Thais Padilha, vice-presidente de engenharia de soluções da Salesforce: “Começar com testes para depois escalar pode funcionar bem para empresas menores, em que a IA ainda é uma novidade” (Salesforce/Divulgação)
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Publicado em 29 de abril de 2024 às 06h00.
De tempos em tempos, grandes ondas tecnológicas entram na pauta das organizações. O tsunami da vez, talvez você já tenha ouvido falar, responde por inteligência artificial (IA). Capaz de integrar tecnologias, dados e algoritmos avançados para a automação de tarefas, tomada de decisões e até mesmo para execução de operações criativas, a IA tem promovido grandes movimentações dentro das empresas.
Para quem ainda não começou a adotar a tecnologia, o tema pode parecer complexo e trabalhoso. Mas calma: segundo diversos especialistas ouvidos por esta reportagem, não é preciso que a liderança perca o sono pensando no assunto, buscando maneiras de abraçar a novidade. Basta seguir alguns passos importantes para não morrer na praia diante da concorrência.
Princípios básicos
Antes de tudo, é bom falar que inteligência artificial não chega a ser uma tecnologia exatamente nova: suas raízes remontam aos anos 1950, com os primeiros experimentos do inglês Alan Turing. Nos últimos anos, porém, houve uma aceleração no desenvolvimento da tecnologia graças à evolução de três fatores. “Para começar, tudo que a gente faz agora gera dados em abundância. Na sequência, o surgimento da computação em nuvem permite que qualquer empresa tenha um poder de processamento computacional enorme para lidar com esses dados. Em paralelo, a evolução da conectividade de banda larga possibilita o acesso desses dados a qualquer instante, em qualquer lugar. Juntos, há uma combinação explosiva”, explica Marcelo Braga, presidente da IBM no Brasil.
Com esses três fatores, há ainda de se considerar um quarto: uma plataforma de uso amigável, como é o caso do ChatGPT. Lançado em novembro de 2022 pela startup americana OpenAI, o sistema de IA generativa (mais sobre isso já, já) não só possui a capacidade de receber instruções e responder com textos detalhados, mas também democratizou o acesso a uma tecnologia inovadora para qualquer pessoa. “Ao fazer a tecnologia ganhar escala, a IA deixa de ser papo de nerd e de tecnologia e passa a ser uma conversa de todos”, diz Braga, que também ressalta a velocidade dessa transformação, que não só é muito rápida, mas tem evoluções praticamente diárias.
“Do lançamento do ChatGPT para cá, o volume de aprendizado da tecnologia foi enorme, criando uma pressão na alta liderança. Em interações com executivos C-Level, vemos muita gente se sentindo ultrapassada ou sem saber o que fazer”, comenta o executivo da IBM. Não é só impressão pessoal: em uma pesquisa recente com executivos da América Latina feita pela empresa de tecnologia, 64% dos entrevistados afirmam que enfrentam uma pressão significativa de investidores e credores para acelerar a adoção de IA generativa.
Assim, antes de avançar, vale a pena entender alguns princípios básicos sobre essa revolução tecnológica. O primeiro é que, neste momento, mais do que mudar os produtos das companhias, a inteligência artificial vai trazer mudanças profundas nos processos. “É uma tecnologia que faz com que a gente faça tarefas de um jeito melhor e em menos tempo. É uma nova forma de trabalhar — e o primeiro passo que as empresas podem dar é ensinar às pessoas um novo modelo mental de como resolver problemas”, diz Júnior Borneli, fundador e CEO da escola de empreendedorismo digital StartSe. Justamente por esse fator transversal, capaz de atingir praticamente todo e qualquer cargo nas corporações, é que a IA não é apenas um tema de tecnologia. “IA é papo de CEO, porque envolve questões de produtividade e eficiência, especialmente no backoffice das empresas”, ressalta Borneli.
