Votação do novo Marco do Saneamento no Congresso: o projeto deve estimular investimentos de até 700 bilhões de reais (Divulgação/Divulgação)
André Jankavski
Publicado em 16 de janeiro de 2020 às 05h30.
Última atualização em 16 de janeiro de 2020 às 16h16.
Regras anacrônicas, excesso de burocracia, interesses de determinados grupos que engessam a legislação e minam a competitividade do Brasil. Tirar o país do atraso não é uma tarefa simples. A demora para aprovar a reforma da Previdência — uma discussão que começou no governo do presidente Michel Temer e foi concretizada somente em 2019 — mostra bem isso. Além dela, há outros grandes desafios à frente para o governo até 2022: as reformas tributária e administrativa, que devem consumir meses (ou até anos) em discussão e negociação.
Afinal, são intervenções com grande poder de transformação do país, mas vistas como negativas por parte da população e, claro, dos congressistas. Numa raia paralela, correm duas dezenas de projetos de microrreformas econômicas. São mudanças menos vistosas, mas com potencial de aumentar a produtividade da economia brasileira — e trazer resultados no curto prazo.
Trata-se de uma agenda iniciada também durante o governo Temer e que, agora, foi abraçada pelo Congresso, juntamente com a equipe econômica do ministro Paulo Guedes. As microrreformas têm um alvo claro: diminuir o peso da ineficiência brasileira na economia. Um exemplo ocorreu em dezembro do ano passado. Com o apoio do governo, mas sem o empenho de figuras centrais da administração do presidente Jair Bolsonaro, foi aprovado em dezembro um novo Marco Legal do Saneamento pela Câmara dos Deputados.
A principal mudança com o projeto é a proibição da contratação sem concorrência e diretamente entre os titulares dos serviços (as prefeituras) e as concessionárias — modalidade que beneficiava as companhias estaduais de saneamento no fornecimento do serviço nos municípios. Com a nova regra, a iniciativa privada será chamada a participar das concorrências, e isso poderá atrair investimentos de 600 bilhões a 700 bilhões de reais. O novo marco prevê também que, até 2033, 99% da população do país- tenha água potável e 90% tenham acesso a coleta de esgoto.
A alteração nas regras do saneamento representa apenas um pequeno passo para mudar a realidade brasileira — aliás, ainda precisa passar pelo crivo do Senado. No fim de novembro, a Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade divulgou um estudo realizado com o Movimento Brasil Competitivo estimando em 22% o impacto do “custo Brasil” no produto interno bruto.
Ou seja, por ano, as empresas brasileiras gastam até 1,5 trilhão de reais a mais do que a média dos países da OCDE, clube das nações ricas, para contratar e manter funcionários, calcular e pagar tributos e responder a processos judiciais, entre outros itens. Um dos problemas mais visíveis é a infraestrutura.
Segundo o estudo, a falta de uma base, que inclui uma malha de transporte eficiente, gera custos adicionais de 190 bilhões a 230 bilhões de reais todo ano. Para resolver o problema, é necessário acelerar os investimentos no setor. Um estudo da consultoria McKinsey estima que o país precisa mais do que dobrar os aportes em infraestrutura para chegar à média global de gastos, algo que exigiria 300 bilhões de reais por ano — uma quantia que nem a União, muito menos estados e municípios, tem no momento.
Por isso, uma das frentes em que o Ministério da Economia está atuando é a ampliação da abertura para concessões e privatizações. Em dezembro, o governo anunciou um pacote de 44 leilões para 2020, os quais deverão render 100 bilhões de reais em investimentos. Para deixar o caminho livre para os investidores, o governo está patrocinando mudanças em parceria com o Congresso: uma Lei Geral das Concessões.
Entre as mudanças, além da unificação de quatro leis, estão a redução da burocracia de contratos com a adoção de concessões simplificadas para projetos com investimentos de até 100 milhões de reais, a resolução de conflitos por meio de arbitragem e o estímulo à criação de debêntures incentivadas de infraestrutura (debêntures são títulos de crédito emitidos por empresas com o objetivo de captar recursos).
