Revista Exame

Conta da "locomotiva forrozeira" da CSN já passa de R$ 11 bi

A conta da Ferrovia Transnordestina já passa dos 11 bilhões de reais — mas a única utilidade dos trilhos por ora é servir para a passagem do “trem do forró"

Trecho da Transnordestina, no Piauí: um dos mais avançados da obra (Divulgação/Exame)

Trecho da Transnordestina, no Piauí: um dos mais avançados da obra (Divulgação/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 29 de agosto de 2016 às 05h56.

São Paulo — No fim de maio, governantes da Região Nordeste, empresários e reguladores do setor ferroviário viveram uma crise daquelas que só o Brasil pode proporcionar.

Como de costume, os organizadores das festas de São João pleiteavam usar trechos da Ferrovia Transnordestina para o passeio do “trem do forró”, como é conhecida a composição que viaja para lá e para cá com milhares de pessoas arrastando pé.

A Transnordestina Logística, empresa que administra a ferrovia e é controlada pela siderúrgica CSN, tinha negado autorização para o evento em trechos de Cea­rá, Pernambuco e Paraíba, alegando falta de condições técnicas para tal. Após semanas de intenso lobby, a empresa cedeu. O trem do forró circulou normalmente, para gáudio dos foliões.

Até hoje, estima-se que mais de 300 000 pessoas tenham viajado nas diversas edições do trem do forró, também conhecido como “locomotiva forrozeira”, em trechos da Transnordestina. É bom mesmo que seja assim. Essa é, praticamente, a única utilidade dos trilhos da empresa.

Em 2016, as obras de construção da Transnordestina completam dez anos. Mesmo num país como o Brasil, em que a disputa pelo prêmio de obra mais atrasada é apertada, a Transnordestina se destaca. Já são sete anos de atraso e, pelo ritmo atual, serão necessários pelo menos mais sete séculos para que a coisa comece a funcionar.

O primeiro rascunho do projeto foi feito na década de 90 para reativar antigas malhas ferroviárias do Nordeste — todas sucateadas a ponto de inutilização —, mas foi em 2006 que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu tirar a ferrovia do papel (era, lembremos, o início do Brasil-Maravilha da era Lula, quando todos os problemas nacionais seriam resolvidos com um pouco de “vontade política”).

Com 1 753 quilômetros de extensão, cortando os estados de Pernambuco, Piauí e Ceará, até os portos de Pecém e de Suape, a Transnordestina representava a concretização do velho sonho de desenvolver o sertão nordestino. Com capacidade para transportar 30 milhões de toneladas de carga por ano, poderia, diziam os PowerPoints oficiais, ajudar a gerar meio milhão de empregos.

Dez anos depois, apenas metade da ferrovia está concluída; e o orçamento, que começou em 4,5 bilhões, chegou a 11,2 bilhões de reais. A cada ano, o custo da ferrovia aumenta 700 milhões de reais, em média, contada a atualização monetária, prevista em contrato. E, até agora, leva nada a lugar algum. Apenas a título de humilhação, a China construiu o equivalente a cinco Transnordestinas na última década.

É difícil eleger um culpado pelo épico atraso do projeto. Houve mudanças na rota original para atender a interesses locais, o tradicional atraso no repasse de dinheiro público, uma construtora que faliu, brigas contratuais, uma igreja instalada no meio do caminho e todo tipo de pequeno problema que costuma assolar as grandes obras brasileiras.

A siderúrgica CSN é a maior acionista da Transnordestina Logística e tem como sócios a estatal Valec e o banco de fomento BNDES. A CSN já operava uma antiga malha no Nordeste, como acionista da Companhia Ferroviária Nacional, e tinha interesse em expandir suas operações na região do sertão.

Quando Lula resolveu lançar o projeto da “nova Transnordestina”, apoiou-se no interesse de Benjamin Steinbruch, o controlador da CSN, e pediu a ele que assumisse a empreitada. Dois anos após o lançamento, a Transnordestina foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento, coordenado pela então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.

A inclusão no programa tinha o objetivo de acelerar a obra para que o presidente pudesse entregá-la até o último ano de seu governo, no já distante 2010. Mas o governo não fazia os repasses de capital, o que atrasava o projeto. A CSN precisaria colocar dinheiro próprio no negócio, mas parte dele também teria de vir de empréstimos do BNDES.

“Pode contratar todo mundo de uma vez que dinheiro não vai faltar, Benjamin”, disse Lula, em 2009, em uma visita às obras. Mas não adiantou. O relacionamento de Lula e Dilma com Steinbruch estremeceu — Lula chegou a dizer em reuniões que se sentia “enganado” por Steinbruch. Dados o tamanho e a complexidade da obra, a CSN contratou a empreiteira Odebrecht para tocar o projeto.

O canteiro central de obras foi instalado na cidade de Salgueiro, no interior de Pernambuco, em uma área correspondente a 65 campos de futebol, onde a Odebrecht construiu a maior fábrica de dormentes — como são chamadas as bases dos trilhos — do mundo. A fábrica tem capacidade para produzir diariamente mais de 4 800 dormentes de concreto, um diferencial para uma obra que precisa de 3 milhões deles.

