Revista Exame

As perdas da dona da JBS estão longe de terminar

Os irmãos Batista, do grupo J&F, tentaram limitar suas perdas ao assinar um bilionário acordo de leniência. Mas fantasmas do passado vão assustá-los

Venda de carne: o ataque à JBS vem de todos os lados  (Alexandre Severo/Exame)

Venda de carne: o ataque à JBS vem de todos os lados (Alexandre Severo/Exame)

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Maria Luíza Filgueiras

Publicado em 21 de junho de 2017 às 13h09.

São Paulo — Um dos pilares de uma estratégia de investimentos prudente é a capacidade de limitar perdas. No meio de uma cri-se, quando ações despencam, juros disparam e o câmbio vai para a Lua, grandes investidores adotam o mecanismo conhecido em inglês como “stop loss”: vendem, mesmo no vermelho, para evitar um prejuízo insuportável. Esse é um conceito que pode ser aplicado a diversas áreas, mas, no Brasil de hoje, ninguém aperta tanto a tecla do stop loss quanto as empresas que estão sendo investigadas por corrupção. A forma de fazer isso é o agora famoso “acordo de leniência”, em que empresários se ajoelham no milho, assumem os erros que cometeram, pagam multas com muitos zeros e, com isso, podem voltar a ter uma vida relativamente normal.

A holding J&F, dona da gigante de processamento de carne JBS, foi a última a seguir essa cartilha. Seus donos assinaram um rumoroso acordo de delação premiada com o Ministério Público e, duas semanas depois, fecharam o tal acordo de leniência. Toparam pagar a multa de 10,3 bilhões de reais. A esperança era zerar a perda. Mas, passados poucos dias do anúncio do acordo, já é possível dizer: no caso da J&F, as perdas ainda estão muito longe de terminar.

O acordo, em si, foi bem mais palatável do que os 10,3 bilhões de reais de multa podem fazer crer. É a maior multa da história da Justiça brasileira e responde por 5,6% do faturamento das empresas da holding J&F, mas será paga em suaves prestações anuais — o grupo só terminará de pagar no longínquo ano de 2042. Mas a chave para a suavidade da pena é a forma de correção de seu valor. Em vez de embutir a taxa de juro da economia, como ocorreu nos acordos das construtoras Odebrecht e Andrade Gutierrez, a multa da J&F será corrigida pela inflação. O negócio foi tão bom para a empresa que as ações da JBS valorizaram 8,5% no dia seguinte à assinatura.

Estavam encerradas, e a um preço camarada, as pendências do grupo com o governo federal e suas agências. Mas o histórico dos irmãos Batista — controladores da J&F — cria outro tipo de problema daqui para a frente. Fora de Brasília, longe do alcance do acordo com o Ministério Público, esqueletos que vinham sendo escondidos nos armários da família Batista começam a dar o ar da graça. E ninguém consegue calcular o tamanho desse problema para o grupo.

Talvez o maior problema a ser enfrentado pelos irmãos Batista seja justamente a ira do governo federal. Joesley Batista gravou o presidente da República na calada da noite, e Michel Temer orientou seus lugares-tenentes a complicar a vida de seu algoz sempre que possível. Para fechar o acordo de leniência, a J&F teve de se comprometer a pagar contas atrasadas ou em discussão judicial com órgãos públicos, quitando atrasos de INSS, FGTS e Fazenda Nacional. Trata-se de um montante estimado em 4 bilhões de reais. A empresa pretendia usar créditos tributários para quitar a dívida previdenciária, de 2,4 bilhões de reais, mas a Receita Federal já avisou que quer receber em dinheiro.

Alguns analistas acreditam que o próprio governo acabará questionando a obtenção desses créditos, já que eles foram obtidos em operações que podem ser consideradas ilegais. No limite, podem valer zero. Segundo dois bancos ouvidos por EXAME, a JBS tem mais de 5 bilhões de reais de créditos tributários em seu balanço, além de 22 bilhões de reais de ágio de aquisições (que são usados para dedução de imposto de renda da empresa) que correm risco. Hoje, diversas dessas operações estão sendo questionadas, e caberá à nada amigável Receita Federal decidir o que fazer. “Qualquer mudança no valor real de uma compra feita pela empresa vai mexer nessa conta”, diz o executivo de um banco que acompanha o caso JBS.

