Revista Exame

Democracia sobreviverá sem arranhões à passagem de Trump?

Com proximidade do dia em que Donald Trump assumirá o poder, cresce temor de que ele entre para a história como um presidente inesquecível — no mau sentido

Donald Trump: Futuro presidente disse que "fará tudo o que puder" para ajudar a apoiar a liberdade do povo cubano (Mike Segar/Reuters)

Donald Trump: Futuro presidente disse que "fará tudo o que puder" para ajudar a apoiar a liberdade do povo cubano (Mike Segar/Reuters)

ES

Eduardo Salgado

Publicado em 12 de janeiro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 12 de janeiro de 2017 às 05h55.

São Paulo — A poucos dias de Donald Trump assumir a Presidência, há muitas dúvidas sobre como serão seus anos no poder, mas uma coisa parece estar clara. Ele é diferente de tudo o que se viu antes. A começar pela tremenda aversão às críticas de quem não concorda com suas posições. Na visão de Trump, não há opositores, mas inimigos. Isso ficou claro em uma mensagem que o presidente eleito publicou pouco antes da virada do ano, momento em que as pessoas costumam colocar as diferenças de lado. “Feliz ano novo a todos, incluindo meus muitos inimigos e aqueles que lutaram contra mim e perderam tão feio que não sabem o que fazer”, escreveu o presidente eleito. Durante a campanha, Donald Trump muitas vezes fez discursos inflamados usando uma retórica de “nós contra eles”, o que ajudou a atrair o eleitorado. Depois da vitória, muitos esperavam que ele adotasse um tom mais conciliador, mas o que se viu foi a manutenção do mesmo padrão.

Barack Obama foi o primeiro presidente, já no primeiro mandato, a ter uma conta do Twitter. Nas mãos de Trump, porém, essa plataforma de comunicação tem ganhado uma nova dimensão. “Obama usava o Twitter para fazer propaganda de seu governo. Trump faz outra coisa. Muitos de seus tuítes são mentiras”, diz o historiador Glenn C. Altschuler, professor de estudos americanos na Universidade Cornell. No início de janeiro, Trump tuitou que as agências de inteligência dos Estados Unidos não encontraram evidências de que o resultado da eleição tinha sido afetado por ações de hackers da Rússia. Não era verdade.

Uma investigação conjunta da CIA, do FBI e da NSA concluiu que o presidente russo, Vladimir Putin, ordenara uma campanha para prejudicar a candidata democrata, Hillary Clinton, e colocar o processo democrático dos Estados Unidos em descrédito. Durante o período eleitoral, os diretórios dos partidos Democrata e Republicano tinham sido hackeados, mas somente as informações que prejudicariam Hillary vazaram. “A interferência russa não tem precedentes em nossa história”, diz John M. Carey, professor de ciências sociais no Dartmouth College, uma das instituições que fazem parte da Ivy League, o grupo das melhores universidades americanas. Reince Priebus, futuro chefe de gabinete, reconheceu a participação da Rússia. Mas, no Twitter, Trump continuou defendendo uma aproximação com Putin. “Ter boas relações com a Rússia é uma coisa boa, não ruim. Somente as pessoas ‘estúpidas’ ou tolas pensariam que isso é ruim!”, escreveu.

Para Trump, a conta no Twitter tem uma clara razão de ser. Com ela, tenta estabelecer uma ligação direta com seus apoiadores, longe do filtro da imprensa. Sem amarras, atira contra todos os que enxerga como ameaça. Em pouco mais de dois meses, Trump deu mostras dessa intolerância. Na lista de seus alvos estão a ONU, chamada por Trump de um “clube” para as pessoas “se divertirem”; a montadora Toyota, ameaçada por ele com um pesado imposto de importação por construir uma nova fábrica no México; e até a atriz Meryl Streep, que o criticou durante a cerimônia do Globo de Ouro por ele ter ridicularizado um jornalista com deficiência física em 2015. “Nunca tivemos um presidente eleito que tenha insultado tantas pessoas que vê como oponentes”, diz Omar Wasow, professor de ciência política na Universidade Princeton.

Somando tudo isso, um grande número de especialistas e cidadãos comuns começa a ficar com uma dúvida tipicamente latino-americana: a democracia do país sobreviverá sem arranhões à passagem de Trump pela Casa Branca? Parece um mau sinal o fato de ele ser um populista de livro-texto. Embora tenha sido eleito pelo Partido Republicano, um dos dois grandes da política americana, Trump critica o establishment político e age como se estivesse descolado da estrutura partidária tradicional. Faz isso reforçando a imagem de grande salvador da pátria, capaz de, sozinho, resolver problemas tidos como esquecidos ou insolúveis. O resultado é o aumento da imprevisibilidade. Mas tem mais: seguindo o figurino tradicional dos populistas, Trump tenta deslegitimar seus opositores, como nas vezes em que acusou Hillary de ser criminosa. Durante a campanha, era comum ouvir os gritos de seus eleitores nos comícios pedindo que a democrata fosse colocada atrás das grades. “Podemos estar diante dos desafios mais sérios para nossas instituições democráticas desde a Segunda Guerra Mundial”, diz Larry Diamond, professor de ciência política na Universidade Stanford, membro do centro de estudos conservador Hoover Institution e uma das maiores autoridades no estudo da democracia (veja entrevista no quadro acima).

Sempre que se discute o fenômeno Trump, surge alguém para lembrar dos freios e contrapesos do sistema americano, como um Judiciário eficiente e uma imprensa independente. O argumento é que Trump não conseguirá fazer muitos estragos. Num artigo publicado no The New York Times no final de dezembro, os professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos da Universidade Harvard, dizem que não é bem assim. Levitsky e Ziblatt explicam que todas as democracias têm regras escritas, que podem ser protegidas pela Justiça, e normas informais, igualmente importantes, mas suscetíveis ao comportamento dos políticos. Um exemplo: na maior parte da história americana, os líderes de ambos os partidos resistiram à tentação de usar o poder temporário de que dispunham para maximizar uma vantagem para seu grupo. Esse entendimento já vinha erodindo nos últimos anos com a polarização no Congresso. O temor é que Trump, um “não político” que parece dar pouco valor ao decoro e às tradições, acabe por deteriorar ainda mais o quadro. O risco, nesse caso, não é de colapso do sistema político. O que realmente assusta é pensar no que Trump poderia fazer numa crise séria, como uma guerra ou um atentado terrorista de grandes proporções. Numa situação dessas, o que sabemos hoje sobre seu padrão de comportamento intolerante e seus impulsos autoritários não é nada tranquilizador.

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