Revista Exame

Conexão que cuida

Da detecção precoce de doenças ao monitoramento remoto, hospitais e laboratórios combinam IA, sensores e dispositivos vestíveis para redefinir os cuidados na saúde

Equipamentos inteligentes tornam diagnósticos mais precisos e alertam médicos em caso de doenças graves (Divulgação/Divulgação)

Equipamentos inteligentes tornam diagnósticos mais precisos e alertam médicos em caso de doenças graves (Divulgação/Divulgação)

MG
Marcelo Gripa

Jornalista colaborador

Publicado em 5 de agosto de 2025 às 06h00.

A poucos dias de correr uma maratona, veio a notícia frustrante, porém providencial: mesmo com toda a preparação para percorrer os 42,195 quilômetros do famoso circuito de rua, uma pessoa foi avisada de que deveria desistir da prova por motivo de saúde. Exames laboratoriais interpretados com a ajuda de algoritmos de inteligência artificial detectaram uma doença coronária grave, causada pela obstrução das artérias do coração. Em pouco tempo, o alerta foi disparado para a equipe médica, que revisou o laudo e endossou o diagnóstico, evitando uma possível complicação crítica.

A combinação de tecnologias avançadas a serviço da saúde tem redefinido o setor em várias frentes, da detecção precoce de doenças ao monitoramento contínuo de pacientes e à otimização de processos. Sensores integrados e dispositivos vestíveis coletam dados vitais — como frequência cardíaca, níveis de glicose e padrões de sono — em tempo real, dentro e fora de unidades hospitalares. Essa capacidade inovadora permite que profissionais de saúde detectem anomalias previamente, ajustem tratamentos de forma mais precisa e personalizada e intervenham rapidamente em casos de emergência.

A internet das coisas (IoT, na sigla em inglês), caracterizada pelo conjunto de dispositivos e sensores que coletam e trocam dados entre si, cria as bases necessárias para a medicina ser mais preventiva e menos reativa. “O maior objetivo das soluções de IoT é criar a integração de dados em uma jornada contínua, não fragmentada, em cada etapa do sistema” resume Raphael Oliveira, diretor-geral do Hospital Nove de Julho.

Nos últimos anos, essa tecnologia foi alçada a um novo patamar por causa do avanço da inteligência artificial e sua capacidade de analisar grandes volumes de dados, identificar padrões e chegar a conclusões probabilísticas. Para Oliveira, “o futuro da medicina e do setor está na utilização de IA para facilitar e criar condições para melhorar a precisão diagnóstica”.

A médica Simone Nascimento: “Tecnologia é uma ferramenta e não substitui o olhar clínico” (Arquivo Pessoal/Divulgação)

Quando analisados e utilizados adequadamente no setor de saúde, dados podem ganhar sentido e transformar informações em ações que salvam vidas, como no caso do corredor alertado a tempo sobre a doença coronária. O uso de algoritmos para extrair informações médicas e notificar profissionais de saúde sobre achados em exames que indicam doenças graves é um exemplo de aplicação. Com base em regras predefinidas, sistemas vasculham casos suspeitos que poderiam passar despercebidos a olho nu e cujos efeitos seriam potencialmente fatais.

A rede de medicina diagnóstica Dasa faz uso desse tipo de sistema preditivo em larga escala. As descobertas da tecnologia por meio de sensores que “leem” exames e laudos são submetidas à curadoria humana especializada. Segundo a empresa, as principais aplicações estão associadas a diagnósticos oncológicos, com ênfase no câncer de mama, e transtornos neurodegenerativos progressivos, como a doença de Alzheimer.

A Dasa realiza mais de 400 milhões de exames laboratoriais por ano e armazena em torno de 7 bilhões de dados derivados de dispositivos médicos. A extração das informações dos exames é feita por algoritmos de aprendizado de máquina, com a utilização de modelos de processamento de linguagem natural no caso dos laudos. “Parece um processo simples, mas envolve arquitetura de dados, segurança da informação, busca de dados captados em tempo real e modelos de inteligência artificial que pesquisam informações relevantes e alertam os médicos”, explica Leonardo Vedolin, vice-presidente da área médica na Dasa.

