Revista Exame

Bastidores da fusão da Case com a New Holland

Tudo vira de cabeça para baixo quando grandes empresas se unem. Medo, conflitos, sucessos e tropeços marcam a história recente da CNH, união da Case com a New Holland

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Da Redação

Publicado em 3 de julho de 2012 às 15h44.

Em 1998, um empreiteiro da cidade de Paraopeba, a 120 quilômetros de Belo Horizonte, foi chamado para prestar um serviço rápido numa fazenda da região. Chegou lá com um trator da marca americana Case e foi surpreendido por uma advertência do proprietário: "Para fazer esse serviço aqui você terá de providenciar um trator FiatAllis". </p>

O dono da fazenda era o italiano Valentino Rizzioli, vice-presidente para a América Latina da New Holland, divisão do grupo Fiat que fabrica tratores agrícolas e máquinas de construção sob as marcas New Holland e FiatAllis. Um ano depois, o mesmo empreiteiro, que acatara a exigência, voltou à fazenda do executivo e foi à forra: "E agora, posso usar meu trator Case?" - "Claro! É um dos melhores do mundo", respondeu Rizzioli.

O diálogo, que seria absurdo no ano anterior, era reflexo da última grande fusão realizada no setor de máquinas agrícolas e de construção. Em 1999, a Fiat comprou a Case por 4,3 bilhões de dólares, formando a CNH, a maior fabricante mundial do setor em número de unidades produzidas. A empresa reúne 16 marcas, vendidas em 160 países. Seu faturamento em 2000 foi de 10 bilhões de dólares - o que, por esse prisma, a situa em quarto lugar no setor, atrás das americanas Caterpillar e John Deere e da japonesa Komatsu.

Aos 60 anos, Rizzioli, ex-piloto de combate da Força Aérea Italiana e funcionário da Fiat há 40, tornou-se o responsável por capitanear o processo de fusão no Brasil, iniciado há um ano. "Essa é uma experiência riquíssima na carreira de qualquer executivo", diz ele, que em 1992 conduziu a integração no Brasil entre a FiatAllis e a Ford New Holland, adquirida pelo grupo italiano. "O desafio é reorganizar a companhia sem perder mercado."

Em 2000, a CHN registrou um prejuízo global de 381 milhões de dólares. O Brasil é um dos poucos países onde a empresa vem lucrando, embora o resultado ainda seja mínimo: apenas 1 milhão de dólares, para um faturamento de 648 milhões. As quatro marcas da CNH presentes no país, duas na área agrícola e duas na de construção, mantiveram sua participação de mercado estável depois da fusão.


No mercado americano de tratores agrícolas, a líder John Deere, sua principal concorrente, ganhou cerca de 10 pontos percentuais de participação de mercado entre 1999 e 2000, enquanto a CNH perdeu o mesmo tanto. O fraco desempenho fez com que o preço das ações da CNH na Bolsa de Nova York caísse da casa dos 15 dólares na época da fusão para a dos 5, hoje. Com a união de Case e New Holland no Brasil, o número de funcionários, que somados chegavam a 2 400, caiu para pouco mais de 1970.

No universo corporativo, poucos processos carregam uma carga tão grande de dramaticidade quanto uma fusão. Segundo dados da Pritchett Rummler-Brache, consultoria internacional especializada em gestão da mudança, no período de integração a produtividade diária do pessoal cai de uma média de 4,8 horas para 1,2 hora, o espírito de equipe fica comprometido, o moral baixa e a luta pelo poder emerge. O caso da subsidiária brasileira da CNH é um retrato, dividido em vários cenários, da realidade de uma fusão.

1. O choque inicial -O economista Roque Reis, de 43 anos, então controller da área de construção da Case, acabara de sair de sua casa, em Sorocaba, interior de São Paulo, para fazer uma operação no nariz quando soube da compra da empresa pela concorrente Fiat. Ao voltar ao trabalho, uma semana depois, encontrou um ambiente pesadíssimo. "Tinha gente chorando, gente rindo. De uma hora para outra tudo ficou muito estranho", diz Reis, hoje diretor comercial da marca Case.

Os 450 funcionários da unidade tinham dificuldade em entender como a empresa, uma tradicional compradora, havia sido adquirida por uma concorrente menor. Nos dias seguintes, as pessoas se dividiriam em três grupos: o que se recusava a acreditar na fusão, o otimista quanto ao futuro e o formado por profissionais propensos a deixar a empresa.