Além disso, é importante entender que há tipos diferentes de inteligência artificial. Algumas delas — as do tipo discriminativo — são ótimas para analisar dados e sugerir tomadas de decisão; outras são generativas, como é o caso do ChatGPT, e partem dos comandos dados pelos usuários para gerar textos, imagens ou vídeos com base em padrões reconhecidos.
Outro ponto reconhecido pelos especialistas é que não vale a pena adotar IA pelo fetiche da tecnologia: é preciso que ela esteja a serviço da resolução de um problema. “Quem utilizar IA só por usar, na maioria dos casos pode trazer prejuízos financeiros ou até mesmo de segurança para a empresa”, ressalta Marcos Albino, superintendente de arquitetura de TI, governança e inovação da B3.
Por outro lado, dado que essa é uma revolução exponencial, com aprendizados todos os dias, é importante começar a explorar já. “Quem demorar a entender o potencial de transformação pode não só perder o bonde mas ver um foguete passar”, opina Marcelo Braga, da IBM. No entanto, é importante saber que não há fórmula mágica: cabe a cada organização encontrar os melhores jeitos de fazer isso, dependendo do tamanho da empresa, do setor em que atua, da cultura e dos problemas que merecem ser resolvidos.
“Em linhas gerais, começar com testes para depois escalar pode funcionar bem para empresas menores ou aquelas de setores em que a IA ainda é uma novidade, ou para quem precisa avançar rapidamente e está disposto a assumir riscos para inovar”, diz Thais Padilha, vice-presidente de engenharia de soluções da Salesforce. “Por outro lado, começar com setores e comitês bem definidos pode funcionar melhor para empresas não dispostas a correr riscos e focadas em garantir alinhamento com a estratégia do negócio. Geralmente, funciona melhor para grandes empresas ou em setores nos quais a IA já é popular.”
Escolha do problema
Independentemente da abordagem escolhida pela sua companhia, é importante ter em mente que não é recomendável eleger qualquer tarefa para começar a adotar IA na sua organização. “O ideal é procurar por tarefas altamente repetitivas, com grande volume de trabalho e grande quantidade de dados relacionados”, afirma Anderson Soares, coordenador científico do Centro de Excelência em Inteligência Artificial (Ceia), da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Há 11 anos responsável por ajudar companhias como Globo, Natura e Cemig a fazer processos de transformação digital no Ceia, Soares recomenda ainda que as companhias ponderem riscos e retornos na hora de avançar. “O ideal é escolher projetos menores primeiro, para ganhar confiança na construção do processo, e depois mirar as áreas mais relevantes para a empresa. Por outro lado, não vale a pena procurar por uma tarefa de baixo retorno sobre o investimento, senão o time não vai engajar”, avalia. Na visão de Marcelo Braga, da IBM, três exemplos se encaixam bem nesse framework: atividades de atendimento ao cliente; melhorias de experiências internas, como integração de sistemas e tarefas de áreas como RH, financeiro e administrativo; ou na própria gestão da tecnologia, automatizando respostas a ataques cibernéticos.
Soares também recomenda que cada companhia faça um diagnóstico próprio das tarefas que pretende automatizar com o uso de IA. Para isso, ele propõe dois eixos de análise diferentes. Um busca entender onde estão os dados: em papéis, em planilhas, em softwares como CRMs ou ERPs, ou, ainda, em sistemas já integrados. Quanto menos tecnológica for a fonte, mais difícil será o trabalho. O outro olha para o tipo dos dados: são eles tabulares (isto é, números ou valores quantificáveis), imagens, textos, áudios ou vídeos? Aqui, a ordem importa: quem apareceu primeiro na frase será mais fácil de ser compreendido pela inteligência artificial, segundo o coordenador do Ceia. Pensar dessa forma também auxilia a compreender outro fator: a evolução da tecnologia. “A inovação da inteligência artificial é sem precedentes na transformação digital, porque ela usufrui de inovações anteriores, como computação, software ou conectividade”, explica.