No Hospital Nove de Julho, a fusão de internet das coisas e inteligência artificial tem agilizado o diagnóstico de arritmias cardíacas silenciosas ao cruzar dados de eletrocardiogramas e prontuários com o apoio da IA no rastreamento das informações. O laudo é elaborado em menos de 3 minutos, e os pacientes que se enquadram nos fatores de risco são encaminhados para tratamento especializado. Todos os meses, cerca de 4.500 registros de sinais vitais de pacientes de unidades críticas transitam pelo hospital.

Márcio Aguiar, da Nvidia: o futuro da saúde será mais personalizado e eficiente (Marco Pinto/Divulgação)

Segundo Oliveira, a abordagem preventiva levou a um aumento de 180% na quantidade de tratamentos minimamente invasivos para arritmias (ablação) e queda de 40% no retorno de pessoas ao pronto-socorro em até 30 dias após os atendimentos. “A utilização de IA em larga escala para facilitar o diagnóstico e a integração de dados faz muito sentido, e vamos investir bastante nesse ponto”, diz.

A aplicação de tecnologias na detecção precoce de doenças graves também age como um antídoto contra a sobrecarga dos profissionais de saúde, um gargalo histórico do setor. Como observa Vedolin, a dedicação de boa parte do tempo dos times a tarefas burocráticas, como o preenchimento de tabelas e prontuários, pode comprometer a capacidade de julgamento nas tomadas de decisões em decorrência da estafa mental e física. “Essas tecnologias têm um papel muito relevante para auxiliar os profissionais de saúde a alocar seu tempo nas atividades que são relevantes para o cuidado, de conexão e empatia com as pessoas”, avalia.

A interpretação das imagens laboratoriais por meio dos sensores auxilia também na prescrição de medicamentos, segundo o executivo. A partir da avaliação feita pelos algoritmos com base nas evidências dos laudos, a tecnologia emite um alerta para a equipe médica sobre possíveis sobreposições de fármacos que podem gerar reações adversas. Assim como no caso da detecção de doenças graves, a revisão do diagnóstico é humana, tendo a tecnologia como aliada.

Para a médica Simone Nascimento, o uso de sensores conectados e a coleta de dados em tempo real promovem uma revolução no cuidado, mas é preciso lembrar que a tecnologia é uma ferramenta e não substitui o olhar clínico e a relação médico-paciente. “A presença, o toque, a escuta ativa e atenta e a empatia continuam sendo pilares insubstituíveis da medicina”, diz. Ela ressalta que, tão importante quanto utilizar máquinas para subsidiar decisões de alto impacto na saúde, é saber interpretar os dados, o que exige letramento tecnológico e um profundo conhecimento ­clínico. “Um sensor pode nos dar números, mas somos nós que precisamos contextualizá-los com a história clínica do paciente, seus hábitos e outras informações. Não podemos virar ‘leitores de gráficos’”, reforça.

Leonardo Vedolin, VP na Dasa: dados devem circular livremente e com segurança no setor de saúde (Dasa/Divulgação)

Do leito aos relógios inteligentes, cuidados dentro e fora do hospital

O risco de quedas nas unidades hospitalares é um fator de preocupação constante. Para aumentar a segurança dos pacientes, hospitais equipam leitos com sensores que monitoram movimentos e alertam a equipe de enfermagem para intervenções a tempo de evitar acidentes.

Fora do ambiente médico, o uso de dispositivos vestíveis é fundamental para o monitoramento remoto de sinais vitais. Pacientes têm sido incentivados a utilizar relógios inteligentes próprios para coletar dados durante determinado período conforme orientação, como acontece em avaliações cardiológicas. À distância, profissionais de saúde têm acesso às informações e podem tomar decisões com base no dia a dia do paciente, e não apenas no momento em que ele estiver em atendimento.

O controle da diabetes, considerada uma doença silenciosa em razão dos sintomas, que podem ser sutis, também pode ser feito remotamente. Plataformas interativas buscam engajar pacientes na gestão da doença a partir de princípios de gamificação e da capacidade de persuasão dos jogos. Mesmo longe, médicos podem acompanhar o nível de adesão ao tratamento e recomendar ajustes pontuais online em casos mais urgentes.

