Centro de distribuição do Mercado Livre: alto grau de satisfação do cliente durante a pandemia (Jonne Roriz/Bloomberg/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 12 de fevereiro de 2021 às 08h00.
Muito se fala em transformação digital, principalmente após um ano como 2020, em que grandes avanços substituíram um processo que era gradual. É importante que o modismo da expressão não esconda seu real significado. Ainda hoje, há certa confusão entre a transformação digital e as tecnologias digitais propriamente ditas. A tecnologia tem papel central, mas é apenas uma parte dessa equação, a viabilizadora.
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A transformação digital acontece quando as companhias conseguem aplicar as diferentes soluções para se conectar verdadeiramente com seus clientes, quando as empresas conseguem usar as diferentes tecnologias para otimizar tarefas e processos e dar o devido peso às relações humanas entre funcionários e clientes.
Um elemento comum para as transformações de sucesso que temos visto em todo o mundo é o que nós, na Bain & Company, chamamos de “mentalidade do fundador”, um conceito simples como o nome e manifestado por meio de três características:
1) missão clara e ambiciosa;
2) “obsessão” pelo cliente, sempre testando novidades e aprendendo com os experimentos; e
3) “cabeça de dono”, que não tolera burocracia e foca aquilo que vai dar resultado real.
Muitas vezes, à medida que o rápido crescimento dá origem a camadas de complexidade organizacional e a uma diluição da missão que antes deu à empresa seu foco e energia, o pedal do acelerador do crescimento não responde mais como antes, e os concorrentes, com frequência mais jovens, começam a ganhar terreno.
E onde entra a transformação digital nesse cenário? Ela permite que a “mentalidade do fundador” continue viva nas organizações e oferece ferramentas para que mesmo as maiores e mais complexas companhias estejam unidas no mesmo propósito. Retomando assim, de forma coordenada, a obsessão pelo cliente com times que se colocam no lugar dos donos.
As ferramentas são as tecnologias, e parte do desafio de construir uma empresa verdadeiramente digital reside no fato de que existe um amplo leque de soluções em diferentes graus de maturidade e em acelerada evolução.
Da nuvem à internet das coisas, da advanced analytics à quantum computing, da automação à realidade aumentada. São muitos os exemplos e variadas as possibilidades de aplicações e impactos em diferentes setores da economia. Contudo, o mais importante é que essas tecnologias, combinadas, dão às empresas a chance de conhecer e entender muito mais seus clientes e criam uma oferta cada vez mais efetiva e eficaz.
E como isso acontece? A ampla e crescente disponibilidade de dados — rastros que deixamos à medida que nossas trajetórias físicas e digitais se fundem —, combinada com uma enorme capacidade de processamento e tratamento de dados com análises avançadas, permite que uma companhia conheça cada um de seus 5, 10 ou 50 milhões de clientes de forma individualizada.
Mais do que isso, agora é possível testar de forma estatisticamente válida uma série de variáveis do negócio (preço, canal, proposta de valor), para aprimorar não só a oferta mas também as diferentes etapas das jornadas, presenciais ou digitais, pelos diversos canais de acesso e comunicação (apps, sites, redes sociais, WhatsApp).
Como exemplo, com o design experimental, temos um aumento do número dessas variáveis que podem ser testadas de maneira simultânea no marketing digital: ofertas de produtos, design do site, merchandising, mensagens, incentivos, displays antes ou depois das páginas de conteúdo, calls to action e muitas outras.
É possível determinar o efeito de cada variável e testar as combinações relevantes para, então, desenvolver fórmulas matemáticas que sugiram as combinações que trarão maior resultado.
Temos, na América do Sul, um claro exemplo de uma empresa que tem utilizado as diferentes tecnologias para manter viva a sua “mentalidade do fundador”, mesmo com o crescimento acelerado de seu negócio: o Mercado Livre. No terceiro semestre de 2020, o Mercado Livre viu sua receita crescer 112%, na comparação com o mesmo período de 2019, e seu valor de mercado mais que triplicou em 2020. Tudo isso, segundo nossos dados, ocorreu com a sustentação e até melhoria da relação com o cliente, conquistando um Net Promoter Score (NPS) superior a 70% durante a pandemia.
É um resultado impressionante por si só, já que a métrica é a melhor correlação com o crescimento sustentável, mas também acima de grande parte dos varejistas no mercado brasileiro. O Mercado Livre estava pronto, com uma combinação de tecnologias escalonáveis, para se beneficiar da mudança de comportamento acelerada pelo isolamento social.
Outro elemento-chave para ganhar eficiência e efetividade e garantir a melhor oferta para o cliente é a automação, muito vista no setor industrial. Em uma pesquisa recente feita pela Bain com empresas em todo o mundo, cerca de 70% planejam acelerar ainda mais os processos de automação quando retornarem ao trabalho presencial pós-covid-19. A utilização da automação vai muito além das linhas de produção.
