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Chefe, eu sou gay

Por que o mundo corporativo se transformou na última fronteira para que os executivos homossexuais assumam sua verdadeira identidade

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Da Redação

Publicado em 6 de maio de 2011 às 21h41.

Quando a empresa anunciou que o executivo argentino João Augusto* passaria três meses no Canadá, várias frases povoaram sua cabeça na tentativa de achar o melhor jeito de conversar com sua superiora. Não que ele não quisesse deixar o Brasil por esse período (já havia feito isso algumas vezes) -- o que o afligia era outra questão.

João Augusto é casado, mas na empresa ninguém sabia (ou fingia não saber) e ele não queria viajar sozinho. "Ao saber que iria passar três meses no Canadá, tive de ser objetivo com minha chefe", diz João. "Falei que tinha um companheiro havia alguns anos e queria que ele fosse comigo."

Ao ouvir a palavra "companheiro", a superiora não quis saber detalhes da história nem entender melhor a situação de seu subordinado. "Ela só disse que iria dar um jeito e mudou de assunto", afirma. Um mês depois, ele foi para Toronto com seu parceiro, e a empresa bancou a estada dos dois durante o período, uma prática comum quando se trata de marido e mulher. Não se falou mais no assunto. Ninguém ficou sabendo do relacionamento ou do acerto entre João e sua chefe. "Tudo ficou por baixo do pano", diz ele.

Situações como essa são mais comuns do que se imagina no ambiente corporativo. Assumir-se homossexual quando se atinge determinada posição em uma grande empresa costuma ser muito mais difícil que abrir o jogo em casa ou entre os amigos. Isso porque executivos gays sabem que podem ser vítimas de discriminação ou perder oportunidades de crescimento dentro da empresa.

No livro Straight Jobs, Gay Lives (Empregos Heterossexuais, Vidas Homossexuais, ainda não publicado no Brasil), que descreve a vida de homossexuais na Harvard Business School e nas empresas americanas, as autoras Annete Friskopp e Sharon Silvertein mostram que outras razões, além da discriminação, impedem o executivo ou a executiva homossexual de assumir sua orientação na empresa.

O desejo de privacidade, o medo de associação da homossexualidade ao vírus HIV e o desconforto de ter de falar sobre a vida particular com heterossexuais acabam contribuindo para que eles não encontrem lugar mais seguro que o próprio armário.


"No caso do executivo, assumir sua homossexualidade torna-se mais difícil porque ele acredita que pode perder muito do que construiu e, na maioria dos casos, isso não é pouco", diz o psicólogo Klecius Borges, de 50 anos, 23 deles trabalhando em grandes corporações, como BankBoston, American Express e JP Morgan. Borges, homossexual assumido, deixou a vida corporativa no ano passado para montar uma clínica de terapia para homossexuais e trabalhar como consultor organizacional.

Durante seus anos como executivo, porém, ele próprio não chegou a sair completamente do armário. Mantinha a postura típica dos executivos homossexuais de grandes empresas. Jamais escondeu sua orientação sexual, mas também nunca tocou no assunto sem que ele surgisse de forma natural. "As pessoas mais próximas sabiam da minha situação, mas nunca mostrei fotos de namorados ou entrei em detalhes sobre minha vida particular", diz ele. "E, na verdade, é isso que a empresa espera do executivo: ela tolera, mas não quer ouvir nada sobre o assunto."

A atitude de simplesmente fechar os olhos tomada por alguns superiores -- caso da chefe de João Augusto -- pode ser facilmente explicada. A idéia estereotipada de que todo gay assumido é afeminado ou vai desmunhecar durante as reuniões acaba desviando a atenção da empresa da questão da homossexualidade. O melhor, então, é ignorar o assunto. "O que ocorre nas empresas brasileiras é o disfarce mútuo: eu não falo nada e os outros fingem que não sabem", diz Borges. "Desde que eu não me apresente como o gay que eles têm na cabeça, está tudo bem."

Há outro obstáculo que inibe essa discussão nas empresas. Os executivos homossexuais são considerados estranhos no ninho do modelo corporativo tradicional, que ainda valoriza o homem casado, com filhos e dono de um comportamento típico masculino. Falar sobre preferências sexuais ou dar liberdade aos profissionais para que convidem seus parceiros para as atividades da empresa seria admitir outro modelo executivo e assumir uma postura de diversidade no trabalho para a qual poucas empresas no Brasil -- e no mundo -- estão preparadas.