Nas cirurgias, a IoT tem contribuído para procedimentos menos invasivos, com o apoio da robótica. Uma das soluções disponíveis no Hospital Nove de Julho permite aos médicos dimensionar, em tempo real, a pressão manual colocada sobre o tecido corporal por meio do monitoramento e da integração de dados, tendo mais controle de suas ações.

Desafios: da integração de dados à inclusão

Especialistas consultados citam as boas práticas de privacidade e segurança dos dados como condições essenciais para o bom aproveitamento das soluções de IoT. A falta de interoperabilidade é uma barreira técnica a ser transposta para sanar o problema de dados fragmentados em diferentes instituições que não se comunicam. “A indústria é um sistema interdependente. Para que a transformação seja exponencial, a informação deve fluir livre e segura entre todos os protagonistas do setor”, afirma Vedolin, ao ressaltar que o avanço dessa agenda passa por discussões regulatórias. “No setor de saúde, não basta só ter o dado. É preciso estar aderente à regulação e respeitar a privacidade e a segurança do paciente”, completa.

A ausência de acesso universalizado a serviços de saúde também é apontada como um desafio para traduzir os benefícios das aplicações tecnológicas em melhor qualidade de vida para a sociedade. Na visão de Nascimento, é necessário investir em iniciativas públicas robustas que levem essas inovações a todas as esferas da população, incluindo o Sistema Único de Saúde (SUS) e diferentes nichos de saúde suplementar. “Isso pode acontecer por meio de parcerias público-privadas, fomento à indústria nacional de tecnologia médica, e principalmente com capacitação profissional para o uso dessas ferramentas na ponta — como enfermeiros, agentes comunitários e médicos da atenção primária”, recomenda. Para ela, “tecnologia sem acesso não é inovação — é exclusão disfarçada”.

Inovação para viver mais e melhor

A tendência é que a união entre internet das coisas e inteligência artificial no setor de saúde produza tantos efeitos positivos a ponto de redefinir os cuidados de forma coletiva, e não apenas em casos individualizados. “Essas tecnologias estão promovendo avanços significativos na medicina preventiva e na saúde populacional. Ao explorar o potencial dessas inovações, uma coisa é certa: o futuro da saúde será mais conectado, personalizado e eficiente, prevê Márcio Aguiar, diretor de enterprise da Nvidia para a América Latina. Um futuro repleto de algoritmos e automações, mas também humanizado, é o que se espera. “A tecnologia tem potencial não apenas para prolongar a vida, mas para prolongar o bem-estar durante a vida — o que é ainda mais importante. Viver melhor é o grande propósito”, resume Nascimento.


A convergência entre IoT e IA na medicina diagnóstica

Caça-doenças

Algoritmos avaliam entre 6.000 e 10.000 laudos por dia em busca de 43 doenças diferentes. Quando uma suspeita é identificada, o médico é alertado e consegue dar o próximo passo no tratamento, em média depois de sete dias.

Pelo bem do coração

Algoritmo mede automaticamente o score de cálcio presente na válvula aórtica. Esse índice é central para o rastreamento precoce da estenose aórtica, condição progressiva que reduz a abertura da principal válvula do coração, dificultando o fluxo sanguíneo para o corpo. A doença pode levar à insuficiência cardíaca e arritmias se não for diagnosticada e tratada a tempo.

Diagnóstico precoce de Alzheimer

Algoritmo de inteligência artificial auxilia na identificação de doenças neurodegenerativas, como esclerose múltipla e Alzheimer. A tecnologia observa lesões desmielinizantes, nas quais a bainha de mielina, responsável em parte pelos impulsos nervosos, é afetada. Algumas dessas lesões são praticamente invisíveis a olho nu. O projeto é realizado em parceria com a Entelai, empresa que oferece IA aplicada à saúde.

Fonte: Dasa.


A busca pelo hospital inteligente

Para Raphael Oliveira, diretor-geral do Nove de Julho, o hospital do futuro deve intensificar o monitoramento remoto de pacientes para transformar as unidades em grandes centros de tecnologia e medicina de precisão. Os atendimentos gerais dariam lugar a tratamentos de alta complexidade, com ainda mais integração de dados e combinação de tecnologias como IoT e IA, garantindo a personalização do cuidado preditivo. Na visão dele, o objetivo dessa transformação é aliar a melhora dos desfechos clínicos à redução de custos e à consequente sustentabilidade econômica do setor.


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