é fundamental cuidar bem dos detalhes. Se não for gerido criteriosamente, o pré-sal poderá acabar enfraquecendo a Petrobras. Os desafios técnicos envolvidos em sua exploração são enormes e caros. Ao tornar a Petrobras a operadora exclusiva, a nova legislação lhe confere um monopólio pouco saudável. Se estabelecer um piso demasiado alto para o conteúdo nacional dos insumos, o Brasil terá de arcar com uma indústria petrolífera cara e pouco competitiva.

O petróleo inevitavelmente contribuirá para o fortalecimento do real. Assim, isso torna ainda mais importante eliminar outras fontes de valorização da moeda. Estas incluem o chamado carry trade, em que investidores estrangeiros fazem empréstimos mais baratos no exterior para comprar instrumentos da dívida brasileira. José Serra tem razão, com certeza, ao pedir um corte no desperdício de gastos públicos para eliminar o déficit fiscal, simplificar impostos e baixar as taxas de juro. Isso é ainda mais importante porque há muitas coisas que precisam de investimentos públicos, da infraestrutura à melhoria da qualidade da educação. E o impacto da história de extrema desigualdade do Brasil foi de tal ordem que, como assinala o pesquisador Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, outras duas décadas de progresso social na mesma escala que a dos últimos dez anos serão necessárias só para trazer os indicadores sociais ao valor que deveriam estar num país com a renda do Brasil.

O próprio Lula tem claro que o maior papel desempenhado pelo Estado na economia provocado pela crise financeira deve ser temporário. "Eu não quero um Estado empresário", disse ele na entrevista que me concedeu. Caberia ao Estado antes induzir a iniciativa privada, fiscalizar e estar preparado para intervir quando necessário. Mas será que todos em seu partido pensam assim? Se a vitória de Dilma Rousseff se confirmar, ela terá de agir prontamente para tranquilizar os empresários, tanto brasileiros como estrangeiros, de que não é a stalinista que al guns pintam. Sua reputação de pessoa prática que quer resultados rápidos dá margem a esperanças de que poderá ser tão pragmática quanto Lula. Mas ela não tem o jogo de cintura político de seu criador. No papel, terá maioria legislativa confortável. Mas o PMDB é um aliado caro e exigirá grandes nacos em empregos e verbas por sua lealdade.

Se a economia mundial não cair numa dupla recessão, e a China não espirrar, o Brasil deve continuar crescendo cerca de 5% ao ano. Isso tornaria possível resolver gradualmente muitos problemas, da Previdência à redução do déficit federal e da dívida bruta. Mas o mundo é um lugar muito mais incerto do que era alguns anos atrás. O Brasil tem uma boa oportunidade. É melhor não desperdiçá-la.


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