Pelo contrato, as empresas compravam os equipamentos em aliança, e a Transnordestina pagava o serviço à Odebrecht. Só na fábrica de dormentes a Odebrecht investiu 115 milhões de reais. Mas, em 2013, com o caixa vazio, Odebrecht e CSN começaram a se estranhar. Uma fingia que pagava, a outra fingia que produzia.

Se o governo não fazia o repasse do capital, a CSN tampouco pagava para a Odebrecht — mas exigia o cumprimento dos prazos. “Estávamos financiando o projeto”, diz um executivo da empreiteira que trabalhava na ferrovia.

CSN e Odebrecht começaram a brigar em uma arbitragem e a obra ficou parada — enquanto a empreiteira acusava a contratante de caloteira, a CSN contratou a consultoria WRC para avaliar a construção, que, em relatório, disse ter encontrado diversos problemas críticos de engenharia na execução do projeto pela Odebrecht.

No acordo, selado em 2014, a Transnordestina comprou a parte da Odebrecht em grandes equipamentos e a construtora aceitou a quitação parcelada dos atrasos, bem como a rescisão de contrato. Sem dinheiro para operar e com o ritmo lento da obra, a fábrica em Salgueiro está praticamente sem produção.

“Toda a possibilidade de desenvolvimento do Nordeste está suspensa com essa obra”, diz Marcones Sá, prefeito de Salgueiro.
Depois de quase um ano de obra parada em função do rolo com a Odebrecht, a CSN decidiu mudar de estratégia. Na nova fase, fatiou o projeto e distribuiu a responsabilidade entre várias empreiteiras.

Mas isso não resolveu o problema da falta de pagamento, o que levou duas delas — Civilport e EIT Engenharia — à recuperação judicial. Vários trechos ficaram paralisados novamente e as construtoras e a Transnordestina brigam na Justiça. No Ceará, a construtora Marquise interrompeu as obras em abril, pois não recebia desde dezembro.

Só em atrasados, são mais de 50 milhões de reais, sem contar o restante do contrato por fazer. A empresa demitiu os 1 800 funcionários alocados no projeto e começou a devolver as 1 500 máquinas alugadas, deixando em desespero cidades como Cedro e Lavras da Mangabeira. No trecho do Ceará, as obras estão paradas há cinco meses.

“Quem dita o ritmo numa obra desse tamanho é o dinheiro”, diz o dono de uma das empreiteiras contratadas. “Na Transnordestina, tocaram a obra a todo vapor, mas, sem caixa, tudo foi paralisado porque na verdade o dinheiro não existia.” Civilport, EIT e Marquise não deram entrevista. No ano passado, a obra avançava 1 quilômetro por dia, em média. Neste ano, são cerca de 100 metros diários.

Segundo a Transnordestina Logística, o atraso na liberação dos repasses dos órgãos públicos, notadamente nos últimos dois anos, prejudicou o cronograma da obra.

Um dos principais desafios de obras extensas, como ferrovias, rodovias e minerodutos, é traçar uma rota que seja eficaz para o projeto mas que cause menos danos às cidades que cortam e ao meio ambiente e que diminua o número de propriedades que precisam ser desapropriadas.

Na nova Transnordestina, são mais de 5 000 desapropriações sob responsabilidade dos estados e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte. Claro, isso não tem sido fácil.

Numa comunidade no Piauí, o Ministério Público apurou denúncias de pagamentos de indenizações de 5 reais por casa, baseadas em laudos de consultorias terceirizadas, que avaliam o preço do terreno ou a legalidade da documentação de posse. Em pleno sertão cearense, a linha do trem separava cidades de seus açudes, única fonte de água da população.

Em Pernambuco, a ferrovia atravessaria os centros urbanos de três municípios e ainda partiria ao meio a cidade que estava sendo erguida ao lado do porto de Suape. Também foi em Pernambuco, mais precisamente na cidadezinha de Custódia, que a necessidade de demolição de uma igreja parou a obra por mais de dois anos. O município chegou a construir outra igreja, recusada pela comunidade.

O jeito foi refazer a rota, ajustando o traçado em 14 metros. “É um projeto complexo, numa região carente e onde havia desconhecimento de tudo, como a quantidade de sítios arqueológicos e de comunidades quilombolas”, diz ­Steinbruch. “Hoje, a questão ambiental e social está resolvida no Ceará e no Piauí.”

Com tanta intervenção do Ministério Público, atraso de obras e estouro no orçamento, a nova Transnordestina entrou na mira do Tribunal de Contas da União. Pelo menos três processos foram instaurados para avaliar a análise econômica feita pela Valec para investir, e a supervisão feita pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

“Tudo que podia dar errado numa obra pública deu errado na Transnordestina”, diz Júlio de Oliveira, procurador do Ministério Público no TCU, que define a obra como uma “aberração financeira e jurídica”. Segundo ele, o projeto foi entregue sem licitação à CSN, que já operava mal uma parte da malha ferroviária no Nordeste (por onde passa o tal do trem do forró).

