Revista Exame

O paraíso libertário das empresas de tecnologia está perto do fim

Até aqui, as empresas de tecnologia têm vivido sem regulamentação que limite suas ações. Mas as regras vêm aí

<strong>Um limite para elas?</strong> A cidade de São Francisco proibiu as patinetes elétricas nas ruas até tirar uma conclusão sobre seu efeito no trânsito | Jason Henry/The New York Times/Fotoarena /

<strong>Um limite para elas?</strong> A cidade de São Francisco proibiu as patinetes elétricas nas ruas até tirar uma conclusão sobre seu efeito no trânsito | Jason Henry/The New York Times/Fotoarena /

DC

David Cohen

Publicado em 11 de abril de 2019 às 05h56.

Última atualização em 25 de julho de 2019 às 11h53.

É comum elogiar as novas empresas de tecnologia chamando-as de “disruptoras”, no sentido de que ameaçam as concorrentes estabelecidas não por combatê-las de frente, mas por mudar as regras do jogo. A ideia da ruptura é, mais do que vencer os competidores, torná-los irrelevantes — como aconteceu com as companhias de iluminação a gás quando surgiu a luz elétrica, ou com as carruagens quando apareceu o automóvel. Essa imagem, porém, é incompleta: as rupturas não se limitam ao mercado em disputa. Em seu conjunto, elas têm afetado a própria compreensão de como funciona (ou deveria funcionar) nossa sociedade.

Um dos primeiros pontos de transformação é o mercado de trabalho. Quando as empresas se definem como plataformas, que em vez de empregar diretamente as pessoas dão a elas a oportunidade de prestar serviços a outros clientes, chacoalham-se as normas estabelecidas para um ambiente de dicotomia entre capital e trabalho. O novo profissional não está em nenhum dos campos. É um misto de empreendedor e empregado, de autônomo e funcionário, de subordinado e cliente. Como regular o horário de trabalho de um motorista de aplicativo, para impedir que ele cumpra jornadas exaustivas, se é ele mesmo quem liga ou desliga a máquina que o torna disponível?

De um lado, os trabalhadores dessa nova economia são completamente independentes, na escolha dos clientes a quem servir e dos horários a cumprir. De outro lado, porém, a empresa não é uma plataforma neutra de encontro entre um prestador e um tomador de serviço; ela controla o preço, manipula incentivos para obter os comportamentos que deseja e, principalmente, pode “demitir” seus operários sem nem ao menos o desgaste psicológico de ter de chamá-los a uma sala e dar-lhes a notícia — faz isso bloqueando-lhes o acesso ao aplicativo, no momento que lhe aprouver.

De certa forma, a realidade se adiantou à reforma trabalhista aprovada durante o governo Michel Temer. As normas rígidas de relação entre empregados e empresas têm sido curvadas pelo aumento do número dessa nova classe que poderíamos chamar de “empreendegados”, empreendedores-empregados. Como assegurar-lhes direitos sem eliminar a oportunidade de trabalho? Nos Estados Unidos, Alan Krueger, professor de economia na Universidade Princeton, e Seth Harris, ex-secretário do Trabalho no governo Obama, propõem que a legislação se adapte para contemplar esses trabalhadores autônomos, concedendo-lhes muitas das garantias, mas não todas, de um trabalhador usual — como o direito de organizar-se coletivamente em sindicatos para negociar taxas e condições de trabalho ou permitir que as empresas contribuam para sua aposentadoria sem caracterizar um vínculo empregatício que as leve a arcar com onerosas obrigações.

Como se as complicações trabalhistas já não fossem o bastante, as novas empresas digitais impõem um desafio crescente para diversas normas civis. As inovações representam um desafio regulatório em quatro casos diferentes, de acordo com uma pesquisa de Sarah Light, professora de estudos legais e ética na Escola de Negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, em colaboração com outros três acadêmicos. A primeira forma de impacto é quando uma empresa presta um serviço semelhante ao de uma companhia existente, mas alega que as regras não se aplicam a ela. É o caso da Uber e de seus congêneres, que argumentam não ser empresas de táxi e dizem que, portanto, seus motoristas não precisam de licenças municipais.

O segundo desafio é quando cidadãos são isentos de seguir normas exigidas para as empresas — mas um app torna possível reunir esses cidadãos num conjunto que se comporta como uma companhia. Assim como a luz pode ser tratada como uma onda ou como um feixe de partículas, é difícil definir se a regulação a ser aplicada é a das pessoas físicas ou a das jurídicas. O exemplo mais claro é do Airbnb: hotéis não podem discriminar que tipo de hóspedes aceitam, mas em sua casa você pode convidar ou não deixar entrar quem você quiser. Se uma pessoa manifesta intenção de alugar uma casa maravilhosa, mas o dono da casa a recusa, seja por alguma reclamação postada no site, seja pela cor de sua pele, a quem ela vai apelar?

Um terceiro desafio regulatório, de acordo com Sarah, é quando um serviço inovador não está previsto nas normas. É o caso das entregas com drones ou dos carros sem motorista. Há que se decidir de quem é o espaço aéreo ou de quem é a responsabilidade em caso de acidente. Finalmente, um quarto desafio é o das tecnologias que resolvem algum grave problema, mas esbarram em normas feitas para outras situações. É o caso das placas solares, que já permitiriam às casas não apenas dispensar o uso da energia da rede mas também agir como fornecedoras da rede… se houvesse um mercado regulamentado.