"Principalmente em cargos altos, os profissionais são vistos como espelhos da organização", diz a headhunter Fátima Zorzato, da Russell Reynolds Associates. "E o que todos querem ver no espelho é uma imagem comportada, ou seja, a do homem que tenha histórias da mulher e dos filhos para contar." (No que se refere à executiva homossexual, o preconceito costuma ser ainda maior. A imagem que fica é a da mulher masculinizada, autoritária e carente da sensibilidade comum ao sexo feminino.)

Em alguns casos -- e isso não é raro --, a imagem do pai de família é tão forte na organização que muitos executivos gays acabam optando por uma vida dupla, casando-se e, às vezes, até tendo filhos para preservar a carreira. "Quem escolhe esse caminho vai ser infeliz e também pode destruir a vida de outras pessoas", diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto de Sexualidade da Universidade de São Paulo (USP). "Mas, infelizmente, essa é a arma do executivo que sabe da preferência pelos heterossexuais na hora de preencher altos cargos nas empresas."

Alguns usam essa estratégia como instrumento de defesa, outros apenas para se livrar da pressão psicológica silenciosa que paira sobre a empresa. "Sempre que há eventos em que os executivos levam mulheres, as pessoas me perguntam por que ainda não tenho namorada", diz o paulista Luiz Mauro*, de 37 anos, executivo de uma multinacional do setor de alimentos. "Disfarço o assunto com brincadeiras, dizendo que ninguém gosta de mim. Por dentro, penso que tenho esse alguém, mas não posso nem sequer falar sobre ele."

Jantares sociais, viagens de férias e histórias de fins de semana são assuntos detestáveis para os executivos gays que vestem o disfarce quase imposto pelas empresas. Sem contar que nesses eventos o risco de ouvir piadas de mau gosto sobre gays não é pequena. Quase sempre, eles têm de ouvir calados.

"Vivemos a síndrome da segunda-feira", diz João Augusto. "Enquanto todos contam travessuras dos filhos ou passeios com namoradas, nós só fazemos comentários vagos sobre o fim de semana." Atitudes tão naturais na rotina de um profissional, como colocar um retrato do companheiro na mesa do escritório ou mostrar o álbum de fotos das viagens de férias, são impensáveis quando as ditas fotos vão mostrar um acompanhante do mesmo sexo.


Detalhes como esses e a manutenção de uma imagem falsa acabam sufocando o cotidiano profissional do executivo. Quem perde com isso é a própria empresa. "Ao estimular essa política hipócrita do dont ask, dont tell (não pergunte, não fale), a empresa faz com que o profissional gaste energia, disfarçando e escondendo os fatos", diz Borges. "Com isso, ele deixa de ser um funcionário completo e produtivo."

Esse cenário de disfarces e desculpas já foi pior. Se hoje o executivo consegue falar com algumas pessoas no trabalho sobre sua sexualidade, no passado isso era impossível. Há pouco mais de 15 anos, ser enrustido -- pelo menos na empresa -- era a regra a ser cumprida. O gay assumido no mundo dos negócios era visto como um doente ou um promíscuo sem espaço para aceitação.

Apenas em 1993, a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de considerar a homossexualidade (chamada na época de homossexualismo) uma doença. Até então, ela era tida como um transtorno sexual, comparada à pedofilia ou à necrofilia. Hoje, as causas que levam o indivíduo a sentir atração pelo mesmo sexo ainda não estão totalmente esclarecidas.

"Concebemos como causa uma multiplicidade de fatores, que chamamos biopsicossocial", diz a psiquiatra Carmita. Isso significa que parte da orientação sexual se deve a fatores biológicos, outra parte a fatores psicológicos e sociais.

A partir do momento em que o tema homossexualidade vai ganhando espaço nas ruas -- a passeata do Orgulho Gay no Rio de Janeiro reuniu 100 000 pessoas neste ano, a de São Paulo, 500 000 -- e também no mercado consumidor, as empresas brasileiras começam a mudar de postura. Mas ainda a passos lentos, quando comparadas às organizações americanas.