Reis fazia parte dessa última facção. "Eu não tinha uma visão do que ia acontecer lá na frente, quanto tempo ficaria no meu cargo", diz ele. Nessa época, um terço dos cerca de 120 funcionários administrativos pediu demissão. Dos altos executivos da Case, 70% foram embora. Reis, que recebeu cinco propostas de trabalho nos meses seguintes, resolveu permanecer após meses de reflexão. "Não podia tomar uma decisão baseada no coração", diz. "Concluí que as propostas que havia recebido não eram realmente boas."

2. Tempo de incerteza - A pior fase para os funcionários das duas empresas foram os 17 meses entre o anúncio da fusão nos Estados Unidos e a autorização do Cade para o processo ir adiante no Brasil. "Foi um período de muita incerteza", diz Rizzioli. "Não podíamos fazer nada, a não ser aguardar a decisão do Cade." Diante das indefinições, muitos funcionários perderam a motivação. A concorrência aproveitou a tormenta e a indecisão quanto à continuidade ou não de algumas marcas do grupo para ganhar mercado. Alguma delas deixaria de existir no Brasil? Haveria peças de reposição e serviços para todas no futuro? A resposta a essa pergunta - inexistente na ocasião - era crucial para manter a fidelidade da clientela.

Nos Estados Unidos, a concorrência aproveitou o momento de indefinição. "Lá, a marca mais forte da CNH na agricultura pertencia à Case, a empresa comprada", diz Paulo Renato Herrmann, diretor comercial adjunto no Brasil da John Deere. "Como no Brasil a marca mais forte é a New Holland, da empresa compradora, não conseguimos ganhar participação de mercado."

A divisão agrícola da Case no Brasil é ainda pequena. Depois de mais de uma década afastada do país, retornou em 1997 e montou uma rede de 26 revendedores. Com a fusão, sua reestréia no mercado perdeu fôlego. "Era difícil convencer os clientes de que a marca ficaria", diz Cesar Campanha, revendedor da Case em Araras, interior de São Paulo. Campanha ainda ouvia gracinhas de revendedores da New Holland, do tipo: "Me passa a chave aí que agora sua concessionária é minha". "Eu sabia que era brincadeira, mas para mim não tinha graça", diz ele.

3. O que vai e o que fica - Aprovada a fusão, equipes multinacionais da Case e da New Holland vieram ao Brasil para redesenhar o mapa das fábricas. Estudaram todas as instalações. "Elas funcionavam com 50% a 70% de sua capacidade, dependendo do período do ano", diz o gaúcho Almiro da Costa, gerente de engenharia de manufatura da CNH.


"Precisávamos dar um jeito naquela situação." A Fiat tinha uma fábrica de equipamentos de construção em Belo Horizonte e uma de máquinas agrícolas em Curitiba. A Case fabricava equipamentos de construção em Sorocaba, onde também finalizava uma nova fábrica de máquinas agrícolas, e outra em Piracicaba, para máquinas feitas sob encomenda.

Decidiu-se que a unidade de Sorocaba fecharia (o que deve acontecer este mês) e sua produção seria deslocada para Belo Horizonte e Curitiba. "Manter tudo igual após a fusão seria um péssimo negócio", diz Costa. "Até o final de 2002, utilizaremos de 70% a 90% de nossa capacidade instalada." Atualmente, as fábricas da CNH estão finalizando a reorganização de seu espaço para acomodar a nova produção. As marcas terão linhas de montagem diferentes, mas alguns processos, como o corte e a dobra de chapas de aço, podem ser realizados pelas mesmas máquinas.

4. A metamorfose - As linhas mestras da reorganização da empresa foram definidas globalmente. Nenhuma marca desapareceria. Case, Case IH, FiatAllis e New Holland mantêm hoje departamentos comerciais independentes. As fábricas passaram a ser territórios neutros. A rede de distribuidores também permanece independente, embora lojas com as duas marcas possam ser criadas em mercados de baixa demanda. 

Outras áreas da empresa, como as de logística, pós-venda, banco de financiamento, sistemas de informática, marketing e recursos humanos, foram unificadas. No Brasil, cerca de 60% dos funcionários de cada departamento são oriundos da Fiat. O desafio da adaptação, nesse caso, é muito maior para os funcionários da Case. Eles vinham de uma cultura mais formal e hierarquizada. "O estilo da New Holland, ao contrário, é informal, com flexibilidade administrativa e foco nos resultados", diz Rizzioli. "A nova empresa manterá essa característica."

