Revista Exame

Cansados de crise

A desvalorização do rublo e a queda do preço do petróleo colocam a Rússia na rota de uma nova crise econômica. Temendo pelo futuro, a população adota estratégias de sobrevivência para tempos difíceis


	Cliente faz compras em supermercado de Moscou
 (Kirill Kudryavtsev/AFP)

Cliente faz compras em supermercado de Moscou (Kirill Kudryavtsev/AFP)

DR

Da Redação

Publicado em 26 de janeiro de 2015 às 09h47.

Moscou - No último domingo de 2014, os russos encararam de forma distinta a iminência de uma crise que pode fazer sua economia parar pelos próximos dois anos. Sob uma temperatura de 10 graus negativos, cerca de 1 500 pessoas protestavam no parque Gorki, ao lado do rio Moscou, que praticamente não se movia, coberto por blocos de gelo.

A súbita desvalorização do rublo, que desestabilizou o país em dezembro, fez com que hipotecas tomadas em moeda estrangeira se tornassem, em questão de dias, impagáveis.

“Minha prestação, que era de 60 000 rublos (o equivalente a 2 500 reais), passou para 100 000 rublos”, disse Olga Kuchkovskaya, executiva de uma fabricante de cosméticos. Os demais manifestantes xingavam os bancos, que supostamente os teriam enganado, e colhiam assinaturas para uma petição ao Parlamento.

Nos últimos meses de 2014, os russos foram assombrados por velhos, mas conhecidíssimos, fantasmas. Historicamente dependente do petróleo, a economia russa vive tempos de penúria. Para piorar, a recente queda na cotação do petróleo pegou a Rússia num momento que já era difícil o bastante.

As sanções impostas após a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2014, já vinham sufocando os bancos locais. Com a soma das duas coisas, foi impossível evitar uma crise. Nos últimos seis meses, o rublo perdeu 44% de seu valor. Apenas no dia 16 de dezembro, na “terça-feira negra”, a queda foi de 20%.

Depois de o banco central puxar de uma só vez os juros de 10,5% para 17%, a moeda se recuperou um pouco e estabilizou em torno de 60 rublos por dólar. Em sua tradicional coletiva de imprensa de fim de ano, o presidente Vladimir Putin disse que a recessão poderá durar dois anos.

A desvalorização do rublo trouxe à memória a crise de 1998, quando a moeda perdeu dois terços do valor em menos de um mês, a inflação chegou a 85% no ano seguinte e o dinheiro ficou preso nos bancos. Apavorados com a possibilidade de um repeteco, os russos foram aos bancos sacar dinheiro, comprar dólares e euros ou qualquer coisa que parecesse perder menos valor do que sua moeda.

Tudo virou “reserva de valor” no país. A gigante de eletrônicos Apple chegou a suspender as vendas em seu site, assim como a varejista sueca de móveis Ikea, que teve suas lojas tomadas por consumidores ensandecidos. Tornaram-se comuns em Moscou histórias de pessoas que compraram meia dúzia de TVs e até carros.

Num shopping instalado na Praça Vermelha, o desespero no fim de dezembro era para torrar os rublos nos últimos presentes para o Natal russo, comemorado no dia 7 de janeiro. “Chegamos a ter filas para entrar na loja, e as bolsas esgotaram-se. Nunca vi nada parecido em oito anos trabalhando aqui”, disse Viktoria Bolotina, vendedora da marca francesa Dior, cujas bolsas custam até 7 000 dólares.

A Rússia, que teve a segunda maior economia do mundo por quase metade do século 20, é um daqueles países em que viver sem crise virou quase exceção. Nos anos que sucederam a queda do regime comunista, o PIB russo caiu pela metade. Em 1998, o governo quebrou e deu calote em sua dívida. O início dos anos 2000, que coincidem com a chegada de Putin ao poder, trouxe bons ventos, com a valorização de commodities como o petróleo — fenômeno que também ajudou a economia brasileira.

Em 2008, no entanto, no rastro da crise financeira global, bancos russos quebraram, e o PIB encolheu 8% no ano seguinte. Se a atual crise vai se equiparar às anteriores, ainda é incerto. O que se sabe é que ela coloca em xeque o modelo econômico e político do presidente Putin.

A atual crise é consequência de uma combinação de dois fatores de responsabilidade direta do governo russo. O primeiro está ligado à dependência em relação ao petróleo — que aumentou na última década. Atualmente, um terço do PIB russo depende do petróleo, que também responde por 70% das exportações.

Criticado por ter feito pouco para diversificar a economia em seus 14 anos de governo, Putin agora sofre as consequências. As receitas do governo com petróleo, que chegaram a 250 bilhões de dólares em 2013 (com o barril acima de 100 dólares), podem cair para 140 bilhões em 2015.

