Inês Mindlin Lafer, Diretora do Instituto Betty e Jacob Lafer — Criado em 2011 pela família que detém uma participação na fabricante de celulose Klabin, o instituto financia ONGs que se dedicam a promover os direitos humanos (Germano Luders/Exame)
Da Redação
Publicado em 19 de agosto de 2015 às 21h21.
São Paulo — A paulistana Ana Lucia Villela tem experiência em comprar briga. Em sua mira, invariavelmente, estão empresas cuja publicidade incentiva o consumismo exagerado, a erotização precoce e a obesidade entre crianças. À frente do Instituto Alana, ela já pôs na berlinda 182 companhias por anúncios desse tipo desde 2006.
Foram reclamações dirigidas ao Ministério Público, aos Procons e ao departamento de defesa do consumidor do Ministério da Justiça. A investida mais recente aconteceu em maio, com uma denúncia ao Ministério Público do estado de São Paulo. O alvo foi a rede de lanchonetes McDonald’s e a campanha que vincula a obtenção de brinquedos inspirados em personagens populares à compra de um McLanche Feliz.
“Queremos evitar que as crianças sejam vítimas de incentivos como esse”, diz Ana Lucia, que comanda o instituto junto com o marido, o advogado Marcos Nisti. Aos 41 anos, Ana Lucia é a mais jovem bilionária brasileira. Ela e o irmão Alfredo Egydio Arruda Villela Filho, presidente do conselho de administração do grupo Itaúsa, estão entre os maiores acionistas individuais do Itaú Unibanco, maior banco privado do país.
Cada um deles detém um patrimônio de cerca de 1,5 bilhão de dólares. Os dois começaram a se dedicar à filantropia há 20 anos, ao bancar iniciativas como cursos de formação para a comunidade do Jardim Pantanal, bairro pobre da zona leste de São Paulo, num terreno da família que havia sido ocupado. Na última década, no entanto, decidiram fazer mais.
Estabeleceram um foco — priorizar a defesa dos direitos da criança e estimular seu desenvolvimento. O escopo não se limita ao monitoramento da conduta das empresas. Recentemente o instituto pleiteou a inclusão obrigatória do Estatuto da Criança e do Adolescente no currículo dos cursos de direito do país.
Para garantir a longevidade do Alana, em junho do ano passado Ana Lucia e o irmão decidiram parar de fazer aportes esporádicos e dedicaram 300 milhões de reais à formação de um fundo patrimonial. Desde então, o instituto vive do rendimento desses recursos, equivalente a algo como 15 milhões de reais por ano.
Ana Lucia faz parte de uma geração de bilionários brasileiros que dedicam não apenas dinheiro mas também tempo e influência à filantropia. São empresários ou herdeiros que assumiram uma nova vida como empreendedores dedicados a causas sociais. Em vez de buscar alívio para necessidades de curto prazo, almejam mudanças de longa duração.
À frente de fundações e institutos mantidos com a própria fortuna, aplicam princípios de negócios — como foco e metas — para obter escala. Não há dados precisos sobre o número de empresários que investem sistematicamente dinheiro do próprio bolso em causas sociais no Brasil hoje. Mas os indícios são de que haja algo de novo no ar.
A pedido de EXAME, duas organizações voltadas para o terceiro setor — o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) — mapearam o panorama do investimento filantrópico familiar no Brasil. Há 33 fundações e institutos do gênero associados a essas instituições, que concordaram em revelar seus investimentos.
Metade nasceu ao longo da última década. Hoje, elas investem aproximadamente 500 milhões de reais por ano — o dobro do que aplicavam em 2005. É um volume proporcionalmente tímido, equivalente a apenas 0,4% da fortuna das 15 famílias mais ricas do Brasil, donas de um patrimônio estimado em 122 bilhões de dólares.
Ainda assim, trata-se de um avanço expressivo. “Cada vez mais essas famílias expressam o desejo de assumir um papel na sociedade que vai além do sucesso econômico”, diz Paula Fabiani, presidente do Idis. “Elas querem protagonizar transformações.”
Parte do movimento se deve ao crescimento econômico do Brasil na última década. Atualmente, 54 brasileiros figuram na lista de bilionários da revista americana Forbes — em 2005, eram apenas oito. Existem ainda 172 000 brasileiros com patrimônio acima de 30 milhões de dólares, um salto de 17% em relação a 2009.
Nos últimos anos, alguns indicadores sociais do país evoluíram, como a queda da taxa de mortalidade infantil e o aumento do índice de crianças matriculadas no ensino fundamental. Mas os problemas em diversas áreas, do saneamento básico à educação, ainda são enormes. “Há uma frustração muito grande diante da lentidão do progresso no Brasil”, diz o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, conselheiro de diversos institutos e fundações.
