Linha de produção da Coca-Cola, em São Paulo (Marcelo Correa/Exame)
Marina Filippe
Publicado em 29 de março de 2018 às 06h01.
Última atualização em 1 de agosto de 2018 às 15h23.
Acostumada a decidir o destino de milhões de litros de bebidas todos os anos, a equipe dos sucos de frutas Del Valle, pertencente à Coca-Cola, tem quebrado a cabeça para desenvolver um canal de venda inédito. Nesse caso, o projeto — pelo menos por enquanto — está bem distante da escala com que o time lida normalmente. Lançado em fevereiro, trata-se de um serviço online que oferece cestas de café da manhã com itens variados, como pão, queijo e, claro, produtos da marca. Em fase de teste na Barra da Tijuca e na zona sul do Rio de Janeiro, a novidade funciona em parceria com padarias que preparam as cestas e cuidam das entregas.
Não é a primeira vez que a gigante de bebidas americana investe numa iniciativa de venda direta pela internet no país. Desde dezembro de 2016, a Coca-Cola vendeu cerca de 220.000 itens, entre garrafas personalizadas e latas com embalagens especiais, que podem ser encomendadas sem quantidade mínima diretamente no site da companhia — 54 delas, por exemplo, foram pedidos de casamento. “Nessas novas frentes, ganhamos proximidade dos consumidores e desenhamos novos caminhos para aumentar o volume de vendas”, afirma Adriana Knackfuss, vice-presidente de transformação digital da Coca-Cola.
A iniciativa da Coca-Cola ilustra um movimento crescente da indústria na direção de lançar plataformas de venda direta. Segundo uma pesquisa realizada no ano passado pela consultoria LCP Consulting e pelo centro de estudos da cadeia de suprimentos da Universidade Cranfield, no Reino Unido, 48% dos maiores fabricantes globais de bens de consumo estão construindo ou aprimorando canais de venda direta para o consumidor. A maior parte envolve lojas virtuais.
De acordo com a situação, há várias razões que justificam essas iniciativas. Para especialistas, a venda sem intermediários permite entregar dois atributos cada vez mais desejados, como no caso da Coca-Cola: conveniência e personalização. Também permite coletar dados sobre os hábitos de consumo, sem o filtro tradicional do intermediário varejista. “A indústria busca cada vez mais capturar informações para desenvolver novos produtos e comunicação personalizada”, afirma Flávia Takey, sócia da consultoria The Boston Consulting Group e especialista em consumo e varejo.
Finalmente, e não menos importante, essas empresas procuram escapar do ataque inesperado de startups que, sobretudo nos Estados Unidos, começam a ver uma brecha inédita para competir de igual para igual com as grandes. Desde 2012, pequenas marcas que surgiram com a venda direta via internet receberam 3 bilhões de dólares de investidores de risco nos Estados Unidos.
Em geral, essas novas empresas avançam em mercados dominados por gigantes, como o de lâminas de barbear. Em 2010, a Gillette, marca da Procter & Gamble e líder do setor no mundo, tinha 70% de participação no mercado americano. Atualmente, possui 54%. A erosão se deve sobretudo à atuação de empresas como o clube online de venda de lâminas por assinatura Dollar Shave, criado em 2011 e comprado pela anglo-holandesa Unilever por 1 bilhão de dólares cinco anos mais tarde. O movimento continua. Em novembro, a Procter & Gamble comprou a startup americana Native, fabricante de desodorantes que vendia em seu próprio site, por um valor não revelado.
CONVENIÊNCIA
Parte do sucesso dessas novas empresas está associada à conveniência oferecida pelo modelo de assinatura online. De um lado, o consumidor se livra de um problema: ir atrás de itens, de maneira recorrente, por obrigação, e não necessariamente por prazer. De outro, as empresas escapam da batalha sangrenta das gôndolas cada vez mais cheias de opções. “A criação de um serviço periódico gera a fidelidade do cliente”, diz a consultora Ana Paula Tozzi, especialista em varejo.
No caso da Procter & Gamble, a meta de vender lâminas pela internet se espalhou para diversos dos 80 países em que a companhia atua — inclusive o Brasil. No e-commerce da marca de produtos para barbear Gillette, lançado no país em janeiro de 2017, é possível comprar apenas um item ou montar combos num clube de assinatura, em que o cliente escolhe a data da próxima entrega. O modelo brasileiro segue a experiência americana, iniciada em 2014.
O formato de clube de assinaturas também foi o caminho escolhido pela Nestlé, que lançou em dezembro a loja virtual do clube de leite Ninho, em embalagens de 1 litro. Por enquanto, a entrega só ocorre em 17 cidades do estado de São Paulo. Além da assinatura, é possível levar pelo menos 12 litros de leite em cada compra única. “Dessa forma prática o cliente evita carregar um produto pesado e que, pela internet, pode ser comprado em maior quantidade mais facilmente”, diz Fabiana Fairbanks, diretora de bebidas da Nestlé. A estratégia foi inspirada nas lojas virtuais de Nespresso e Nescafé Dolce Gusto, lançadas em 2006 e 2013, respectivamente. No caso da Dolce Gusto, houve crescimento de 41% da receita entre 2016 e 2017.
Mesmo em empresas que estão há mais tempo nessa jornada, é raro encontrar as que revelam dados sobre a relevância dos canais diretos no faturamento — ou nas margens. Mas é possível ver sinais de crescimento. A fabricante de bebidas Ambev, por exemplo, lançou uma loja virtual própria em 2011, o Empório da Cerveja, que oferece as modalidades de vendas episódicas ou por assinatura. Em 2017, a companhia intensificou a experiência de venda sem intermediários com a abertura de 16 bares próprios das marcas das cervejas artesanais, como a americana Goose Island e a paulista Colorado, onde são oferecidas bebidas exclusivas e realizados eventos de lançamento.
Em setembro, a companhia abriu na Vila Mariana, em São Paulo, a loja do Empório da Cerveja. Lá, é possível comprar e receber em casa ou levar o produto na hora. “Os novos canais são uma maneira de se aproximar do consumidor e também de testar a aceitação de novos produtos”, afirma Pablo Pedalino, diretor de marketing de cervejas artesanais da Ambev, que não revela números da operação. Lojas próprias também foi a alternativa eleita pela fabricante de alimentos Bauducco. Em 2012, criou o modelo da Casa Bauducco, que funciona como cafeteria e também como mercado para vender produtos da marca. Atualmente são 35 unidades nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. A meta é chegar a 100 unidades até 2020 — boa parte delas franqueada. A empresa, no entanto, não revela o faturamento da operação.
No mundo, experiências mais consolidadas mostram que a venda direta pode se tornar um caminho rentável — além de ser um ponto de contato privilegiado com o consumidor. A fabricante de produtos esportivos Nike, cujas vendas online quase quintuplicaram nos últimos dez anos, anunciou em meados do ano passado o que chamou de consumer direct offense, ou “ofensiva direta ao consumidor”. A principal meta dessa ofensiva é, até 2020, aumentar as vendas em lojas próprias para 16 bilhões de dólares, quase o dobro do patamar atual, para que se tornem equivalentes a 30% das vendas estimadas pela companhia para aquele ano.
Há uma boa razão para seguir esse caminho. A margem bruta da venda direta é de 62%, enquanto em seus negócios de atacado é de 38%. A mensagem é clara: perder tempo nessa jornada de chegar diretamente ao consumidor também significa deixar dinheiro na mesa.