Revista Exame

Cada empresa no seu oceano azul

W. Chan Kim e Renée Mauborgne, da teoria do oceano azul, defendem em novo livro que criar um mercado sem concorrência não precisa ser empreitada de risco

Veleiro na Croácia: para atingir o chamado “oceano azul”, a empresa tem de reconfigurar as fronteiras do setor em que ela atua (Mbbirdy/Getty Images)

Veleiro na Croácia: para atingir o chamado “oceano azul”, a empresa tem de reconfigurar as fronteiras do setor em que ela atua (Mbbirdy/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 1 de fevereiro de 2018 às 05h35.

Última atualização em 3 de agosto de 2018 às 09h04.

Poucos autores conseguem criar um conceito que entre no vernáculo dos negócios. Isso só acontece quando a formulação é concisa, elegante e traz uma abordagem nova para algum assunto de alta relevância para as empresas. É o caso da ideia da “riqueza na base da pirâmide”, de C.K. Prahalad, ou dos conceitos dos dois maiores astros da Escola de Negócios de Harvard, -Michael Porter (e sua “vantagem competitiva”) e Clayton Christensen (com a “inovação disruptiva”). Quando um acadêmico acerta assim na mosca, entra quase automaticamente no panteão dos gurus de negócios, e em geral acaba montando uma consultoria para pôr suas ideias em prática. É o que aconteceu com o coreano W. Chan Kim e a americana (de nome francês) Renée Mauborgne, uma dupla de professores do Insead, conceituada escola de negócios da França.

Depois que eles lançaram o livro A Estratégia do Oceano Azul — Como Criar Novos Mercados e Tornar a Concorrência Irrelevante, em 2005, a expressão “oceano azul” ganhou o mundo como sinônimo de uma oportunidade de negócios sem concorrentes (ou a criação de um mercado novo). Com 3,6 milhões de livros vendidos em 44 línguas, era natural que eles se sentissem compelidos a criar o Instituto da Estratégia do Oceano Azul, com sede no Insead, e aos poucos fossem ensaiando uma atuação como consultores de empresas e de países. Na passagem da apresentação de um conceito para a demonstração de como aplicá-lo, cabia um novo livro, uma espécie de guia para aprender a navegar no oceano azul. E ele foi lançado no fim do ano passado: A Transição para o Oceano Azul — Muito Além da Competição

É pouco provável que o segundo livro faça o mesmo estrondoso sucesso do primeiro — ele se torna um pouco maçante para quem não se dispõe a aplicar o passo a passo proposto pelos autores. É valioso, porém, para entender o método e questionar alguns pressupostos que as empresas assumem normalmente sem se dar conta. Não é que os conceitos de Kim e Mauborgne sejam novos. Quase tudo em sua proposta de ação já foi esmiuçado por antecessores: as visitas a consumidores para entender como eles usam seu produto, a mistura de funcionários de diversas áreas num projeto, a construção de um mapa estratégico da indústria em que a empresa está imersa, um sistema de votação para eleger a ideia que será aplicada etc. Até o próprio conceito de oceano azul está no ar há milênios: faça algo que os outros não estão fazendo. Mesmo na literatura dos negócios, ele já havia sido embalado antes. Em 1999, Gary Hamel e C.K. Prahalad falaram de atuar no “espaço branco”. Mas o conselho deles, por falta de ênfase ou por estar envolto em tantos outros, passou em branco.

A crítica da falta de originalidade, porém, é tola. Conceitos de administração não costumam ser assim tão inovadores. A ideia da vantagem competitiva, de Porter, é quase uma obviedade: se alguém está na frente dos concorrentes, é porque tem uma vantagem competitiva. A inovação disruptiva, de Christensen, é uma elaboração em torno do conceito de “destruição criativa”, do economista austríaco Joseph Schumpeter. O que importa, especialmente nesses dois exemplos, não é os professores de Harvard terem dito algo extraordinariamente novo. É terem construído um arcabouço teórico não apenas para descrever movimentos do mundo dos negócios como também para prescrever ações.

É esse movimento que os criadores do oceano azul estão trilhando. Suas teses foram vistas por muitos como mera explicação para o sucesso alheio, pinçando exemplos que coubessem na teoria, em vez de aplicar as teses e colher os exemplos. Houve casos de companhias que inovaram ao seguir as diretrizes de Kim e Mauborgne, mas não em número suficiente para criar um fenômeno. No Brasil, lançamentos como os de uma tira para prender fraldas e de um papel higiênico compacto pela multinacional americana Kimberly-Clark renderam bons resultados. O caso mais impactante foi o lançamento em 2006 do videogame Wii, pela Nintendo, que encontrou seu oceano azul ao incluir um sensor de movimentos no controle e atrair um enorme mercado além dos jovens do sexo masculino.