Do zero ao um
Para quem pretende começar com testes e depois escalar o uso da tecnologia, é importante considerar mais um fator: é preciso escolher um processo sob o qual se consiga gerar resultados e conclusões rapidamente. “Se avaliarmos erros na produção de um item que é feito aos milhares por minuto, em poucos minutos dá para observar se isso funciona ou não. Agora, no caso de uma indústria de dinâmica mais lenta, como educação, pode ser mais complexo. A velocidade da dinâmica vai moldar o aprendizado”, ressalta Leandro Mineti, diretor de dados e inteligência artificial da consultoria Falconi.
Mineti acredita que as empresas precisam manter o equilíbrio: é importante escolher ações de curto prazo, que vão “do zero ao um” rapidamente, mas que também fomentem pilotos de projetos de longo prazo. “Existem decisões intermediárias que nos levam ao caminho da IA e geram valor no curto prazo, como digitalizar processos e construir um sistema de business intelligence”, exemplifica o consultor da Falconi. Ele também considera que, apesar de a escalabilidade estar em segundo plano, é preciso pensar no custo que essa tecnologia terá num futuro próximo. “Toda vez que se pensa em escala, é preciso considerar o aspecto computacional, considerando aspectos como infraestrutura de nuvem e de processamento. É o que pode tornar esse avanço inviável num futuro próximo”, complementa.
Aspectos como privacidade, obediência a regulação e segurança dos dados também não devem ser desprezados, mesmo nas fases de testes. “Pensar nesses temas desde o início ajuda a estabelecer diretrizes claras e evitar potenciais problemas legais ou éticos mais tarde. Incorporar a ética e a conformidade desde o início não freia a inovação, mas a orienta numa direção que respeita os princípios de privacidade, transparência e justiça”, afirma Thais Padilha, da Salesforce. Para quem estiver receoso de debates profundos, é possível adotar lógicas mais simples nesse tema. “Os padrões éticos e morais que existiam anteriormente devem ser transportados ao modelo de resolução de problemas com IA”, diz Borneli, da StartSe.
Ganho de escala
Já para as organizações que pretendem fazer uma implementação menos arriscada, pensando em projetos horizontais que unam diversas áreas e tenham comitês específicos — como ética ou segurança dos dados —, é importante tomar algumas precauções. A primeira delas é com a ansiedade: afinal de contas, é bastante plausível o cenário em que os colaboradores passam a usar inteligência artificial antes mesmo de a empresa estar pronta.
Foi o que aconteceu na B3, que teve de agir rápido para evitar problemas. “Não tem como segurar os funcionários, eles vão acabar entrando no ChatGPT ou no Gemini [do Google]. O problema é que essas plataformas são abertas e aprendem com os dados lá inseridos, o que pode afetar a segurança da empresa”, diz Marcos Albino. “Para dar uma resposta rápida, criamos nossa própria plataforma, o B3 GPT, e criamos um guia de uso para explicar às pessoas como usar inteligência artificial generativa. Além disso, o B3 GPT não se retroalimenta dos dados que são ali inseridos, o que evita vazamento de informações.” Com o sistema, colaboradores da empresa já podem resumir conteúdos de documentos extensos, tirar dúvidas sobre benefícios ou regras de conduta e até mesmo criar códigos de programação.
A companhia também criou um comitê de ética para tratar da adoção de inteligência artificial, envolvendo os times de tecnologia, pessoas, compliance e jurídico, além das áreas operacionais. “Quinzenalmente, o comitê se reúne e filtra todas as operações realizadas e atualiza o guia de uso para as pessoas”, explica o executivo da B3. Olhar para ética e responsabilidade, porém, é apenas um dos cinco passos elementares que a alta liderança tem de seguir na hora de fazer uma adoção massiva de IA — os outros, segundo Padilha, da Salesforce, são integração de dados, escalabilidade, parcerias estratégicas e preparação da força de trabalho. Além disso, é importante cuidar da comunicação. “Os CEOs devem articular claramente como a IA pode beneficiar a organização, conquistando o apoio dos líderes de outras áreas”, diz.
