Revista Exame

Assim, fica difícil competir, mostra o case da Vulcabras Azaleia

Um mergulho na Vulcabras Azaleia mostra que a nova política industrial está longe de debelar os problemas que corroem a competitividade das empresas brasileiras

Fábrica no Ceará: com toda a produção atualmente no Nordeste, a Vulcabras estuda comprar uma fábrica na Índia (Drawlio Joca/EXAME.com)

Fábrica no Ceará: com toda a produção atualmente no Nordeste, a Vulcabras estuda comprar uma fábrica na Índia (Drawlio Joca/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 7 de outubro de 2011 às 15h06.

Rio de Janeiro - A Vulcabras Azaleia é a maior fabricante de calçados e artigos esportivos da América Latina. Com 40 000 funcionários no Brasil e 3 000 na Argentina, a empresa faturou 2,2 bilhões e lucrou 121 milhões de reais no ano passado.

No quesito produtividade, suas 23 fábricas são donas de um feito notável: produzem uma quantidade de calçados que, na China, exigiria um número de empregados 30% maior. Parte desse resultado se explica pela tecnologia e pelos processos empregados na produção. A maior fábrica da empresa, localizada em Horizonte, no Cea­rá, é considerada uma das mais modernas do mundo.

No entanto, nem tecnologia nem produtividade têm sido capazes de vencer a diferença de custos entre os calçados brasileiros e os importados da China. Os calçados chineses custam, em média, metade do preço dos fabricados aqui. A perda de mercados externos para a China vem ocorrendo há anos.

Em 2010, as exportações da Vulcabras Azaleia representaram 6% da receita — participação distante dos 35% de 1985. No mercado doméstico, as importações de calçados cresceram 50% ao ano nos últimos quatro anos. Numa tentativa de recuperar parte da competitividade perdida, no momento a empresa estuda a compra de uma fábrica na Índia.

“Lá, onde a mão de obra é bem mais barata que aqui, vamos fabricar componentes para abastecer as fábricas brasileiras”, diz Milton Cardoso, presidente da Vulcabras Azaleia.

É justamente esse tipo de saída — a transferência da produção brasileira para outros países — que a nova política industrial, lançada pelo governo no início de agosto, tenta evitar. Na última quinzena, EXAME mergulhou na operação da Vulcabras Azaleia para identificar os efeitos práticos do plano Brasil Maior sobre a companhia.

Sua escolha foi cirúrgica: como fabricante de calçados, a Vulcabras Azaleia está entre as empresas mais beneficiadas pelo plano. Será contemplada, por exemplo, com a desoneração da folha de pagamentos, o carro-chefe do pacote. Em vez de recolher os atuais 20% sobre o salário dos funcionários como contribuição à Previdência, será tributada em 1,5% do faturamento bruto.


A regra começará a valer somente em dezembro. Mas, tomando como base a operação de 2010, a medida resultaria numa economia de 45 milhões de reais para a Vulcabras. Os impostos incidentes no processo de produção de artigos exportados, uma anomalia do sistema tributário brasileiro, também serão reduzidos.

Com vendas externas decrescentes, o ganho nesse item teria sido de 4,2 milhões de reais. Ao todo, o plano Brasil Maior traria para a empresa uma economia de 49 milhões de reais, quantia razoável diante dos 361 milhões em impostos pagos em 2010. Mas isso nem de longe é capaz de compensar as vantagens comparativas das concorrentes chinesas. 

Uma lente de aumento sobre a operação da Vulcabras Azaleia mostra que muitos dos drenos da competitividade da empresa, e de todas as outras que operam no país, continuam intocados. O projeto do governo não dedica uma linha à redução da burocracia, não elimina uma só certidão, não facilita o pagamento de um único imposto.

Fazer negócios no Brasil continua a ser um processo tão intrincado e ilógico como sempre foi. Nenhum plano pode, de fato, garantir o aumento da competitividade sem atacar esses problemas. Voltemos à Vulcabras Azaleia. Sua origem está no Rio Grande do Sul e em São Paulo.

Mas, hoje, por causa da guerra fiscal que floresceu em meio ao caos tributário brasileiro, nenhuma de suas 23 fábricas fica nesses estados. A maior delas, a do Ceará, com 14 000 funcionários, está a 3 200 quilômetros de São Paulo, onde é vendida quase metade da produção.

Outras 19 fábricas estão na Bahia e três em Sergipe. A transferência da produção do Sul e do Sudeste para o Nordeste, em meados da década de 90, deveu-se principalmente aos incentivos fiscais, além do custo mais baixo de mão de obra. No Ceará, é possível deixar de recolher 99% do tributo sobre as vendas e 75% do imposto de renda.