Em janeiro, o preço do barril caiu abaixo dos 50 dólares. “O modelo de crescimento russo está claramente esgotado,” afirma Leonid Grigoryev, conselheiro-chefe do centro de análises econômicas do governo.

Sanções financeiras

O outro fator se deve a decisões geopolíticas de Putin. Em represália ao apoio russo aos rebeldes do leste da Ucrânia e à anexação da Crimeia em março de 2014, os Estados Unidos e a União Europeia iniciaram uma série de sanções financeiras ao país. Primeiro bloquearam os bens de aliados de Putin no exterior e, em seguida, proibiram bancos ocidentais de conceder empréstimos a instituições russas.

O efeito dessas medidas demorou, mas bateu forte. Em dezembro, empresas russas, como a petroleira estatal Rosneft, tinham um volume incomum de quase 20 bilhões de dólares em dívidas a vencer. Em condições normais, essas companhias teriam se refinanciado, e o problema seria empurrado para a frente.

Mas, com as torneiras dos bancos internacionais fechadas, tiveram de comprar dólares no mercado para pagar as dívidas, fazendo a demanda pela moeda estrangeira disparar e o rublo despencar. “Os dois fatores aconteceram juntos e no pior momento possível para a Rússia”, diz Oleg Kouzmin, economista do Renaissance Capital, banco de investimentos de Moscou.

O que agrava a situação é que nenhum desses fatores é de fácil reversão. Com a oferta em alta e a demanda em baixa, é pouco provável que o barril de petróleo volte tão cedo para perto dos 100 dólares. Já a suspensão das sanções financeiras depende basicamente de Putin recolher seus tanques — o que, por ora, não parece estar nos planos do Kremlin.

O impacto mais direto para a população russa deve vir com a alta da inflação. Estima-se que, em média, 60% da cesta de consumo de uma família russa seja de produtos estrangeiros.

O dólar em ascensão encarece os itens importados, e o embargo a laticínios e a carnes americanas e europeias — represália de Putin às sanções financeiras — fez com que os preços disparassem. Como consequência, a inflação acabou fechando o ano passado em 11%, quase o dobro de 2013.

Sem resolver seus rolos geopolíticos, Putin terá apenas duas armas para combater sua crise internamente. Uma delas é a reserva em moeda estrangeira, que, embora tenha encolhido 25% em 2014 (para aproximadamente 390 bilhões de dólares), ainda representa um instrumento poderoso para conter a desvalorização do rublo.

O problema é que, à medida que queima suas reservas, a Rússia se torna mais vulnerável — as agências de classificação de risco já anunciaram a revisão das notas de crédito do país. A outra arma são os juros. Elevar a taxa abruptamente ajudou a conter o pânico, mas o efeito pode ser danoso caso o patamar de 17% seja mantido ao longo de 2015, encarecendo empréstimos, reduzindo investimentos e aumentando a dívida pública.

A incerteza sobre como o governo vai lidar com a crise não ajuda. Miroslav Zubachevsky, diretor-gerente da KupiVIP E-Commerce Services, empresa que opera lojas online para marcas de roupas europeias, diz que os negócios esfriaram devido à instabilidade do país. “Tenho uma dúzia de fabricantes que querem entrar na Rússia, mas estão segurando a assinatura dos contratos porque temem o futuro do dólar e a situação política”, diz Zubachevsky.

Os russos encaram a crise atual com uma mistura de preocupação e resignação. É comum ouvir que a atual crise econômica não fará o que outras muito piores não fizeram. A história da publicitária Olga Soukharchuk, de 48 anos, ajuda a explicar o que eles querem dizer. Em 1991, ela morava com a filha de 6 meses e o marido em um quarto num apartamento coletivo, algo típico nos tempos de comunismo, quando teve de enfrentar uma crise de abastecimento na decadente União Soviética.

Pegava filas de 4 horas para comprar leite e trocava sua cota de vodca por legumes. Em 1998, foi demitida da agência de publicidade em que trabalhava. Nos anos de prosperidade, época em que a Rússia virou um badalado Bric, Olga deu a volta por cima com um novo emprego e conseguiu até comprar um apartamento. Mas a história se repetiu em 2008, quando ficou desempregada em razão da crise mundial.

Hoje, trabalhando no departamento de marketing de uma distribuidora de café europeia em Moscou, a publicitária teme pelo seu futuro e de sua família. “Os preços nos supermercados estão subindo, e isso significa que vamos ter de fazer mais promoções e cortar custos. Não sei o que pode acontecer com meu emprego”, diz.

É inegável que a vida na Rússia é muito melhor hoje do que era nos tempos de fila do pão, 30 anos atrás. Crises fazem parte da história russa. Quem tem mais de 20 anos já viu coisa muito pior. Mas que cansa, cansa.

Acompanhe tudo sobre:ÁsiaBancosCrises em empresasEdição 1081EuropaFinançasRússia

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda