Revista Exame

Lojas físicas não vão desaparecer, mas o futuro do varejo é digital

A pandemia deixou claro que a digitalização não é uma questão de escolha

Amazon é a marca de varejo mais valiosa do mundo, segundo ranking (Gianni Cipriano/The New York Times//Fotoarena)

Amazon é a marca de varejo mais valiosa do mundo, segundo ranking (Gianni Cipriano/The New York Times//Fotoarena)

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Da Redação

Publicado em 12 de fevereiro de 2021 às 07h59.

A cena foi vista recentemente numa loja do Whole Foods de Nova York e vem se repetindo há meses em dezenas de outras ao redor dos Estados Unidos: a maioria das pessoas circulando pelos corredores são funcionários do próprio supermercado. Como saber? Além do uniforme, todos têm um smartphone na mão para atender a pedidos feitos pela internet. Outra indicação são os sacos de papel nos carrinhos. Os produtos são separados por tipo — verduras e legumes vão em um pacote, enlatados em outro —  para dali serem carregados em uma van e entregues na porta da casa do cliente.

O Whole Foods é a rede de supermercados adquirida pela Amazon por 13,7 bilhões de dólares em 2017. A integração com a maior varejista digital do mundo inicialmente foi tímida: alguns benefícios do serviço Prime, como descontos, foram estendidos aos clientes do supermercado. Um ano depois, a Amazon passou a oferecer delivery gratuito de pedidos acima de 35 dólares, dentro de uma janela de 2 horas. Mas foi só durante a pandemia que o uso dessa comodidade disparou.

A empresa não divulga informações detalhadas do Whole Foods em seus relatórios financeiros trimestrais, mas a consultoria Earnest Research estima que as vendas da rede aumentaram até 10% nos primeiros seis meses da pandemia. Concorrentes como o Walmart — que, além de alimentos, vende várias outras categorias de produtos — cresceram ainda mais rápido, por causa da conveniência de consolidar todas as compras em uma só loja.

Consumidores em um shopping center no interior de São Paulo: as lojas terão de se adaptar e tornar-se centros de serviço (Lucas Lacaz Ruiz/Fotoarena)

Os supermercados são a mais nova fronteira do comércio eletrônico. A digitalização do varejo já vinha acontecendo havia muitos anos, mas a pandemia do coronavírus precipitou uma aceleração dramática. Em entrevista à EXAME no ano passado, o presidente do serviço de pagamentos eletrônicos PayPal, Dan Schulman, estimou que o setor daria um salto de três a cinco anos no que diz respeito à transformação digital. A experiência dos consumidores ao redor do mundo reflete a avaliação de Schulman.

O que se vê nas ruas de Nova York e de outras cidades americanas, também. Muito antes de o teletrabalho sugar a vida das ruas de ­Manhattan, grandes redes nacionais já vinham fechando unidades num ritmo sem precedentes diante da concorrência das compras online. Em 2019, estima-se que 9.300 lojas tenham fechado as portas definitivamente nos Estados Unidos, superando o recorde de 8.000 fechamentos registrados em 2017. Há dois anos, a tradicional loja de departamentos Lord & Taylor encerrou as operações de sua flagship, que ocupava o mesmo endereço na Quinta Avenida desde 1914.

O influenciador Li Jiaqi, conhecido na China como “o rei do batom”: maior vendedor de produtos de beleza do país (VCG/Getty Images)

Algumas quadras mais ao sul, talvez o maior símbolo do varejo americano, a Macy’s também atravessa uma crise sem precedentes. De suas 544 lojas, 125 deixarão de operar até 2023. Para varejistas de todo tamanho, a pandemia deixou claro que a escolha é “amazonizar-se” ou ser atropelado pela Amazon — ou por algum outro gigante. As transformações envolvem muita tecnologia, é claro, mas também um novo olhar sobre os desejos do consumidor e o lugar das lojas físicas em um mundo cada vez mais mediado pela internet.

A ideia de transformar as lojas tradicionais em “centros de experiência” não é nova, mas a pandemia talvez represente o impulso definitivo, já que muitos consumidores há meses compram exclusivamente online. “As lojas terão de se adaptar e tornar-se centros de serviço”, diz Piers Fawkes, fundador da consultoria especializada em varejo PSFK. “Elas servirão como um lugar de descoberta, como sempre foram, mas também como um espaço para aprender e realizar novas conexões.”

A Showfields, que se autoproclama a “loja mais interessante do mundo”, reabriu para o público em julho do ano passado. A startup opera um espaço de 1.400 metros quadrados em ­Manhattan com a missão de provar que nada substituiu a experiência de ir às compras. Mas as limitações — e o medo — trazidos pela pandemia forçaram a companhia a inovar. A Showfields criou um aplicativo de smartphone chamado Smart Wand (“varinha inteligente”, uma brincadeira com a varinha de condão) para oferecer informações adicionais sobre os produtos expostos e montar uma cesta de compras virtual — paga no próprio app e retirada na saída.

A importância da tecnologia digital em todos os passos da jornada de compra, do marketing às interações na loja física — caso exista uma loja física —, é uma das novas obsessões do varejo em todo o mundo. Mas outro lado da transformação digital acontece nos bastidores, longe dos olhos do cliente. Para competir com o poderio dos gigantes do e-commerce, muitas companhias estão apostando na capilaridade de suas redes de lojas para oferecer rapidez e comodidade.

“As lojas estão se tornando parte da cadeia logística”, afirmou numa entrevista recente John Morris, responsável pela área de varejo e logística da CBRE, uma gestora de imóveis comerciais. Isso significa que o estoque de cada unidade também funciona como uma espécie de minicentro de distribuição, para atender aos pedidos das proximidades. Cerca de 75% dos pedidos online da Target, uma das maiores varejistas dos Estados Unidos, são entregues diretamente de suas lojas. O mesmo vale no sentido inverso: trocas e devoluções podem ser feitas pessoalmente, evitando o incômodo de ter de mandar um produto de volta pelo correio.

Integração das lojas

O gradual desaparecimento das fronteiras entre as transações digitais e presenciais deve continuar tendo impacto muito depois de passada a pandemia do coronavírus. Uma das modalidades que mais vêm crescendo é conhecida pela sigla em inglês BOPIS: comprar online, retirar na loja. Na rede de produtos para casa Bed Bath & Beyond, 15% das vendas online são retiradas pelos próprios clientes. A promessa é que os pedidos estejam prontos em até 2 horas, mas quase dois terços deles já estão montados em meia hora. Segundo um relatório da consultoria Adobe Analytics sobre o mercado americano, um quarto das transações de comércio eletrônico do período de festas do ano passado no país foi BOPIS.

Centro de distribuição de uma rede de supermercados nos Estados Unidos: muitas lojas físicas fecharam as portas (Luke Sharrett/Bloomberg/Getty Images)

Outro dado que deixou muitos varejistas de olhos arregalados: pela primeira vez, a maioria dos clientes fez compras pelo smartphone. Que o celular está tomando o lugar do computador pessoal ninguém tem dúvidas, e isso também vale para o e-commerce — ter um bom aplicativo é questão de sobrevivência. Mas as possibilidades da tecnologia vão muito além de reproduzir um website em tamanho menor. Armados de câmeras, sensores e processadores equivalentes aos de PCs de alguns anos atrás, os celulares prometem uma experiência de compra completamente nova.

A Wanna, uma startup de Belarus, criou um aplicativo para provar calçados virtualmente. Batizado de “Wanna Kicks”, o app usa realidade aumentada para colocar pares de tênis virtuais nos pés dos usuários. Basta escolher um modelo e apontar a câmera do smartphone para os pés — o usuário pode mover os pés para ver o produto de ângulos diferentes e até mesmo caminhar. O software da Wanna já foi integrado aos aplicativos de empresas como Gucci e Reebok.

Centro de distribuição de uma rede de supermercados nos Estados Unidos: muitas lojas físicas fecharam as portas (Kathy Willens/AP/Glow images)

O fundador da companhia, Sergey Arkhangelskiy, diz que o objetivo é resolver um problema especialmente crítico dos varejistas de calçados: muitas devoluções. O app também permite experimentar modelos que podem não estar disponíveis no varejo tradicional. No caso da Ikea, o gigante sueco de móveis, a realidade aumentada responde a uma dúvida ainda mais importante: como ficaria aquele sofá em minha sala? O aplicativo Ikea Place permite colocar uma infinidade de móveis e itens de decoração virtuais num espaço físico. As diferentes possibilidades ficam guardadas no app — e podem ser colocadas no carrinho de compras, é claro.

Influenciador vendedor

A ideia de comprar pela internet pode ter nascido no Vale do Silício, mas cada vez mais os varejistas estão olhando para a China. Desde 2014 mais chineses acessam a internet via smartphone e não por PCs. Além disso, a maior rede social do país, o WeChat, oferece um cardápio completo de serviços, que vão de lives a pagamentos. A combinação de tudo isso deu origem a um fenômeno: os influenciadores vendedores. 

No WeChat e em plataformas de e-commerce como Taobao (semelhante ao Mercado Livre ou ao eBay), esse novo tipo de celebridade faz comerciais ao vivo, demonstrando produtos, tirando dúvidas do público e misturando entretenimento e comércio. Para comprar, basta um clique. Li Jiaqi, conhecido como “o rei do batom”, é o maior vendedor de produtos de beleza do país. Li tem mais de 40 milhões de seguidores no Douyin, a versão chinesa do TikTok. No “dia dos solteiros” de 2019, o equivalente local da Black Friday, ele reuniu mais de 36 milhões de chineses em uma live e vendeu 145 milhões de dólares no Taobao.

As marcas estão prestando atenção. A Louis Vuitton escalou a atriz de cinema Zhong Chuxi para apresentar sua coleção de verão no ano passado. A Gap contratou uma celebridade local, conhecida como Viya, para ser o rosto da marca nas transmissões ao vivo. Em abril do ano passado, Luo Yonghao, fundador da fabricante de smartphones Smartisan, vendeu mais de 900.000 produtos (de eletrônicos a itens do dia a dia) durante uma live que durou 3 horas. O instituto de pesquisa de mercado iResearch, de Xangai, estimou que o total de transações dessa nova modalidade poderia chegar a 130 bilhões de dólares no ano passado.

Quem acredita que tudo voltará ao normal quando a pandemia estiver sob controle pode estar cometendo um erro fatal. Segundo uma pesquisa divulgada em dezembro pela consultoria McKinsey, as mudanças de comportamento dos últimos meses podem ser duradouras. Oito entre dez consumidores buscaram novas marcas, lojas ou mudaram a maneira de comprar. Outros 40% afirmaram que vão gastar mais em compras online mesmo depois da pandemia. O coronavírus pegou o mundo todo de surpresa, e algumas empresas se beneficiaram porque estavam mais preparadas digitalmente.

A crise deixou claro que a digitalização não é opcional. As lojas continuarão existindo, mas o futuro do varejo é digital.

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