Assim como Borges, João Augusto também fez parte de corporações americanas com filiais no Brasil e pôde comparar as diferenças com que o tema homossexualidade era tratado nos escritórios de Nova York e em São Paulo. "Se eu ainda estivesse trabalhando numa multinacional americana, não teria problemas em divulgar meu nome, cargo e empresa", diz ele.


Segundo Borges, as empresas americanas têm uma política de diversidade bastante planejada e, algumas vezes, chegam a obrigar suas filiais no Brasil a seguir o mesmo modelo para as chamadas minorias (que incluem, na maior parte das vezes de forma equivocada, negros e mulheres). "Nem sempre essa fórmula dá certo, pois a cultura do brasileiro é muito diferente", diz Borges.

"Se você fizer uma palestra para homossexuais na empresa, poucos no Brasil vão ter coragem de se expor. É preciso saber como tocar no assunto." O executivo americano Scott Anderson, diretor de comunicação estratégica da consultoria de recursos humanos Mercer, trabalhou na filial brasileira durante três anos e percebeu que aqui as pessoas tratam a homossexualidade como um segredo indigno de ser revelado.

"O Brasil é o país mais seguro do mundo para a gente ficar no armário", diz Anderson, que hoje trabalha no México. "Nos Estados Unidos, por exemplo, todos querem saber se você é casado ou se tem família. Isso contribui para que o executivo exponha mais seu cotidiano, sem medo de se assumir."

Em São Paulo, o escritório do banco JP Morgan Chase tenta fazer com que os funcionários aceitem a diversidade de forma natural, seguindo o exemplo da matriz. Questões como "o que você faria se tivesse um chefe ou um subordinado gay?" já foram discutidas entre os funcionários.

"Por meio de workshops e discussões, buscamos fazer com que todos aceitem e respeitem as diferenças na empresa", diz Wilmi Pwa, gerente de tecnologia do JP Morgan Chase e uma das coordenadoras do comitê de diversidade do banco. No Morgan, os homossexuais têm direito a plano de saúde para o companheiro (ou companheira) e liberdade para levá-los aos eventos sociais do grupo.

"No convite, usamos a palavra acompanhante para que não haja constrangimento se alguma funcionária quiser levar sua companheira, por exemplo", diz Vivian Kairalla, gerente de treinamento e recrutamento.


A mesma prática é adotada na American Express. Ken Chenault, presidente mundial da empresa, prepara todo ano um memorando para falar sobre a questão da diversidade. O tema é tão discutido nos corredores da empresa que na sede, em Nova York, alguns funcionários criaram grupos gays com direito a cartazes espalhados pelos andares do prédio, convidando para festas ou reuniões.

No Brasil, isso ainda não aconteceu, mas, para Salvador Evangelista Jr., vice-presidente de recursos humanos da Amex, se amanhã alguém quiser organizar um grupo semelhante, não vai ser nenhuma surpresa. "As competências dos profissionais são o único fator que justifica a presença deles aqui", afirma Evangelista Jr.

Competência. Eis uma palavra bastante pronunciada pelos personagens deste artigo. Os executivos homossexuais dizem que, por mais amistosa que seja a política da empresa em que trabalham, eles têm de provar o tempo todo que são melhores que os heterossexuais. Mesmo que sejam brilhantes, eles sempre terão sua orientação sexual como algo a ser questionado.

O executivo francês Jean Paul*, que trabalha há quase cinco anos em um banco estrangeiro em São Paulo, diz que não sofre nenhum tipo de preconceito dos colegas de trabalho por ser homossexual. Recebe também benefícios do banco que se estendem ao seu parceiro, comenta naturalmente sua vida particular entre os colegas e até recebeu presente no dia do seu casamento.

"Isso não significa que eu não tenha de provar um talento acima do normal", diz Jean Paul. "Qualquer deslize profissional que cometer vai ser associado à minha orientação sexual."

Por esse motivo, muitos deles acabam optando por carreiras que estejam distantes do árido mundo corporativo. Em atividades artísticas, turísticas e de entretenimento, a homossexualidade continua a ter maior aceitação. "Os gays enxergam no topo das empresas um teto de cristal", diz João Augusto. "Se a pessoa não tiver uma forte bagagem cultural e mostrar sua competência, ela vai perder espaço para o heterossexual -- ainda que ele seja pior. Alcançar posições de liderança passa a ser um sonho distante."


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