A meta, segundo César Frade, coordenador-geral de reformas microeconômicas do Ministério da Economia, é dar mais segurança jurídica aos projetos e também fazer com que os emissores paguem taxas de retorno maiores aos investidores, algo que ajudaria a popularizar essa forma de investimento. Dessa maneira, é esperada a entrada de recursos por outras vias, como fundos de pensão, que estão procurando diversificar investimentos em um momento de juros reduzidos.
“Com essas mudanças, acreditamos que as debêntures passarão de 20% para cerca de 33% na representatividade dos investimentos em infraestrutura até o fim do governo”, diz Frade. “Isso diminuirá o peso dos investimentos públicos e acelerará a retomada do setor.” Para o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), relator do projeto da nova Lei Geral das Concessões, é possível que a votação ocorra já em fevereiro. No campo da infraestrutura, também está prevista para o ano a discussão de um marco legal do setor ferroviário.
O mercado de gás natural é mais um que pode ser beneficiado pela chegada de uma nova legislação. Ao longo do ano passado, foram aprovadas medidas para aumentar a competição na área, com o fim do monopólio da Petrobras. A indústria química é um dos setores que esperam a conclusão dessa agenda. Boa parte do setor depende de gás como matéria-prima e fonte de energia para a produção. O alto custo do insumo no Brasil vem provocando queda nos investimentos.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria Química, nos últimos dez anos o número de empresas do setor que têm o gás como principal matéria-prima instaladas no país caiu de 22 para 12. “Como pago o dobro do preço de meus concorrentes internacionais, o máximo que posso almejar é manter a produção que tenho hoje”, diz Daniela Manique, presidente da unidade de solventes da multinacional Rhodia no Brasil. Em 2015, em razão dos altos custos do insumo, a empresa fechou uma das fábricas no interior paulista, a de Jacareí. “Nosso nível de produção é considerado modelo para outras unidades. O que nos falta é gás a preço justo para conseguirmos exportar.”
A Lei Geral das Concessões e o Marco Legal do Gás são apenas duas intervenções dentro de um leque de propostas que podem ser aprovadas em 2020. A consultoria política Eurasia está otimista com essa agenda. Em suas contas, é possível que haja mais de uma dezena de alterações aprovadas no Congresso ao longo do ano (veja quadro abaixo).
Questões como as trapalhadas políticas do governo e as eleições municipais podem retardar o ritmo de aprovações. “Mas há um ambiente favorável para as reformas estruturantes”, diz o cientista político Christopher Garman, diretor da Eurasia. Entre os fatores para esse otimismo estão o protagonismo e o compromisso do Congresso com essas alterações, a própria vontade de segmentos do governo de que elas saiam do papel e o senso de urgência de que, sem essas microrreformas, a economia brasileira seguirá no marasmo atual.
Segundo o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, por um lado, como muitas empresas ainda estão com uma alta capacidade ociosa, o crescimento nos próximos três anos está praticamente assegurado. Por outro lado, se nada for feito agora, o futuro deve ser sombrio. “A situação fiscal está melhorando e devemos ter superávit em 2023”, afirma Mansueto. “Mas é um cenário que não será duradouro sem reformas estruturais e sem aumento da produtividade.”
Um levantamento feito pelo Observatório da Produtividade, ligado ao Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas, evidencia bem esse cenário. Com a ajuda do bônus demográfico (fenômeno que ocorre quando há mais trabalhadores em idade economicamente ativa do que aposentados), a produtividade do trabalhador brasileiro por hora trabalhada subiu, em média, 1% ao ano de 1995 a 2012 — taxa que já era considerada baixa. Com a crise, esse quadro ficou ainda mais preocupante e houve uma queda de 0,4% ao ano de 2013 para cá.
O setor de serviços, que concentrava 70% das horas trabalhadas em 2018 e 76% do PIB, apresentou queda na produtividade de 1,5% ao ano no mesmo período. Em outros importantes setores da economia, o problema é ainda maior. Os dados de produtividade da indústria e da construção civil são, respectivamente, 5% e 21% menores do que os números apresentados em 1995. Já a agricultura teve uma melhora de 355% em sua produtividade no mesmo período.
“A questão é que o bônus demográfico virou ônus e a população está envelhecendo. Para aumentarmos a renda da população, a melhora da produtividade é essencial”, afirma Fernando Veloso, pesquisador e professor na Fundação Getulio Vargas. Entre os principais fatores para a baixa produtividade no Brasil estão a elevada burocracia, o baixo índice de abertura comercial (que protege empresas ineficientes) e a falta de qualificação do trabalhador.