No setor financeiro, a digitalização e a automação de processos são crescentes desde a abertura de contas, em muitos casos não mais presencial, na customização segmentada e automática da oferta e até na definição de limites de crédito e taxas a ser cobradas — estas muito impulsionadas também pelo volume de informações sobre cada cliente e analíticos avançados.
Um dos principais ganhos da automação de processos de back office, por exemplo, é a diminuição de erros (uma cobrança errada em sua conta, por exemplo, pode quebrar a confiança do cliente em um relacionamento de anos com o banco).
Embora algumas empresas de varejo ou bancos sejam bons exemplos do caminho a seguir, o Brasil não está à frente nessa transformação. Hoje ocupamos a 63a posição no ranking mundial do índice de Prontidão em Inteligência Artificial, de acordo com uma pesquisa publicada em 2020 pela Universidade de Oxford. Estamos atrás até mesmo de alguns de nossos vizinhos, como Uruguai, Colômbia, Chile e Argentina.
É nessa hora que os CEOs ou CIOs também têm de entender que não é preciso reinventar a roda, e que nem tudo precisa ser criado internamente. Contar com um ecossistema de parceiros de tecnologia, como provedores de software tradicionais ou startups com soluções específicas, é uma das estratégias que vêm sendo adotadas por diversas empresas para enfrentar esse desafio.
No Brasil, por exemplo, existem centenas de empresas dos mais variados tamanhos e níveis de maturidade atuando em advanced analytics, que oferecem desde plataformas para usos específicos até soluções generalistas feitas sob medida para as necessidades do cliente.
Acreditamos que as empresas devem buscar uma solução mista, o que inclui o desenvolvimento de times internos, bem como a construção de um ecossistema de parceiros estratégicos, fundamentais diante de tamanha competição por mão de obra especializada.
É preciso ter um time que entenda em profundidade as necessidades dos clientes, os tradutores que consigam converter esse conhecimento para demandas de tecnologia e um time de especialistas — internos ou parceiros — para trazer o que de mais avançado e aderente existir no mercado.
Outro bom exemplo é o Magazine Luiza, um dos maiores cases de transformação digital no Brasil que não fez tudo sozinho. A empresa construiu um ecossistema de parcerias e usou estratégias de fusões e aquisições para desenvolver novos negócios, com o que foi muito além da comercialização da linha branca, então seu principal negócio.
Entre os exemplos de aquisições recentes estão a GFL, uma plataforma digital de logística, a startup Hubsales, que ajuda fabricantes a comercializar seus produtos diretamente ao consumidor final, e a plataforma InLoco Media, especializada na comercialização de publicidade digital. São movimentos estratégicos, com o claro objetivo de ampliar as operações de entrega na “última milha”, aumentar a oferta de produtos e disponibilizar anúncios cada vez mais direcionados.
Outro grande diferencial do Magazine Luiza é a adoção do método ágil de trabalho, um dos principais viabilizadores da transformação digital, pois substituem controles e burocracias por processos de trocas, naturalizam o processo conhecido como test and learn trazendo resultados mais rápidos e com maior aderência. Além disso, trazem autonomia para os times de execução, que passam a se sentir e se comportar como os reais donos das companhias.
Como vimos, embora existam setores como o de varejo e serviços financeiros muito bem posicionados, o caminho para que as organizações brasileiras utilizem as ferramentas digitais para resgatar as razões pelas quais foram fundadas ainda é longo. É urgente que as empresas identifiquem quais são as demandas reais de seus clientes e os pontos críticos que mais afetam o negócio, com maior potencial de geração de valor.
Dessa forma, a “obsessão” pelo cliente pode chegar a um novo patamar, como no tempo em que o dono da vendinha do interior conhecia cada um de seus fregueses e servia café para quem era de café, suco para quem era de suco e bolo diet para quem não podia consumir açúcar.
Ao mesmo tempo que cuidam dos problemas imediatos, deveriam se preparar para o amanhã, uma vez que as necessidades dos clientes estão em constante evolução. Quando vemos um processo de transformação digital bem conduzido e que pode colocar a empresa em um novo patamar, é certo afirmar que a organização tem sua missão clara e ambiciosa, dividida com um time integrado e centrado no cliente.
A lição que podemos tirar de todo esse cenário é que a transformação digital é crucial para trazer crescimento sustentável dos negócios, com soluções que viabilizem o profundo conhecimento e a “obsessão” pelo cliente, que minimizem burocracias e unam funcionários em torno de uma missão clara e ambiciosa.
Esse objetivo só é possível com a incorporação ágil das diversas tecnologias, desde a concepção de ideias, os testes e a expansão até a constante transformação do negócio com base nos feedbacks dos clientes.