No novo livro, os dois professores são mais assertivos. Decidiram navegar no que supõem ser um oceano ao largo das ideias de Porter e Christensen. O primeiro caso já estava implícito na abordagem do primeiro livro. A vantagem competitiva, de Porter, não é mais suficiente. Para fazer sucesso de verdade, é preciso não só ser melhor do que os concorrentes como dar, em suas palavras, um “salto quântico” sobre as ofertas existentes. Para ir além da competição. É algo parecido com o que recomenda o bilionário empreendedor Peter Thiel no livro De Zero a Um. Ele defende que o produto ou serviço sejam uma ordem de grandeza melhor do que as existentes a ponto de criar um monopólio — um modo mais ríspido de dizer oceano azul.

O problema com a abordagem de Porter — ou da visão tradicional da estratégia — é que, na busca pela vantagem competitiva, as empresas acabam prestando atenção demais no que os concorrentes têm e nos parâmetros já dados da indústria em que atuam. E esse é o “oceano vermelho”, um mar repleto de tubarões não apenas disputando os cardumes mas também comendo uns aos outros. “Os estrategistas do oceano azul focam em criar e capturar uma nova demanda, não em brigar pelos consumidores existentes”, afirmam eles no livro.

O caso contra Christensen (e Schumpeter) segue uma linha semelhante. Não é que suas teses não tenham serventia. É que, de acordo com os autores, elas não abarcam todas as possibilidades de uma empresa. Para Schumpeter, o motor do crescimento econômico é a criação de novos mercados. “Mas, em sua visão, essa criação depende da destruição”, dizem. “Enquanto a destruição criativa ocorre quando uma tecnologia, produto ou serviço superior surge e destrói o velho, a inovação disruptiva começa com a chegada de uma tecnologia inferior, que com o tempo cruza a linha de qualidade superior e, ao fazê-lo, toma o lugar dos líderes de mercado.” Essa explicação dá conta de várias situações — a fotografia digital que derrubou o filme, a luz elétrica que substituiu a iluminação a gás, o motor a combustão que tomou o lugar do motor a vapor etc. Mas não de todas. Pense no Viagra, dizem Kim e Mauborgne. Não havia concorrentes, ele abriu um mercado inteiramente novo. Pense no Grameen Bank, de Muhammad Yunus, que inaugurou uma indústria de microcrédito. Pense nos mercados de encontros online, no crowd-funding, no mercado de coaching. Nada disso tinha competidores.

Em resumo, a tese do oceano azul diz que criar é melhor do que brigar. Pouca gente discordaria. Como frisa Thiel em seu livro, é aí que estão as margens de lucro mais atraentes. A grande batalha do novo livro de Kim e Mauborgne é convencer as pessoas de que a criação não depende tanto de gênio ou de sorte. Ela pode ser resultado de esforço — desde que se sigam os passos que eles indicam. “Nossa pesquisa mostra que a criação de mercados pode ser alcançada por um processo confiável e sistemático, que pode ser reproduzido. Ela não tem de ser uma empreitada de alto risco e sujeita ao acaso, conduzida por tentativa e erro. A criação de mercado, portanto, precisa ser trazida ao centro da estratégia de uma organização.”

Não se trata de criar mercados bilionários, embora não haja nada contra isso. Trata-se de um reposicionamento que inclui inovar em busca de novos consumidores. Um caso interessante é a ActiFry, uma máquina de fazer batatas fritas que não usa óleo. Ao identificar e romper esse gargalo (a resistência das pessoas a um método caro e antiecológico), o grupo francês SEB promoveu um crescimento de 40% na indústria como um todo, atingindo consumidores que jamais haviam pensado em comprar uma fritadeira.

Outro exemplo é a rede de hotéis CitizenM, com sede na Holanda. No ultracompetitivo mercado de hospedagem, a equipe encontrou uma proposta original. De suas pesquisas de campo, concluí-ram que os hóspedes não dão muita bola para recepção, concierge, porteiro ou mesmo o tamanho dos quartos. O que economizaram aí eles investiram em conforto. Criaram quiosques para fazer o check-out sem filas, montaram espaços comunitários no lugar do lobby e treinaram “embaixadores” para ajudar os clientes com o que fosse necessário. Segundo os autores, o CitizenM tem preços mais em conta, mas é avaliado como soberbo ou fabuloso, tal qual os hotéis cinco estrelas. Sua taxa de ocupação é de 90%, seus custos por quarto são 40% menores do que os de um hotel quatro estrelas e a folha de pagamentos é a metade da média da indústria.