Inteligência humana
Por fim, mas não menos importante, é preciso cuidar das pessoas — que serão fatalmente a parte mais afetada no processo. “Costumo dizer para os executivos que sempre haverá choro e ranger de dentes. É a natureza humana: todo mundo é um usuário resistente a mudanças — e a IA traz muitas delas”, diz Anderson Soares, da UFG. O primeiro passo é convencer os times — e, em especial, quem estiver na ponta dos processos a serem automatizados — a colaborar. Um bom passo é fazer uma retrospectiva. “Recuperar os ganhos que aconteceram nas últimas transformações digitais costuma dar certo alívio quando precisamos passar por novas jornadas”, afirma Soares.
Outro é lidar com o medo do futuro — afinal, se a IA traz ganhos de produtividade, o raciocínio rápido é que será possível fazer mais com menos pessoas e, logo, as pessoas se tornarão descartáveis. Na B3, esse temor se traduziu, por exemplo, com engenheiros de software sendo resistentes à adoção da tecnologia para escrever códigos de programação. “Com o tempo, parte do sucesso está no fato de que as pessoas precisam entender que a IA não vai roubar empregos, e sim servir como copiloto. Por outro lado, é preciso também discutir novos cargos e funções, e por isso a área de pessoas é fundamental”, conta Marcos Albino. Segundo ele, um dos pilares do programa de adoção da IA na empresa é justamente o que ele chama de change management; outro ponto importante, afirma o executivo da B3, é trabalhar a capacitação e a comunicação internas.
Na visão de Thais Padilha, da Salesforce, não basta apenas dizer, mas também escutar. “Os líderes precisam ouvir ativamente as preocupações e o feedback de seus colaboradores, reconhecendo seus medos e incertezas”, afirma a executiva. Um bom argumento para lidar com inseguranças, diz ela, é o fato de que novos cargos também estão surgindo. “Estão sendo criados empregos que não existiam, como engenheiros de IA, especialistas em ética de IA, engenheiros de prompt, auditores de dados de IA e muitos outros.”
Nesse processo, pode acontecer outro fenômeno curioso: aos poucos, as barreiras entre diferentes áreas das empresas podem cair. “As coisas não estão mais em caixinhas”, brinca Marcelo Braga, da IBM. Para ele, cada vez mais, profissionais de tecnologia precisam entender dos negócios, enquanto quem atua no business terá de compreender IA e dados de maneira ampla. “Para quem não é de tech, entender de tecnologia não é mais um diferencial, mas algo fundamental. Isso faz com que a probabilidade de obsolescência dos profissionais seja enorme, numa velocidade muito grande — não é mais algo que vai ocorrer em uma década”, afirma o executivo. Para ele, o futuro será cada vez menos formado por profissionais especializados, e sim sobre a profundidade de especializações com olhar humano e tecnológico.
O avanço cada vez mais rápido da tecnologia também muda a forma como a alta liderança atua, na visão de Marcelo Braga. “A liderança e o conselho de administração têm uma vivência muito grande e estavam acostumados a ensinar a empresa, mas agora é preciso se atualizar. É importante que as pessoas ouçam ideias, se sintam abertas e invistam em aprender, aproveitando uma janela de transformação”, diz o presidente da IBM no Brasil.
Tão importante quanto aprender, porém, é compreender que sempre haverá algo novo para ser implementado. “A inteligência artificial trouxe o gerúndio para o dia a dia das empresas: ‘estamos entendendo, evoluindo’”, afirma Junior Borneli, da StartSe. Para ele, cada vez mais será necessário ter uma capacidade de ambidestria: de um lado, manter um esforço de atualização. Do outro, consolidar os aprendizados e implementá-los. “Quem ficar na histeria louca de só aprender não terá nada sólido; quem só quiser implementar vai precisar se atualizar. É preciso criar essa cultura de sempre buscar o futuro.”