A esses quatro desafios é preciso acrescentar a questão das externalidades: os efeitos que um contrato entre duas partes provocam em terceiros, alheios ao negócio. Uma externalidade negativa do serviço de entregas de comida é o aumento de custos para ambulâncias e hospitais, devido aos acidentes com motociclistas. Uma segunda é o excesso de patinetes estacionadas na rua, em alguns casos atrapalhando o tráfego de pedestres.

Outra externalidade negativa é para os vizinhos de um apartamento transformado por seu dono em hospedaria. Fica claro que o empreendedor que quiser de antemão resolver todas as pendengas que sua inovação possa provocar não criará coisa alguma. É daí que se explica um dos ditados preferidos do Vale do Silício, o berço da cultura digital: “É melhor pedir desculpas do que pedir licença”. Ou seja, pecados de comissão são mais leves do que os de omissão. No cômputo geral, as inovações têm saldo positivo não apenas na conta bancária dos empreendedores mas também na vida das pessoas.

Nicho libertário

Uma consequência dessa postura é o posicionamento ideológico radicalmente contra a regulação. O Estado é comumente definido, para quem está imerso nesse ambiente, como um incômodo e um freio ao progresso. Não à toa, durante décadas o Vale do Silício foi identificado como um nicho libertário dentro dos Estados Unidos. Libertarianismo é, em essência, a crença de que o mercado pode até não ser perfeito, mas é melhor do que qualquer alternativa: o controle estatal, até mesmo em áreas como saúde e segurança pública, provoca ineficiências e abre espaço para a corrupção ou o fortalecimento de uma casta parasitária (os controladores da máquina estatal), que, além de não produzir riqueza, absorve a de quem criou.

Fora do previsto na norma: Nas entregas de produtos feitas com drones e carros autônomos, quem deve responder quando ocorrer um acidente? | Ralph Orlowski/Reuters

Nas décadas de 70 e 80, a propaganda libertária era intensa. O slogan de John Kennedy (“Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pot seu país”) era comumente reinterpretado como “Não pergunte o que o país pode fazer por você, faça você mesmo”. Até a virada do milênio, o libertarianismo reinava. Mas, embora ainda haja libertários famosos, como o empreendedor serial Peter Thiel, cofundador do PayPal, essa já não é a ideologia reinante no Vale do Silício.

Um estudo conduzido em 2017 pelos professores de economia política David Broockman e Neil Malhotra, da Universidade Stanford, e pelo jornalista Greg Ferenstein, com 600 fundadores e executivos-chefes de empresas de tecnologia, revelou que seus valores são quase totalmente identificados com o ideal progressista do Partido Democrata. Não é de espantar, visto que 97% das doações para campanhas políticas na região vão para candidatos democratas. Há, porém, duas divergências cruciais em relação ao credo progressista. Eles compreensivelmente atribuem muito mais valor à atividade empreendedora (em vez da ênfase no dirigismo estatal) e são muito desconfiados em relação a sindicatos e à regulação estatal.

O termo que melhor os define, de acordo com os acadêmicos Brink Lindsey e Steven Teles, é “liberaltarianismo”, um amálgama do credo liberal (no sentido que os americanos lhe dão, de progressista com preocupações sociais) com o credo libertário. Isso explica outra expressão cara à cultura empreendedora do Vale do Silício, com ecos aqui no Brasil: todos querem, como defendeu Steve Jobs num célebre discurso a universitários, colocar sua marca no universo, fazer algo que tenha impacto positivo na vida das pes-soas. A tendência, porém, é que a elite tecnológica perca a briga contra a regulação. Em grande parte, porque a classe se desgastou com tantos conflitos e, quando teve de pedir desculpas e reparar algumas de suas ações ousadas, ficou devendo. Eles ainda são vistos como heróis, mas também como gente mimada, ciosa de seus privilégios.

Dono ou empregado? Os dois: As leis do trabalho não dão conta de enquadrar as relações criadas entre os apps e quem faz o serviço de entrega | REUTERS/Erik De Castro

Em segundo lugar, e não menos importante, os governos estão ficando mais espertos em relação à regulação. São Francisco, por exemplo, proibiu o uso de patinetes elétricas na ruas, mas desde meados do ano passado a prefeitura está conduzindo um programa-piloto para averiguar que limites pode dar ao serviço de forma que ele funcione como auxiliar do trânsito sem provocar externalidades insuportáveis. Da mesma forma, a cidade de Nova York estabeleceu limites ao número de motoristas de Uber que podem circular pela cidade, mas as regras estão sujeitas a reavaliação daqui a um ano, quando houver mais dados para decidir a intensidade e a direção das regras.

Não é mera coincidência que o cofundador e executivo-chefe do Facebook, Mark Zuckerberg, tenha se tornado um defensor da regulação. No dia 30 de março, ele publicou no jornal The Washington Post um artigo em que defende intervenção em quatro áreas: conteúdo malicioso, integridade das eleições, privacidade e o direito de portabilidade dos dados entregues a uma empresa. Não é que ele tenha se convertido. É que entendeu que a regulação — como mostra o avanço das regras e punições a empresas de tecnologia na Europa — é inevitável e quer pelo menos influenciar o modo como ela será definida.

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