Entre esses obstáculos, a diminuição da burocracia é algo mais palpável e pode ser alcançado no curto prazo. Um passo dado pelo atual governo nessa direção ocorreu com outra microrreforma: a chamada Lei da Liberdade Econômica. Mudanças que englobam o fim do alvará para atividades de baixo risco, a digitalização de documentos públicos, a criação da carteira de trabalho eletrônica e a liberação de horários de funcionamento do comércio, entre outras medidas, podem gerar 3,7 milhões de empregos e 7% de crescimento da economia nos próximos dez anos, de acordo com estimativas do Ministério da Economia.
Mas é bom lembrar que as previsões iniciais do governo nem sempre se confirmam: para o programa Emprego Verde Amarelo, que pretende estimular a contratação de jovens, por exemplo, as previsões caíram de 1,8 milhão de vagas novas para 270 mil até 2022. “A Lei da Liberdade Econômica ainda não teve um retorno tão rápido dentro das empresas, mas melhora muito o arcabouço jurídico e destrava investimentos”, afirma Marco Stefanini, fundador da empresa de tecnologia Stefanini.
Outras medidas, no entanto, conseguem trazer efeitos mais rápidos. Realizada ainda no governo Temer, a liberalização do mercado de meios de pagamento abriu espaço para diversas empresas, como PagSeguro e Stone, que passaram a concorrer com o então duopólio do setor, formado por Cielo e Rede. Hoje há nove concorrentes que travam uma guerra das maquininhas de cartões de crédito e débito. O efeito foi a queda de preços no mercado. Uma máquina que custava 120 reais em 2013 hoje sai por um terço desse valor.
Para o combalido setor de construção civil, uma mudança bem-vinda foi a Lei do Distrato, que entrou em vigor no início de 2019. Entre as alterações está o pagamento de uma multa de até 50% do valor pago pelo consumidor que desistir da compra de um imóvel em construção. O arranjo anterior causava prejuízos às construtoras, que já tinham utilizado a receita da venda na construção do imóvel e não conseguiam ressarcir os impostos, as despesas administrativas e as taxas de corretagem já recolhidos. As novas regras diminuíram o número de distratos em 30% nos três primeiros trimestres de 2019, segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias.
Houve também benefícios para os consumidores. A construtora paranaense Plaege é um exemplo. Se antes cobrava até 50% do valor total do imóvel de um cliente logo na entrada, hoje essa fatia diminuiu para 40%. As novas regras podem trazer ainda redução no preço dos imóveis, segundo Luiz Gustavo Salvático, gerente regional da Plaege.
Para ele, a maior clareza da legislação deve reduzir os custos administrativos e de contenciosos jurídicos. “Isso pode contribuir para a queda do custo do imóvel”, diz Salvático. Outra lei sancionada no último ano, a do Cadastro Positivo Automático, envolvendo dados dos consumidores sobre o histórico de pagamento de dívidas, também pode trazer efeitos em 2020, como a queda das taxas de juro na concessão de crédito aos bons pagadores.
Para o governo, as microrreformas serão fundamentais para atingir a meta de inserir o Brasil entre os 50 países mais bem colocados no ranking Doing Business, criado pelo Banco Mundial para definir os melhores lugares para fazer negócio. Em 2019, o país caiu 15 posições, para a 124a colocação, apesar de ter melhorado sua nota de 58,6 para 59,1. Não é uma meta fácil, mas outros países já provaram que é possível melhorar rapidamente a colocação no ranking. No começo dos anos 90, a Índia, com todos os seus problemas sociais, viveu um boom reformista que melhorou o ambiente de negócios local.
O país fez uma reforma tributária que implantou um imposto sobre valor agregado (algo que o Brasil ainda discute), formou uma elite acadêmica voltada para áreas de exatas, como a computação, e desburocratizou a economia. Os resultados começaram a aparecer tempos depois.
A Índia saltou do 138o lugar, em 2007, para o 63o no mesmo Doing Business, em 2019. “A Índia ainda tem muitos problemas, mas, comparado ao que era, o avanço foi imenso”, diz o economista Marcos Mendes, autor do livro Por Que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil. Sim, é difícil, mas, como os indianos mostraram, é bem possível.