Discurso na Organização das Nações Unidas: evento do Pacto Global no Brasil levou para Nova York debates sobre a importância dos povos originários para o desenvolvimento e a imagem do Brasil (Leandro Fonseca/Exame)
Rodrigo Caetano
Publicado em 13 de outubro de 2022 às 06h00.
Última atualização em 13 de outubro de 2022 às 09h36.
Imagine um indígena numa canoa. A floresta à sua volta. Ele carrega um celular de última geração. Com a câmera, registra os pássaros, as árvores, os bichos. As fotos são descarregadas automaticamente em um sistema conectado a uma rede de universidades de ponta, instalada em um grande polo de desenvolvimento científico nas proximidades do rio.
O indígena adentra mais fundo na mata. Ele conhece cada fruto, folha e semente que desprende das árvores e interfere no espelho d’água que domina a paisagem. Consulta o seu GPS e verifica que está no local certo. Recolhe algumas amostras e as acomoda em recipientes hermeticamente fechados. No chão da canoa, há uma maleta de alumínio, rígida, que acomoda um drone.
Ele monta o equipamento, carrega as cápsulas de amostras no pequeno compartimento de carga e, pelo celular, programa o veículo não tripulado para retornar ao polo científico. O indígena segue seu caminho, usando seu conhecimento ancestral para registrar os mistérios não revelados da Amazônia.
Isso pode ser caracterizado como uma utopia. “Mas por que não podemos imaginar esse futuro, em vez de pensar na destruição da floresta, numa ideia apocalíptica de guerra e desespero?”, questiona Alok, DJ e produtor musical, que descreveu o cenário à EXAME. “Não acho uma utopia, acredito que é possível.”
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Para o apresentador de TV Luciano Huck, se quiser avançar, o país precisa desse tipo de utopia. “Há um livro de que gosto muito, chamado Utopia para Realistas, do [historiador holandês] Rutger Bregman”, disse Huck. “A gente precisa das utopias para mudar o mundo. E eu ouvi uma frase da Samela [Sateré Mawé, ativista climática], em que ela disse que precisamos não só reflorestar a Amazônia mas reflorestar nossas ideias.”
Alok e Huck participaram, em setembro, de um evento organizado pelo Pacto Global da ONU no Brasil, organização que promove os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) junto com o setor privado, no prédio das Nações Unidas, em Nova York.
O encontro reuniu lideranças da sociedade civil e do setor privado para debater os caminhos disponíveis para o Brasil avançar na agenda da transição para a economia de baixo carbono. O que saiu das discussões foram propostas para conectar o papel e a imagem do Brasil no mundo ao conhecimento ancestral dos povos originários e de raízes africanas, que constroem, desde sempre, a cultura e a economia brasileiras.
A ideia é inverter a lógica de desenvolvimento: a periferia, e não o centro, escolherá o caminho e ditará as políticas necessárias para trilhá-lo. O foco nos próximos anos, nas próximas décadas, deveria, portanto, estar não só nas florestas como nas favelas brasileiras.
O potencial econômico está dado. Dados da consultoria Accenture mostram que, se fossem um estado, as favelas brasileiras seriam o quarto maior em população e o sétimo maior em renda. Uma pesquisa da WayCarbon, consultoria especializada em carbono e mudanças climáticas, por sua vez, mostra que o Brasil tem potencial para suprir quase metade da demanda por créditos de carbono no mercado voluntário, até o final da década. Isso representa um potencial de receita de 120 bilhões de dólares (660 bilhões de reais). Para isso, basta proteger as florestas, tarefa que os indígenas executam como ninguém.
O Brasil pode atender quase metade da demanda por créditos de carbono global no mercado voluntário até 2030
120 BILHÕES DE DÓLORES é o potencial brasileiro de venda de créditos de carbono
22,3% A 48,7% DA DEMANDA GLOBAL por carbono pode ser atendida pelo Brasil
1,5 E 2 GIGATONELADAS DE CO2E serão comercializadas até 2030, o equivalente às emissões por quilômetro de 500 milhões de carros
Fonte: WayCarbon.
Eric Terena, ativista, músico e fundador da Mídia Índia, agência de notícias focada nos povos indígenas, aponta para um processo de “hackeamento” do capitalismo a partir de conhecimentos ancestrais.
