Revista Exame

As tarifas e a moderação

O tarifaço de Donald Trump ao Brasil e a reação a ele voltam a dividir a sociedade, afastando-nos de nossa essência

O empresário sofre com o fechamento potencial de um mercado importante, o trabalhador vê fechadas vagas de emprego, o dólar sobe, assim como os juros futuros. Todos perdem. Ou quase todos (Eugene Mymrin/Getty Images)

O empresário sofre com o fechamento potencial de um mercado importante, o trabalhador vê fechadas vagas de emprego, o dólar sobe, assim como os juros futuros. Todos perdem. Ou quase todos (Eugene Mymrin/Getty Images)

Publicado em 31 de julho de 2025 às 20h00.

A paixão de Albert Einstein pela música clássica é bastante conhecida. Sobre Mozart, escreveu algo assim: “Sua obra é tão pura que parece ter estado sempre presente no universo, esperando ser descoberta”. O físico parecia procurar na música leis naturais semelhantes àquelas observadas no cosmos.

Bem menos documentada é a admiração de Einstein por Dorival Caymmi. O deslumbramento é narrado em detalhes no livro Não Está Mais Aqui Quem Falou, de -Noemi Jaffe. Einstein identifica em Caymmi o mesmo do apurado em Bach: a sensação da coincidência perfeita entre letra, melodia, entoação, arranjo e timbre. Como descreve Jaffe, “mesmo reconhecendo todas as diferenças que separam o músico austríaco do século 17 do cancionista baiano do século 20, não há como negar algumas semelhanças: o máximo de sofisticação na aparência de máxima simplicidade”.

Contardo Calligaris, que era italiano mas tinha conhecimento profundo sobre nosso país, escreveu uma coluna na Folha de S.Paulo em setembro de 2005 sobre sua “inconfessável paixão pela música sertaneja local”. O preconceito com a música regional brasileira é só um caso particular do geral complexo de vira-latas. Sob a ressalva de estar conflitado, acho comovente termos hoje o Prêmio BTG Pactual da Música Brasileira, com homenagem a Chitãozinho & Xororó. O selo de aprovação do coração financeiro de São Paulo transforma o complexo em elogio do vira-lata.

Somos, na origem, o resultado da interação do europeu com o índio e o preto, tão bem narrado em Formação do Brasil Contemporâneo, a afabilidade do homem cordial, descrita em Raízes do Brasil, a incorporação para dentro do patriarcalismo de elementos africanos, como argumentado em Casa Grande & Senzala, o “vetor ibero-imigrante com a milionária contribuição afro-ameríndia” do Elogio do Vira-lata.

O tarifaço de Donald Trump aos produtos brasileiros e a reação a ele voltam a dividir a sociedade. Insistimos na polarização extremada, desafiando a racionalidade econômica e afastando-nos da própria essência de cordialidade e sincretismo brasileiros, num enredo sem heróis.

A começar pelo maior vilão. É o próprio Trump o grande responsável, que embaralha a Ordem Mundial a partir de devaneios intempestivos em redes sociais, com pedidos impossíveis que mais lembram rompantes adolescentes cujos níveis de testosterona transbordam muito além do permitido pela liturgia do cargo de chefe de Estado.

Mas não podemos também tergiversar da própria responsabilidade. A postura do governo brasileiro tem sua parcela de culpa. Adotamos uma retórica antiamericana, nos aproximamos do eixo das ditaduras, insistimos na moeda do Brics e empenhamos uma agenda na Cúpula deste bloco claramente desalinhada aos interesses manifestos de Donald Trump.

A retórica anti-Israel, a incapacidade de diálogo e diplomacia prévia com o governo Trump, as condenações públicas à Ucrânia sem críticas análogas à Rússia… Tudo isso atrapalha. Lula administra mal a questão externa (e também a dívida pública, mas isso é outra história).

Ao mesmo tempo, é o nome de Bolsonaro que está na carta de Trump. Não há outro. E esse nome não foi parar lá aleatoriamente. Há uma proximidade, sim, da família com parte do trumpismo, da ala de Steve Bannon e de congressistas da Flórida. Não fosse por essa ofensiva bolsonarista, talvez a carta não viesse ou, pelo menos, não dessa forma.

Poderíamos também reconhecer eventuais excessos do STF, que atua com o gigantismo de um Poder Moderador extinto há mais de século, ataca a liberdade de expressão com várias iniciativas de censura prévia e conduz um processo em que o juiz é vítima, acusador, investigador e julgador.

Nada disso, claro, justifica a interferência estrangeira sobre a soberania nacional. O ponto é que o tarifaço empurra ainda mais a sociedade para os extremos, tendo como perdedores nós mesmos, os idiotas pagadores de impostos. O empresário sofre com o fechamento potencial de um mercado importante, o trabalhador vê fechadas vagas de emprego, o dólar sobe, assim como os juros futuros. Todos perdem. Ou quase todos.

Por ora, as pesquisas de opinião apontam uma melhora na aprovação do presidente Lula com a ofensiva de Trump. Antever, contudo, que seus problemas de popularidade estejam resolvidos ou que a dinâmica não significa um espasmo pontual pode ser prematuro. O primeiro ponto é que, se aplicadas de fato, as tarifas colocam o Brasil na liderança global da taxação. Em termos práticos, isso bate sobre nossas exportações, sobre o câmbio e sobre a atividade. Uma piora do índice de miséria nunca é boa para o incumbente.

Um segundo fator crucial é que, apesar de hoje ter o controle da narrativa, o governo caminha sobre gelo fino. Além de aliar-se momentaneamente a setores pouco simpáticos à sua gestão, como o agro e parte do empresariado, a administração de turno precisa alinhar colheita dos benefícios políticos da narrativa ao mesmo tempo que negocia pragmaticamente com os Estados Unidos. Qualquer percepção de que o governo quer apenas se aproveitar eleitoralmente da situação pode reverter o ganho mais recente de popularidade. Defesa da soberania é algo bom, oportunismo excessivo é ruim.

Um terceiro pilar importante vem do fato de que Lula ganha porque tem um antagonista claro. Na novela O Duelo, Tchékhov enuncia como a própria disputa enaltece os duelistas. Um precisa do outro. Como mostrado por pesquisas de opinião, a percepção mais consensual é de que a família Bolsonaro atua em favor do próprio sobrenome, com consequências deletérias ao Brasil. Recai sobre a família a visão de extremismo, cuja consequência natural típica é o isolamento. O radicalismo de direita foi o maior perdedor.

Ocorre, no entanto, que a foto não conta o filme todo. A maior parte dos juristas aponta provável condenação de Jair Bolsonaro nos próximos meses. Com o sobrenome perdendo apoio entre o empresariado e setores do centro diante da percepção de extremismo, ele pode ser obrigado a apoiar alguém da centro-direita.

Sem seu maior antagonista, Lula, que se elegeu em 2002 sob a roupagem de “paz e amor” de Duda Mendonça e em 2022 com o apoio da Frente Ampla, vê esvaziado o maniqueísmo narrativo do nós contra eles, do mocinho contra o bandido, do bem contra o mal. Abre-se espaço potencial para a moderação emergir como solução.

Há um esgotamento, pelo menos em parte da sociedade, dessa clivagem polarizada e radical. Ir contra nossa afabilidade e convivência constitutiva com o diferente desafia a natureza brasileira. Se insistirmos na radicalização, trairemos nossa própria alma. E a alma tem seus próprios ancestrais. Os nossos nunca cultuaram o radicalismo. A morte do homem cordial seria um novo e inédito tipo de fim do Brasil.

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