O procurador também questiona o modelo de prazo da concessão, que seria muito “flexível”. A CSN ganhou prazo de 30 anos na concessão obtida em 1997 para a malha Nordeste, que venceria em 2027. Com o novo projeto da Transnordestina, elaborado com Lula, estendeu-se o prazo por mais 30 anos, até 2057.

Esse é o prazo que a CSN defende como necessário para obter a taxa interna de retorno sobre o capital investido, de 6,75%. Mas há uma cláusula no contrato que diz que, se a empresa obtiver o retorno antes de 2057, o prazo final será revisto, ou seja, encurtado. “Consideramos o processo ilegal e, por isso, queremos que a obra seja interrompida e licitada do zero”, diz Oliveira.

Em relatório, a Controladoria-Geral da União diz que não houve, por parte da ANTT, análise de orçamento e de viabilidade do projeto que justificasse o interesse e o gasto público. Em nota, a ANTT afirma que a concessão da nova Transnordestina foi feita com base na licitação de 1997, quando a CSN obteve a malha Nordeste.

No contrato, estava prevista a melhoria na linha existente e novos trechos — com base nesse contrato, a agência aprovou o projeto da nova Transnordestina em 2006. A agência diz ainda que fiscaliza o contrato e o projeto, “abrindo os processos pertinentes para apurações de eventuais atrasos de cronograma e suas causas”.

Com a troca de governo neste ano, os ministérios dos Transportes e do Planejamento resolveram tomar as rédeas do projeto. Em uma reunião entre o ministro dos Transportes, Maurício Quintella, e Benjamin Steinbruch, da CSN, em junho, governo e Transnordestina Logística começaram a rediscutir o contrato.

Segundo o Ministério dos Transportes, a estimativa inicial de 4,5 bilhões de reais se referia a um projeto limitado de expansão da malha, sem prazo definido para a entrega final. Foi somente em 2013 que o governo efetivamente impôs um cronograma e um trajeto ideal para a nova Transnordestina, com o custo de 7,5 bilhões de reais.

Desse montante, 6,3 bilhões caberiam ao governo (diretamente ou por meio de financiamento). Qualquer estouro de orçamento ficaria a cargo de investimentos adicionais da CSN. “O governo e os fundos públicos colocaram mais recursos, na frente da CSN. No nosso entender, isso poderia dar um desequilíbrio do contrato mais adiante, sem a garantia de que a siderúrgica faria o aporte que lhe cabia”, diz Quintella.

Da parte que ainda cabe ao governo — 1,3 bilhão de reais adicionais —, serão aportados 300 milhões neste ano, 490 milhões em 2017 e o restante em 2018. CSN e governo também concordaram quanto ao novo orçamento total do projeto, de 11,2 bilhões de reais. Ou seja, o naco da CSN equivaleria a 5 bilhões de reais, dos quais apenas 1,3 bilhão já foi aportado, nas contas do governo.

O ministério quer que a CSN acelere o ritmo de investimento dos 3,5 bilhões restantes — para este ano, por exemplo, a empresa previa apenas 69 milhões de reais de desembolso, mas deve se comprometer a gastar 500 milhões. “A negociação está avançada, sobre o cronograma de obra e os desembolsos, e agora estamos discutindo as garantias para que isso seja feito”, diz Quintella.

“São desde previsões legais de multa até o mais grave, que seria tirar a concessão da ferrovia da CSN.” Segundo Steinbruch, a empresa vai recorrer ao financiamento adicional de meio bilhão do BNDES, se necessário, mas os 3 bilhões adicionais são referentes à venda do direito de passagem da ferrovia (quando uma concessionária pode usar as linhas de outra), e não ao desembolso da CSN ou da Transnordestina Logística. “Investidores asiáticos têm muito interesse nesse corredor logístico”, diz Steinbruch.

Para o empresário, o fundamental na discussão atual com o governo é a garantia de que os recursos públicos sejam liberados conforme o prazo combinado.

No novo cronograma, o foco é finalizar o trecho até o porto de Pecém até 2019 — segundo o ministério, faz mais sentido focar o trecho com menos entraves legais e técnicos e colocar a ferrovia para funcionar do que continuar tentando fazer tudo ao mesmo tempo e ter atrasos generalizados.

Assim, ficaria mais fácil para a CSN encontrar um sócio para o restante dos investimentos para o trecho de Pernambuco até o porto de Suape, atraído pela geração de receita do trecho do Ceará. A finalização do trecho de Suape ficaria, a princípio, para 2020. O trem do forró do ano que vem está garantido.

Acompanhe tudo sobre:Edição 1120EmpresasEmpresas brasileirasFerroviasGovernoNovonor (ex-Odebrecht)Setor de transporteTransportes

Mais de Revista Exame

Aprenda a receber convidados com muito estilo

"Conseguimos equilibrar sustentabilidade e preço", diz CEO da Riachuelo

Direto do forno: as novidades na cena gastronômica

A festa antes da festa: escolha os looks certos para o Réveillon