“É saudável que haja ceticismo quanto à capacidade de o governo resolver tudo e à visão de que existe a necessidade de um esforço complementar da sociedade.”
Hoje, a esmagadora maioria dos institutos e fundações filantrópicos no Brasil ainda está vinculada a empresas, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos. Uma das razões para isso é a ausência de incentivos para o investimento via pessoa física no Brasil. No caso das empresas, a lei permite a dedução das doações até o limite de 2% do lucro.
Um dos raros casos híbridos é o do braço filantrópico da siderúrgica Gerdau, que desde 2005 concentra também os investimentos diretos da família Gerdau Johannpeter. “Decidimos concentrar esforços para aumentar os resultados”, diz Beatriz Gerdau, vice-presidente do conselho do instituto e filha do empresário Jorge Gerdau.
Em seus dez anos de existência, o instituto já investiu cerca de 600 milhões de reais. Boa parte dos recursos é destinada a financiar ONGs e iniciativas como o Prêmio Jovem Cientista, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que destaca projetos desenvolvidos por alunos do ensino médio e de universidades.
Além disso, os Gerdau apoiam o voluntariado dos funcionários em projetos no entorno de suas operações. Hoje, cerca de 11 000 deles — 27% do quadro de pessoal da empresa — dedicam-se a atividades como levar princípios da gestão eficiente utilizados pela empresa para escolas públicas.
Na última década, a série de aberturas de capital e a venda do controle de grandes empresas aumentaram a liquidez das fortunas familiares no Brasil e começaram a mudar essa tendência. O empresário Guilherme Leal, um dos fundadores da fabricante de cosméticos Natura, concentrou seus investimentos em filantropia no Instituto Arapyaú em 2008, quatro anos após a abertura do capital da companhia que ajudou a fundar.
Hoje, ele dedica mais tempo a suas atividades filantrópicas do que à Natura, onde mantém um assento no conselho. No Arapyaú, ele já investiu 61 milhões de reais para patrocinar ONGs e ajudar na troca de conhecimento entre projetos semelhantes empreendidos por diferentes organizações, com foco na sustentabilidade — social e ambiental.
“A nova geração de filantropos quer lidar com as causas dos problemas, não apenas com as consequências”, diz Leal, que aos 65 anos é dono de um patrimônio da ordem de 1,2 bilhão de dólares. As famílias Diniz e Klein retratam bem esse cenário. Para ambas, a estruturação de seus investimentos sociais coincide com a proximidade da saída do comando de suas empresas.
O empresário Abilio Diniz e seus filhos criaram o Instituto Península em 2010, dois anos antes do prazo combinado para entregar o controle do Pão de Acúcar, maior grupo varejista do país, aos franceses do Casino. Em 2013, o empresário já havia somado 5 bilhões de reais em venda de ações da companhia. “Com o instituto, focamos os investimentos que a família fazia individualmente há muitos anos”, diz Ana Maria Diniz, primogênita de Abilio e diretora do instituto, voltado para a melhoria da formação de professores.
A intenção do Península é construir e disseminar um sistema de ensino para professores — tal como existem vários direcionados a alunos — e profissionalizar a formação desses educadores. Raphael e Nathalie Klein, netos de Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, morto em novembro passado, hoje pilotam o instituto que leva o nome do avô.
Em 2009, quando a família vendeu o controle da rede varejista, o empresário transferiu aos dois a responsabilidade pelas doações que fazia. Em fevereiro de 2014, eles criaram o Instituto Samuel Klein. “Quando perguntávamos a meu avô se ele sabia se o dinheiro era bem aplicado, ele dizia que quem recebia teria de prestar contas a Deus”, afirma Raphael Klein.
“Hoje, queremos ter certeza de que geramos uma mudança significativa”, diz Nathalie. “Queremos deixar um legado mais do que financeiro para as próximas gerações.” Uma das frentes eleitas pelos Klein, que viram o avô popularizar o crediário parcelado no Brasil, é a educação financeira para crianças de baixa renda.
O instituto mantém um projeto piloto, em funcionamento em 200 escolas municipais de Joinville, em Santa Catarina, e em Manaus, no Amazonas, de capacitação de professores para apresentar o tema em sala de aula. São aproximadamente 1 800 educadores e 20 000 alunos beneficiados por meio de uma parceria entre o Instituto Samuel Klein e a Associação de Educação Financeira do Brasil, sem fins lucrativos. A ideia é ampliá-lo para outros municípios.