Na Bahia e em Sergipe, os benefícios variam de 50% a 75%. Sem as renúncias fiscais dos três estados, a Vulcabras Azaleia teria pago 540 milhões de reais ao Fisco, em vez dos 361 milhões recolhidos. Com isso, sua carga tributária teria sido de absurdos 45%, e não de 29%, como é hoje.

logística de guerra

A fuga dos impostos, porém, impõe à Vulcabras uma logística de guerra. Quase toda a matéria-prima que abastece suas fábricas no Nordeste é enviada do Sul e do Sudeste — regiões onde estão os maiores clientes da empresa e para onde boa parte da produção volta ao final do ciclo.

No ano passado, o vaivém com insumos, calçados e roupas requisitou cerca de 11 000 viagens de carretas. Parte da competitividade fica pelo caminho. O frete pago no transporte de um par de tênis do Ceará a São Paulo sai quase o mesmo preço (1,11 real) que o de um par que vem de Hong Kong para São Paulo (1,17 real).

O transporte no país é encarecido por problemas como o desgaste do caminhão em estradas esburacadas e pelas despesas com a segurança da carga. Todas as carretas são equipadas com ao menos dois rastreadores por satélite. A escolta armada, exigida em grande parte do percurso, encarece o frete em 20%. Mesmo com todos os cuidados, a Vulcabras teve cargas roubadas no ano passado.

Nos últimos anos, com o enriquecimento da China, seu custo de mão de obra aumentou. Mas as diferenças em relação ao Brasil — provocadas sobretudo por encargos e benefícios — continuam a ser abissais. Estima-se que o custo total de um empregado com baixa qualificação seja de 22 000 dólares anuais na China e de 62 000 dólares no Brasil.

Um operário chinês ganha 12 salários e trabalha 12 meses no ano. As férias se restringem aos sete dias do feriado do Ano Novo chinês e a jornada de trabalho semanal varia de 55 a 60 horas. No Brasil, são pagos 13,3 salários por 11 meses de trabalho e a jornada semanal é de 48 horas.

O trabalhador chinês não conta com previdência pública nem com fundo de garantia por tempo de serviço. Seus patrões não são obrigados a contribuir com salário-educação, Sistema S ou fundo rural.


“Ninguém quer acabar com a aposentadoria ou com as férias remuneradas do brasileiro. Isso seria retrocesso”, diz Cardoso. “Mas não há mais espaço para a rigidez do nosso sistema trabalhista, que acaba prejudicando o próprio trabalhador.” Tradicionalmente, 60% dos calçados vendidos no país são produzidos no segundo semestre.

Seria razoável que, nesse caso, companhias como a Vulcabras lançassem mão dos bancos de horas: a jornada de seus funcionários seria reduzida na primeira metade do ano, sem redução de salário. Em contrapartida, o expediente se estenderia no segundo semestre, sem que fosse necessário pagar horas extras.

A decisão de aceitar ou não é do sindicato local. No caso da Vulcabras, o banco de horas é adotado apenas em algumas das fábricas, nas quais é mais fácil acomodar os funcionários na baixa temporada. Nas demais, a saída são as demisões.

São processos inúteis. Assim como é inútil a burocracia que cerca a operação de qualquer negócio e que continua intocada. Grandes companhias, como a Vulcabras, arcam com o custo de permanecer na legalidade.

Lá, 152 pessoas — um quadro muito superior ao total de funcionários da maioria das empresas brasileiras — se dedicam exclusivamente a pagar impostos. O sistema de escrituração eletrônica da Receita, o Sped, já foi instalado, mas o arquivo de livros fiscais ainda é obrigatório.

Em 2010, a Vulcabras gerou 500 livros desse tipo com 600 folhas cada um. Cerca de 4 000 metros quadrados espalhados em várias unidades são usados apenas para guardar os livros.

É verdade que as deficiências que afetam as empresas brasileiras não são novas. Ocorre que, durante crises mundiais, em que a competição global se acirra, e em momentos em que a valorização da moeda facilita as importações, as economias menos eficientes sofrem mais.

“O problema é que a maior parte do trabalho para que o Brasil se torne mais competitivo cabe ao governo”, afirma Carlos Arruda, professor da Fundação Dom Cabral. “Enquanto uma empresa tiver de ocupar tanto espaço e tanta gente para atender o Estado, o produto brasileiro continuará perdendo espaço no mercado.”

Na Vulcabras, enquanto 152 funcionários são pagos para atender às exigências do Fisco, apenas 15 são responsáveis pelo planejamento estratégico. São eles que definem o orçamento, os custos e quais investimentos devem ser feitos. Assim, fica mesmo difícil competir.

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