O método não se restringe a empresas. O governo da Malásia, incomodado com o baixo crescimento da economia, abraçou a metodologia em 2008. É provável que a estratégia do oceano azul não seja a única responsável pelo aumento do PIB em quase 50% e pela criação de mais de 2 milhões de empregos entre 2009 e 2017. Mas não há dúvida de que os mais de 100 projetos de âmbito nacional, nesses oito anos, ajudaram. Um dos projetos tem a ver com segurança. Ante um problema comum em vários países — a reincidência dos presos no crime e do alto custo de manter os presídios —, em 2010 os malaios formaram uma equipe para estudar o problema sob a ótica da estratégia do oceano azul. Entre as soluções encontradas está o uso de bases militares em re-giões afastadas para abrigar os conde-nados de menor periculosidade. Nesses centros, a ênfase é a reabilitação. Ao final da pena, o Ministério de Recursos Humanos oferece aos ex-presidiários serviços de recolocação profissional, e outro ministério lhes concede empréstimos para montar um negócio, caso queiram. Desde 2011, quando a estratégia foi iniciada, a reincidência dos condenados por crimes leves caiu 90% no país. E o custo de manutenção dos centros nas bases militares é 58% menor do que o de prisões comuns.

Hotel da rede CitizenM: a empresa eliminou a recepção e investiu no conforto das áreas de convívio| Divulgação

O PASSO A PASSO PARA O OCEANO AZUL

O cerne da estratégia do oceano azul é que as empresas não devem escolher entre os dois polos usuais da estratégia: diferenciação ou baixo custo. Elas devem buscar ambas as coisas. Para fazer isso, a proposta é seguir uma receita minuciosa de seis etapas, cheia de fórmulas em cada uma delas. Primeiro, cria-se um mapa das divisões ou produtos da empresa em categorias: os pioneiros (produtos inovadores, que não têm clientes, têm fãs), os colonos (produtos que imitam outros, oferecendo mudanças incrementais na qualidade ou no preço) e os migrantes (que ficam no meio-termo). Uma empresa não deve buscar ter apenas produtos pioneiros. O port-fólio ideal depende da indústria. Empresas com alto custo fixo podem ter mais colonos. De qualquer forma, é bom ter um mix, com pelo menos um produto pioneiro e alguns migrantes.

O segundo passo é desenhar um mapa com as principais características da indústria e fazer uma avaliação de como a empresa está em relação aos concorrentes. Em seguida, a equipe responsável pela estratégia oceano azul deve imaginar onde quer estar no mapa de utilidades para os clientes. Essa parte envolve pesquisa de campo para entender como os clientes encaram o produto com base em alguns critérios (produtividade, simplicidade, conveniência etc.). Aqui, busca-se entender os principais gargalos (“as dores”, segundo eles) no uso da oferta da empresa. O objetivo desse estágio é descobrir o universo de não consumidores. “Nos últimos 25 anos, o mantra dos negócios tem sido ‘clientes em primeiro lugar’. O mantra do estrategista de oceano azul é ‘não clientes em primeiro lugar’ ”, afirmam.

Há três tipos de não clientes, segundo os autores. No primeiro grupo, estão os clientes que estão prestes a largar a empresa, assim que tiverem uma oferta melhor. No segundo, estão os que tiveram contato com a oferta mas se decidiram por outra — seja porque ela atende melhor às suas exigências, seja porque é mais barata. Um exemplo: se uma pessoa quis mudar as paredes de casa, considerou colocar um papel de parede mas acabou decidindo pela pintura, ela é um não cliente da indústria de papel de parede. No terceiro grupo estão os consumidores que ninguém na indústria pensou que pudessem ser consumidores. Para uma faculdade privada americana, que compete com faculdades de primeira linha e com universidades públicas, esse terceiro círculo inclui profissionais que precisam de reciclagem — militares, operários, atendentes de lojas etc.

O quarto passo é o pulo do gato: reconfigurar as fronteiras do setor em que a empresa atua para oferecer o que nenhum concorrente oferece. Para dar esse salto, Kim e Mauborgne traçam seis caminhos — como olhar outras indústrias, olhar grupos estratégicos dentro de sua indústria e redefinir o grupo de consumidores — e depois quatro ações: quais fatores considerados típicos da indústria deveriam ser eliminados, quais deveriam ser reduzidos, quais deveriam ser aumentados e quais deveriam ser criados. Foi com esse exercício que a rede de hotéis CitizenM decidiu eliminar a recepção, diminuir o tamanho dos quartos, aumentar o conforto e criar quiosques para check-out. O quinto passo é promover uma feira em que diferentes equipes da empresa apresentam e “vendem” suas ideias de inovação. E, por final, lançar a nova oferta.

Claro, não há contrafactual no livro. Jamais ficamos sabendo se existem casos de empresas que aplicaram o método com denodo e continuaram num oceano vermelho ou se afogaram. Outro ponto é que grande parte dos exemplos de sucesso mencionados no livro é de organizações que não usaram a estratégia: como a sempre citada Apple e o grupo Cirque du Soleil. Mas as recomendações dos autores fazem muito sentido. São uma costura bem-feita de conselhos já existentes e que têm resultados. “Embora fazer uma transição para o oceano azul possa parecer mágica, não é”, dizem. Eles imaginam um mundo infestado de iniciativas inovadoras, com um mercado nascendo a cada esquina. Pode ser. Ou pode ser que muitos sejam atraídos por algum canto de sereia.

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