As motivações dessa nova geração de filantropos aparecem numa pesquisa inédita, concluída no início de junho pela Harvard Kennedy School, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em parceria com o banco suíço UBS, obtida com exclusividade por EXAME. O levantamento teve como base entrevistas com 67 líderes filantrópicos de seis países — Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru — com patrimônio superior a 30 milhões de dólares.
No recorte brasileiro, 75% dos entrevistados identificaram o desejo de deixar um legado como uma motivação importante. “Historicamente, as próprias empresas eram legados familiares”, diz Daniela Fainberg, consultora filantrópica para famílias. “Para muitas que se desfizeram do controle, uma fundação familiar é uma forma de criar uma herança duradoura.”
A mudança no cenário brasileiro acontece num momento em que a filantropia no mundo passa por uma transformação histórica. No livro Philanthrocapitalism (“Filantrocapitalismo”), os autores Matthew Bishop, jornalista da revista inglesa The Economist, e Michael Green, ex-funcionário do Departamento de Desenvolvimento Internacional da Inglaterra, defendem que nunca houve tantos bilionários dispostos a patrocinar grandes causas.
Diferentemente dos filantropos do passado, a nova geração visa nessa seara ao mesmo que os consagrou nos negócios: resultados. “O avanço do capitalismo acentuou a desigualdade social, mas também produziu bilionários cada dia mais voltados para a filantropia”, diz Bradford Smith, presidente do Foundation Center, a maior base de informações sobre doações do mundo.
Um dos pioneiros da nova geração, o empresário americano Bill Gates doou cerca de 30 bilhões de dólares — por volta de 40% de seu patrimônio — a causas filantrópicas. Ele pretende doar 95% de seu patrimônio em vida, o que seria o equivalente a três vezes mais do que a doação conjunta, em valores atualizados, realizada pelos magnatas Andrew Carnegie e John Rockefeller no início do século passado.
Além de dar nome à maior fundação dos Estados Unidos, Gates lidera a The Giving Pledge, ao lado do investidor americano Warren Buffett. Criada em 2010, a iniciativa pretende convencer endinheirados do mundo inteiro a doar parte de sua fortuna — 137 bilionários já se comprometeram com a causa.
O economista Jeffrey Sachs, assessor especial do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, lidera o coro em defesa do investimento social como ferramenta importante para o enfrentamento da pobreza. Para Sachs, a sociedade civil pode e deve ajudar o Estado a enfrentar os problemas sociais. Não existe, no entanto, consenso a esse respeito.
O francês Thomas Piketty, autor do best-seller O Capital no Século 21, integra o time dos céticos. O tema ocupa pouco espaço no livro em que traça o cenário do aumento da desigualdade no mundo. Numa entrevista recente, Piketty afirmou que há mais do que apenas boas intenções em figuras como Gates. A doação desses bilionários pode ser também uma manobra para manter o controle sobre suas fortunas em vez de entregá-las ao governo americano, que cobra altos impostos na transferência de heranças.
E não é garantia de que esses recursos vão atender às prioridades da sociedade. Gates rebateu a declaração do economista francês. “A doação de grandes fortunas tem seu papel no combate à pobreza e também pode acabar com a riqueza dinástica, que passa de pai para filho”, afirmou em seu blog.
É fato que os “filantrocapitalistas” têm características ímpares. Diferentemente dos políticos, não correm o risco da falta de continuidade. Também não sofrem a instabilidade de resultados de uma empresa. Tampouco estão submetidos à restrição de recursos, como acontece com boa parte das ONGs. Desse modo, ficam livres para pensar no longo prazo, desafiar o senso comum e apostar em ideias inovadoras.
A vantagem mais óbvia é a escala.
Se comparada à filantropia corporativa, a diferença é enorme. Um abismo de dólares costuma separar a doação de fortunas acumuladas ao longo de gerações de um percentual do lucro das empresas. Isso fica claro comparando os investimentos da Microsoft com as doações pessoais de seu fundador, Bill Gates. Nos últimos 30 anos, a Microsoft dedicou 8,5 bilhões de dólares à filantropia.
Apenas em 2014, Gates investiu 3 bilhões de dólares para avançar em direção a metas ousadas, como extinguir globalmente a malária. O exemplo declarado mais próximo disso existente no Brasil é o do empresário Elie Horn, fundador da incorporadora Cyrela. A empresa controla um instituto desde 2011. O orçamento corresponde a 1% do lucro — o equivalente a 4,2 milhões de reais em 2014.