“Quando nos apropriamos da tecnologia, que antes não era acessível aos indígenas, é isso que estamos fazendo”, diz ele. “Há duas pautas, uma mais voltada para a visibilidade indígena, focada nos problemas que nos afetam; e outra cultural, de construção de uma nova narrativa. Somos raízes nessa natureza toda. Cada vez que essa raiz cresce e se ramifica, vai sensibilizando os corações por meio da música, da comunicação e da luta pelas políticas públicas dos povos indígenas.”
Em toda sua diversidade, os povos originários têm em comum uma maneira de pensar o desenvolvimento a partir de uma ideia de circularidade, na qual o indivíduo evolui ao compreender os ciclos naturais e expandir seu espaço. É diferente do conceito de desenvolvimento linear da cultura ocidental, em que os avanços se sobrepõem e a evolução se dá por meio da destruição criativa. O capitalismo de stakeholder, novo modelo de gestão que é a base do ESG, se parece muito mais com a ideia de circularidade do que com o pensamento linear.
“As coisas estão umbilicalmente ligadas e o mundo funciona por meio de ecossistemas”, afirma Edu Lyra, CEO e cofundador da Gerando Falcões, organização que promove o empreendedorismo nas favelas. “Temos de salvar o mundo do risco climático e vencer a pobreza rapidamente. Falamos muito sobre o futuro, mas ele nunca chega, e isso acaba gerando um desespero. Só que o futuro está acontecendo agora e precisa que as empresas, as organizações, os filantropos tomem decisões hoje, ou pode ser tarde demais.”
Há um alinhamento entre a fala de Lyra, nascido na favela, e a visão do bilionário americano Michael Bloomberg, que, na mesma semana, promoveu dois eventos em Nova York focados em inovação socioambiental, por meio da Bloomberg Philanthropies.
“Falamos de 2050, mas estou preocupado com 2023”, disse Bloomberg. Ele está convencido de que o futuro da humanidade depende de uma transformação econômica profunda, de larga escala e em tempo recorde. Para sair dessa situação, o setor privado deve investir enormes quantias na transição energética e em medidas de adaptação climática, o que passa pelo combate à pobreza. O pacto necessário para o enfrentamento dos desafios deve ser amplo e incluir aqueles que serão os mais afetados pelas mudanças climáticas e pelas externalidades decorrentes da transição econômica.
“Não acredito em pacto algum enquanto aqueles que sofrem as consequências das diferenças globais não tiverem representatividade”, disse Celso Athayde, CEO da Favela Holding e fundador da Central Única de Favelas (Cufa). Athayde lançou, recentemente, o conceito de Quarto Setor, que engloba a economia das favelas. “O governo nunca olhou para as favelas. As empresas só pensam nelas em potencial de consumo. E o terceiro setor não permite o lucro”, afirmou. “O favelado acaba achando que é errado ter lucro, e a prerrogativa de ter dinheiro fica sempre com o mesmo estrato social.”
Os números que fazem das favelas brasileiras um campo de enorme potencial de negócios
R$ 119,8 BILHÕES são movimentados anualmente nas favelas
14 MILHÕES de pessoas vivem nas favelas
5º MAIOR ESTADO EM POPULAÇÃO (se as favelas fossem um estado)
7º MAIOR ESTADO EM RENDA (se as favelas fossem um estado)
Fonte: Accenture.
Assim como a cultura ancestral dos povos originários oferece um olhar renovado para as relações econômicas, Athayde acredita que a favela tem muitas contribuições para o desenvolvimento. “Nas favelas, nós sempre criamos redes de acolhimento e de apoio, que podem servir de resposta para as crises migratórias. Na pandemia, surgiu uma expressão nova: isolamento social. Mas é nova só para o asfalto; as favelas nasceram socialmente isoladas.” O empresário ressaltou que, se as favelas parassem na pandemia, o país pararia. “Enquanto o asfalto fazia home office, a favela abastecia os supermercados e entregava a comida quentinha na casa das pessoas. Nos momentos de maior pico de contaminação, a favela lotava trens, metrôs e barcas. As empresas, o Estado, precisam olhar para essas pessoas de maneira diferente, não com uma visão de carência, mas de potência. Ou a gente divide com as favelas a riqueza que elas produzem, ou vamos continuar dividindo as consequências da miséria que a elite produziu até aqui.”