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Como taxar 1,4 bilhão de pessoas

Reforma tributária da Índia aponta caminhos para a mudança em debate no Brasil

Rua de comércio em Thiruvananthapuram, no sul da Índia: a reforma levou milhões de negócios a se formalizarem (Creative Touch Imaging Ltd./NurPhoto/Getty Images)

Rua de comércio em Thiruvananthapuram, no sul da Índia: a reforma levou milhões de negócios a se formalizarem (Creative Touch Imaging Ltd./NurPhoto/Getty Images)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 24 de agosto de 2023 às 06h00.

Última atualização em 24 de agosto de 2023 às 14h52.

Uma nação, uma taxa” foi o lema da reforma tributária na Índia, em vigor desde julho de 2017. O caso talvez seja a melhor proxy disponível para uma base internacional de comparação com as mudanças em discussão no Brasil: ambos são países em desenvolvimento, divididos em muitos estados e com um sistema tributário que não previa um imposto de valor de agregado (IVA), presente na maior parte do mundo. Por isso, seis anos depois, os resultados dão pistas do que poderá acontecer no Brasil. Por lá, a receita aumentou — o que era parte do plano da reforma, dada a alta informalidade da economia indiana —, e o número de empresas contribuintes mais do que dobrou. Restam questões a resolver, e que interessam sobremaneira ao Brasil, como o combate a fraudes e a melhora no fluxo de créditos fiscais. 

A bem da verdade, a Índia tinha uma situação mais complexa que a nossa. Além de ter a maior população do mundo, com 1,4 bilhão de pessoas, cada um dos 28 estados tinha impostos diferentes. O projeto de reforma em debate por aqui já traz algumas das lições indianas, como a de fazer uma implantação gradual. Por lá, mudou-se tudo de um dia para o outro, o que gerou uma confusão para as empresas. A troca trouxe o GST (sigla em inglês para taxa sobre mercadorias e serviços), que incide sobre transações de compra e venda. Assim como se pretende aqui, a arrecadação com a GST foi dividida entre o governo nacional e os estados. A taxa tem várias alíquotas, de zero a 28%. Alimentos como frutas e laticínios são isentos, enquanto carros e bens de luxo pagam percentual máximo. O GST deixou de fora diversos itens, como combustíveis, eletricidade e bebidas alcoólicas, que seguem outras regras. Há também complicações: sabão em barra paga menos imposto do que detergente líquido, por exemplo — exatamente o tipo de situação da qual o Brasil quer fugir. A Índia criou um conselho federal, com representantes dos estados, para decidir questões do novo imposto, com poder para alterar regras. Quando o colegiado decide aumentar a taxação, há polêmica. No ano passado, alimentos pré-embalados, como farinhas e cereais, passaram a pagar 5% de imposto, o que gerou queixas da oposição. 

(Arte/Exame)

Além da simplificação, houve reforço no uso da tecnologia para cobrar impostos. Em 2016, o governo retirou de circulação as cédulas de valor mais elevado, para estimular as transações digitais. Apesar dos avanços, no entanto, o sistema é alvo de fraudes. Assim como na proposta brasileira, o GST é aplicado de forma não cumulativa: impostos pagos em etapa anterior da produção podem ser descontados na fase seguinte. Uma fábrica de roupas pode gerar crédito para os lojistas que venderão as peças, por exemplo. Isso abriu espaço para empresas mal-intencionadas usarem créditos falsos de impostos para obter abatimentos. Um levantamento feito neste ano apontou mais de 10.000 empresas sob suspeita de agir dessa forma, segundo o jornal local The Economic Times. Para combater o problema, o governo indiano busca aumentar a fiscalização automática dos dados, inclusive com o uso de inteligência artificial.

Os créditos tributários foram um dos maiores estímulos para a formalização das pequenas e médias empresas, mas houve confusão. “Muitas delas não pagavam impostos, tiveram de pagar e se perderam por não saber fazer as contas”, diz Melissa Guimarães Castello, presidente da Fundação Escola Superior de Direito Tributário. A reforma brasileira antecipou esse problema: empresas listadas no Simples poderão gerar créditos fiscais. Para Carlos Marcelo Gouveia, doutor em direito tributário pela USP e que fez um estudo sobre a reforma indiana, a possibilidade de gerar esses créditos foi o grande estímulo para pequenos negócios se formalizarem, para não perderem vendas para empresas que queriam abater impostos. “No entanto, os estados ainda demoram muito para pagar os créditos de impostos [abatidos], algo inerente ao sistema de IVA”, diz. A demora ocorre porque o governo precisa comprovar que os impostos foram pagos antes de gerar crédito, algo que pode ser acelerado com um modelo de split payment — ao pagar a transação por um canal digital, o imposto já é cobrado automaticamente. Os especialistas lembram também que os ganhos da reforma devem vir depois de alguns anos, e não de forma imediata. Nos anos seguintes à mudança, a Índia viu sua expansão esfriar: o PIB teve alta de 8,3% em 2016, mas de meros 3,9% em 2019. No pós-pandemia, houve retomada mais forte: alta de 7% em 2022, e a Índia subiu 37 posições no ranking Doing Business, do Banco Mundial, que avalia a qualidade do ambiente de negócios dos países. Uma nação com taxas simplificadas pode de fato ir bem mais longe.


(Publicidade/Exame)

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