Sírio naturalizado brasileiro, suas doações como pessoa física superam, e muito, essas cifras — embora ele não revele os valores. Horn afirma ter registrado em cartório a destinação de 60% de seu patrimônio — avaliado em cerca de 1 bilhão de dólares — e de sua renda anual à filantropia há 15 anos. São diversas organizações voltadas para a educação religiosa e moral ou de financiamento de bolsas de estudos para crianças de baixa renda.
Judeu fervoroso e admirador declarado de Gates e Buffett, ele não esconde sua motivação religiosa para as doações — e, como os americanos, tenta convencer os pares a fazer o mesmo. Em algumas ocasiões, já pediu uma contrapartida para clientes endinheirados atrás de desconto nos apartamentos da incorporadora: que o valor equivalente fosse doado à caridade.
Um deles, segundo Horn, foi o banqueiro Roberto Setubal, presidente do Itaú Unibanco. “Minha missão é doar e fazer com que os outros doem também”, diz Horn, de 71 anos. “A maioria acha que sou maluco por doar tanto.”
Se não se destacam pelo volume de investimento — até porque boa parte das famílias mantém esses números em sigilo —, os filantropos brasileiros chamam a atenção pela inovação. Segundo o estudo de Harvard, 66% dos filantropos brasileiros se dedicam à filantropia de risco. “Diferentemente das fundações e dos institutos empresariais, as entidades familiares podem ser mais ousadas”, afirma Fernando Rossetti, diretor da consultoria Gestão de Interesse Público.
É o que tem feito a Fundação Lemann, do empresário Jorge Paulo Lemann, acionista da maior cervejaria do mundo, a AB InBev. A fundação foi criada em 2002 para ampliar e melhorar o acesso à educação no Brasil. Entre diversas outras frentes, a fundação oferece apoio financeiro a startups brasileiras voltadas para novas tecnologias educacionais, com o braço de investimento batizado de Start-Ed.
Em 2014, foram seis empresas apoiadas, como a Árvore de Livros, que pretende vender assinaturas mensais fixas em troca do acesso ilimitado a livros pela internet. Assim como acontece num fundo de capital de risco, elas podem dar errado. É uma aposta necessária para acelerar o cumprimento de uma meta ambiciosa: fazer com que 30 milhões de alunos usem tecnologias de alta qualidade para estudar e 200 000 professores estejam capacitados para acompanhá-los nisso até 2018.
“Melhoras incrementais não adiantam nada”, diz Denis Mizne, diretor executivo da Fundação Lemann. A lógica empresarial não está presente só na agressividade das metas, mas também na disciplina com que são desdobradas e cobradas na instituição. Os 32 funcionários da Fundação Lemann têm metas individuais a ser batidas desde 2012. Cerca de 20% da remuneração é variável, a depender dos resultados de cada um.
A autossuficiência financeira também permite investir em causas polêmicas que jamais atrairiam recursos de empresas. É o caso do Instituto Betty e Jacob Lafer, mantido hoje pela família que detém uma participação da fabricante de celulose Klabin. Com orçamento anual médio de 1,5 milhão de reais, o instituto investe em projetos voltados para melhorias no sistema judiciário brasileiro.
Faz doações, por exemplo, à ONG Conectas, que recentemente promoveu uma campanha nacional pelo fim da revista vexatória em prisões, na qual mulheres, crianças e idosos tinham de ficar nus antes das visitas. “Até recentemente, só instituições estrangeiras patrocinavam esse tipo de causa”, diz Inês Mindlin Lafer. Internacionalmente, o investidor George Soros, criador da Open Society, é um dos maiores ícones do investimento social polêmico.
Com atuação global desde 2000 e investimentos de até 1 bilhão de dólares por ano, a Open Society financiou ONGs que defenderam a legalização da maconha no Uruguai e agora banca estudos sobre o impacto da medida no país. “Uma família pode fazer o que nem os governos nem as empresas podem: arriscar-se para melhorar o mundo”, diz Pedro Abramovay, diretor da organização para a América Latina desde 2013.
Além das causas polêmicas, o Instituto Betty e Jacob Lafer e a Open Society compartilham um modelo incomum no Brasil — o de filantropos que patrocinam organizações já existentes em vez de desenvolver os próprios projetos. Existe uma razão histórica para que a maioria prefira manter as próprias iniciativas: falta de confiança nas ONGs.
“Essas famílias ganharam muito dinheiro no setor privado e acham que têm uma capacidade maior de gerenciá-lo do que as ONGs”, diz Muriel Asseraf, coordenadora de desenvolvimento institucional da Conectas. Aos poucos, essa é uma tendência que começa a mudar. Uma das principais frentes de trabalho do Instituto Gerdau é aplicar princípios da metodologia de gestão usada em suas fábricas para aumentar a eficiência das ONGs e cooperativas que apoia.