Em outras questões, a CNH vem adotando modelos híbridos. Um novo programa de avaliação das competências e habilidades dos funcionários será implementado em 2002. "O método da New Holland avaliava mais a capacitação técnica do funcionário. A Case focava o comportamento", diz o italiano Giuseppe de Riccardis, diretor de recursos humanos da CNH para a América Latina. "No novo programa, esses aspectos terão pesos iguais."


5. Gritos e sussurros - Os primeiros contatos entre o pessoal da Case e da New Holland foram marcados pelo estranhamento e pela desconfiança. Em sua primeira reunião com diretores, Rizzioli tentou quebrar o clima: "Somos uma família, uma empresa única, e não quero ouvir ninguém falando mal da outra marca." Era necessário lembrar isso? "Se deixasse a coisa frouxa, acabaríamos criando um ambiente hostil", diz. 

Uma fusão costuma confrontar duas concepções diferentes de trabalho. E ninguém quer que o seu jeito seja alterado. Na primeira vez em que Roque Reis, egresso da Case, foi a Belo Horizonte conversar com seus novos colegas, levou um susto com o estilo italiano das reuniões. "O tom das vozes logo subia", diz Reis. "Um dos executivos começou a gritar comigo e só mais tarde percebi que aquele era o jeito natural de o pessoal debater."

Nem sempre, porém, a convivência foi tão fácil. A área de construção, da qual Reis faz parte, é onde a competição entre as duas empresas é mais forte. O conflito, em certas ocasiões, foi inevitável. "Você acha que vai vir aqui explicar para a gente o seu processo de faturamento?", perguntou-lhe, certa vez, um executivo da Fiat.

Para produzir relatórios consistentes e tomar conhecimento do que realmente acontece na companhia, a matriz da CNH está padronizando os processos e sistemas de informática. "Tínhamos um método de avaliação de estatísticas de mercado menos completo e mais rápido, enquanto a Case tinha um mais detalhado e lento", diz Luiz Carlos Toni, gerente nacional de vendas da FiatAllis. "O pau comeu. A simples defesa de um tipo de gráfico se transformou numa defesa do jeito de ser de cada organização." Nesse caso, o método da Case prevaleceu.

Em outras áreas, sobretudo nas fábricas, a integração foi quase imediata. Almiro da Costa, o gerente de engenharia de manufatura, não queria perder os engenheiros da unidade fechada da Case. Convidou-os para uma visita de alguns dias a Curitiba, acompanhados da família, ofereceu benefícios para que se mudassem e pediu a seus engenheiros que lhes mostrassem a cidade. Resultado: a maioria dos cerca de 30 engenheiros, antes estabelecidos em Sorocaba, topou a mudança.


6. O destino das marcas -  Na área agrícola, uma característica das marcas Case IH e New Holland tem facilitado a integração. Cada uma está voltada a um tipo de agricultor. A Case, com cerca de 1 000 clientes, vende máquinas maiores e mais caras. A New Holland, com 80 000, atua no mercado de massa. "A New Holland é um carro Fiat. A Case é um Alfa Romeo", diz o francês François Jourdan, diretor de marketing da CNH. "Queremos aprofundar essa diferença, retirando até uma ou outra máquina do mercado, para que cada marca se concentre mais na sua clientela." Na área de construção a briga é mais intensa. A Case e a FiatAllis se confrontam em cerca de 25 concorrências por mês.

7. O produto - Daqui para a frente, a CNH vai reduzir o número de fornecedores e usar alguns componentes comuns nas diferentes marcas. Mas apenas elementos que não alterem a percepção do cliente, como fios elétricos, parafusos, volante, assento do operador ou lâmpadas. Haverá troca de tecnologias, e nesse caso a New Holland tende a tirar mais proveito da tecnologia Case.

8. O resultado -  Quando tudo estiver funcionando bem, a expectativa é que a fusão gere para a subsidiária brasileira uma economia de 38 milhões de dólares ao ano, ou 8% dos custos totais de produção. No mundo, a meta é superar os 600 milhões até o final de 2003. A fusão - segundo as expectativas dos acionistas - permitirá à Fiat entrar com mais força no mercado americano, onde a Case é um nome de peso.

A maneira como os antigos funcionários da Case e da New Holland vão trabalhar juntos deverá ter repercussões importantes para toda a corporação. Nos últimos anos, o grupo Fiat tem procurado ficar menos dependente das vendas no setor automobilístico, que responderam por metade de sua receita total de 53 bilhões de dólares no ano passado. A divisão de máquinas e tratores representa quase 20% disso. Para que se chegue a esses resultados, os traumas da fusão continuarão a ter de ser superados.

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