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Choque de gestão no Pará é exemplo para cidades brasileiras

Ciclo vicioso começou a mudar após um esforço, inédito no Brasil, de promover um pente-fino nas prefeituras problemáticas

Centro de Castanhal: o controle de gastos permitiu receber recursos federais | ASCOM / Castanhal /

Centro de Castanhal: o controle de gastos permitiu receber recursos federais | ASCOM / Castanhal /

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Da Redação

Publicado em 12 de abril de 2018 às 05h50.

Última atualização em 19 de abril de 2018 às 10h52.

Até pouco tempo atrás, era dura a vida de quem dependia de serviços públicos em Castanhal, município paraense de 200.000 habitantes. Nos postos de saúde, faltavam remédios básicos, como aspirinas. Só duas das 13 ambulâncias funcionavam, o que causava filas de pacientes por consultas em hospitais da capital Belém, distante 70 quilômetros. O salário dos funcionários estava atrasado. O aperto era resultado do caos na prefeitura. As dívidas em 2017 eram 10% superiores à arrecadação anual, de 225 milhões de reais. Há um bom tempo, a prefeitura tinha deixado de pagar sua parte na Previdência dos servidores. Por isso, estava havia nove anos no Cauc, um sistema do Tesouro Nacional para listar as prefeituras que deixam de pagar obrigações ou de declarar como gastaram os recursos repassados pelo estado e pela União. O “nome sujo” só causava mais problemas. “Estávamos impedidos de receber dinheiro de outras esferas para fazer investimentos”, diz Karlan Vaccari Caldeira, secretário de Finanças de Castanhal.

O ciclo vicioso só começou a mudar após um esforço, inédito no Brasil, de promover um pente-fino em larga escala nas prefeituras problemáticas. Chamado de Municípios Sustentáveis, o projeto tem sido tocado desde outubro pela organização social Comunitas, no qual empresários financiam inovações na gestão pública, em parceria com o governo paraense. Até agora, mais de 300 servidores de 53 das 144 cidades do Pará — Castanhal entre elas — foram treinados por consultores contratados pela Comunitas e por técnicos do governo paraense, que têm visitado as prefeituras para promover oficinas com funcionários públicos, geralmente da alta liderança ou de cargos concursados.

Boa parte das lições soa óbvia na iniciativa privada, como ter metas de despesas e receitas, controle de gastos desnecessários e processos para prestação de contas. Mas, em muitas prefeituras brasileiras, tudo isso ainda é novidade. É o que explica por que oito entre dez municípios têm gestão fiscal ruim, segundo um estudo da Firjan, federação das indústrias do Rio de Janeiro, responsável pelo Índice de Gestão Fiscal, principal referência para a qualidade dos gastos nas cidades brasileiras. “As prefeituras têm menos recursos do que os estados e a União. Por isso, têm mais dificuldade de recrutar gente capacitada para trabalhar”, diz o economista-chefe da Firjan, Guilherme Mercês, responsável pelo estudo.

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O problema é mais grave no Pará, onde o isolamento geográfico e o alto número de municípios criados recentemente — 42% foram emancipados nas últimas quatro décadas — dificultam ainda mais as coisas. Para ter uma ideia da gravidade, segundo a Firjan, 63% dos municípios paraenses nem sequer declararam publicamente, em jornais, revistas ou sites, dados sobre licitações realizadas e verbas recebidas em 2016 — índice que só perde para o vizinho Amapá, onde 87% dos municípios não declararam informações.

A média nacional de falta de informação é de 18%. No mesmo período, 28% das prefeituras do Pará gastaram com pessoal mais do que o limite de 54% das receitas líquidas, estipulado na Lei de Responsabilidade Fiscal — o dobro da média do país. “As enormes deficiências fiscais dos municípios paraenses chamaram nossa atenção para a urgência do problema”, diz Regina Esteves, presidente da Comunitas.


PRIMEIROS RESULTADOS

Em oito meses de projeto, já foi possível colher bons resultados. Os problemas mais comuns, como falta de controle do consumo de combustíveis ou desperdício de merenda escolar, passaram a ser atacados. As irregularidades dos municípios paraen-ses registradas no cadastro do Tesouro Nacional caíram 32% — em 5 de abril, eram 479 ocorrências. É ainda um número alto perto da meta de eliminar as pendências. (Entretanto, uma comparação com outros estados é impossível por uma falha, no mínimo, prosaica: o sistema do Tesouro, que deveria registrar a evolução das contas públicas, não guarda o histórico de quem entrou ou saiu da lista. O sistema mostra só um retrato diário. Os técnicos do órgão alegam falta de recursos para esse monitoramento.) Desde o início do projeto, o número de cidades paraenses sem pendências no Tesouro subiu de nove para 35.

É o caso de Castanhal, onde a prefeitura conseguiu estender os pagamentos da dívida por 16 anos. Com isso, foi possível regularizar o salário dos servidores e restabelecer o estoque de remédios. A cidade também conseguiu captar mais de 70 milhões de reais para obras urgentes, como novas bombas para universalizar o acesso à água potável, que hoje chega a menos de 80% das casas. O objetivo da prefeitura é ampliar a rede de esgoto, que só atende 5% das residências, uma cobertura ainda pior do que a vergonhosa média nacional, de 50%. A próxima meta é dobrar as receitas próprias, que respondem por 10% do orçamento anual da prefeitura. Uma das ideias é checar se todos os imóveis da cidade estão registrados na prefeitura — e seus moradores pagando o IPTU.

Centro de Vancouver, no Canadá: lá, as prefeituras são meras extensões dos estados | Andriy Prokopenko / Getty Images

A demanda para formação de gestores públicos nas cidades é enorme num país com as carências do Brasil. A Firjan já demonstrou interesse em adotar um programa semelhante ao Municípios Sustentáveis no Rio de Janeiro, além de criar um certificado para cidades com avanços fiscais. A Escola Nacional de Administração Pública, ligada ao Ministério do Planejamento, em Brasília, criou o primeiro curso de pós-graduação para servidores de prefeituras. Mais de 2.000 participaram da seleção para 120 vagas do curso, iniciado neste mês de abril.

Em julho, um grupo de 20 prefeitos e gestores públicos selecionados pela Comunitas embarcará para Nova York para uma semana de estudos na Universidade Colúmbia. É uma iniciativa inspirada no que fez o bilionário Michael Bloomberg com prefeitos americanos. Mas, diante das necessidades dos 5.570 municípios brasileiros, as experiências são ainda incipientes.

Na origem dos problemas fiscais está o número excessivo de municípios existentes no Brasil. A maioria deles foi constituí-da atendendo a interesses políticos, sem a preocupação de como arcariam com seus custos. Em 2016, oito entre dez cidades brasileiras tiveram menos de 20% do orçamento gerados por arrecadação própria, ou seja, de impostos como o predial e o sobre serviços (ISS). Dependem de repasses de fundos federais. São, portanto, economicamente inviáveis com sua máquina de administração, serviços públicos municipais e Câmara de Vereadores.

Há alguns países, como a Austrália e o Canadá, em que os municípios são tratados como uma extensão dos estados. Muitas vezes, eles nem sequer têm orçamento próprio, mas funcionam sem estruturas custosas. A prefeitura faz apenas uma zeladoria da cidade. Educação e saúde, por exemplo, ficam por conta da esfera estadual. Aqui, diante do quadro geral de penúria das contas dos municípios, o programa implantado no Pará mostra o caminho para pelo menos controlar os custos e gerir melhor o dinheiro disponível. Ainda falta muito. Mas o norte é esse.

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