“Não basta financiar, é preciso dar capacidade de gestão e chance de sucesso a nossos apoiados”, afirma Beatriz Gerdau. No Instituto Arapyaú, de Guilherme Leal, a ideia é que mesmo iniciativas criadas dentro de casa ganhem vida própria. É o caso da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), criada como uma organização para melhorar a qualidade dos políticos do país.
A rede reúne hoje cerca de 270 pessoas — entre políticos e candidatos a políticos de diversos partidos, que passam por um intenso programa de formação. Quase 6 milhões de reais já financiaram cursos, eventos e um centro de estudos de políticas públicas. Espera-se que 80 membros do grupo cheguem ao Congresso até 2024. “Nosso papel é viabilizar a existência das organizações e encorajá-las a fazer a diferença, não detê-las conosco”, diz Marcelo Furtado, diretor do Arapyaú, que financia a Raps.
Para aumentar o alcance de suas causas, alguns filantropos começam a tentar influenciar políticas públicas. Para isso, a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, mantida pelos herdeiros do banqueiro Gastão Vidigal, filho do fundador do antigo banco Mercantil, criou o programa Primeiríssima Infância. A ideia é reunir funcionários das secretarias municipais de Saúde, Educação e Assistência Social para discutir ações conjuntas de melhoria no atendimento a crianças de zero a 6 anos.
Em Votuporanga, no interior de São Paulo, foram criados espaços lúdicos em unidades de saúde e nos centros de assistência social. Uma lei municipal instituiu a realização anual, sempre em agosto, da semana do bebê — uma série de atividades que vão de cursos para adolescentes grávidas a programas sobre o tema da primeira infância na rádio local.
Até o fim deste ano, 37 municípios participarão da iniciativa. A família abraçou a causa da primeira infância em 2005, após uma reorganização conduzida por Regina Vidigal Guarita, que ocupou a presidência do conselho de curadores da fundação de 2005 a 2012. Desde então, seu sobrinho Guilherme Vidigal Gonçalves, de 38 anos, sucedeu-a no posto.
Além da sucessão, outra medida foi tomada para garantir a perenidade do instituto: em 2006, criou-se um endowment, fundo patrimonial nos mesmos moldes do que sustenta hoje o Alana, de Ana Lucia Villela. O valor total não é revelado, mas seus rendimentos permitem investir algo como 16 milhões de reais por ano.
Especialistas apontam que mudanças na legislação ajudariam a tornar o cenário mais favorável. Uma delas tramita no Congresso: o projeto de lei que cria uma figura jurídica específica para os fundos patrimoniais, que determina que só 5% do valor total do fundo pode ser gasto e que seu objetivo não pode ser modificado.
A intenção é dar segurança jurídica a colaboradores do fundo e garantir sua perenidade. Atualmente, não há incentivos a doações feitas por indivíduos ou famílias no país — com exceção de algumas áreas específicas, e a depender do estado. Nos Estados Unidos, o imposto federal que incide sobre as heranças varia de 30% a 50% do valor a ser deixado.
Ao instituir suas fundações ou financiar fundações já existentes, essas famílias se livram do imposto — a contrapartida é garantir que o dinheiro seja usado para o bem público. O imposto estadual sobre heranças e doações varia de 2% a 8% no Brasil. Não há, portanto, vantagem fiscal alguma em doar.
Além do incentivo jurídico, a base da cultura de doações nos Estados Unidos reside no papel que os cidadãos atribuem ao Estado e a si mesmos. No século 19, o francês Alexis de Tocqueville analisou os princípios da democracia americana. A democracia liberal, segundo ele, nasce do egoísmo esclarecido. Explica-se: os indivíduos percebem que estarão melhores se associados em prol do bem coletivo.
Assim, a cooperação e a solidariedade tornam-se hábitos. “Na América Latina, vivemos com uma tradição construída em Estados grandes e centralizadores, ao qual atribuímos a responsabilidade por quase tudo”, diz Andre Degenszajn, diretor do Gife. “Ainda somos iniciantes na ideia de que a sociedade tem participação na solução de seus problemas.”
O exemplo, porém, pode ter um efeito poderoso. “À medida que mais filantropos se expõem publicamente, a tendência é que haja mais engajamento”, diz Kai Grunauer-Brachetti, diretor de filantropia do banco UBS e um dos coordenadores do estudo feito por Harvard. Essa história, esperamos, está só no começo.