Enquanto isso, o acesso a crédito tem se complicado. No acordo com o MP, a J&F obteve o compromisso que suas empresas poderiam pegar empréstimos em bancos públicos. Mas, dez dias depois de fechado o acordo, a JBS começou a se queixar com os procuradores de estar sofrendo hostilidades por parte da ex-amigona Caixa Econômica Federal, por ordem do Planalto. A Caixa comunicou à empresa sua intenção de suspender linhas de meio bilhão de reais e cobrou uma dívida da empresa de produtos de limpeza Flora, do grupo. Procurada, a Caixa nega qualquer orientação do Planalto ou retaliação, e afirma que o prazo do empréstimo para a Flora venceu.

O Banco do Brasil decidiu manter as linhas de capital de giro para a JBS, que são garantidas por contratos de exportação — mas não vai abrir linhas para investimento. BB, Bradesco e Itaú resolveram manter os empréstimos, fazendo revisões periódicas da situação da empresa (os três bancos não comentam). Em nota, a J&F diz que não houve alteração em suas relações com as instituições, incluindo a Caixa.

Apesar da posição institucional dos bancos, alguns gerentes de agências têm tomado as próprias precauções. Segundo as associações de pecuaristas de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, bancos e cooperativas pararam de aceitar o desconto de notas promissórias de vendas feitas à JBS — que aumentaram de volume, uma vez que a empresa deixou de pagar à vista e passou a pagar com prazo de 30 dias. “Se o vendedor não consegue descontar, vai ter de vender menos para a JBS ou vender mais caro”, diz Jonathan Barbosa, presidente da Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul.

O problema, para os pecuaristas, é que a demanda também caiu, uma vez que a JBS tenta preservar o caixa — a JBS deu férias coletivas em Mato Grosso do Sul e, segundo a consultoria MB Agro, sua ociosidade aumentou devido à queda de 65% na escala de abates em um mês. “A leniência é só o começo do processo”, diz José Roberto Mendonça de Barros, diretor da MB Associados.

Além disso, a agência de classificação de risco Moody’s rebaixou a nota de risco do banco Original (que pertence à holding J&F) e da JBS, por achar difícil estimar qual será o impacto desses acontecimentos na situação de liquidez das empresas — o rebaixamento, por si só, já encarece o custo de financiamento. Por fim, segundo dois executivos, a empresa não pode mais recorrer ao Original, inclusive para a venda de carteiras de crédito, por ter atingido o limite legal de exposição ao mesmo grupo econômico (procurado, o Original afirma que não concede linhas de crédito às empresas do grupo).

Apesar de o livre acesso ao BNDES estar previsto no acordo com a Justiça, especialistas acreditam que vai ser difícil para a J&F conseguir financiamento no banco enquanto não ficarem claros eventuais prejuízos sofridos pela instituição em seus anos de apoio irrestrito à JBS. Em seus depoimentos à Procuradoria, Joesley descreveu o pagamento de propina para obtenção de linhas de crédito e aporte de capital na JBS. Mas não há detalhes, pelo menos por enquanto, das perdas geradas quando a JBS comprou o frigorífico Bertin em 2009. Na ocasião, a JBS diluiu os acionistas, incluindo o BNDESPar, empresa de participações do BNDES.

Apesar de estar à beira da falência, a Bertin foi avaliada em 12 bilhões de reais, e a família vendedora receberia 9 bilhões de reais em ações da JBS. Em uma transação complexa, a família Bertin acabou virando sócia da holding J&F em um fundo de investimento. Segundo a Receita Federal, numa autuação de fevereiro do ano passado no valor de 3 bilhões de reais, essa transferência de ações da empresa para a holding foi fraudulenta — a avaliação para os minoritários teria sido diferente da relação de troca de ações entre os dois donos de frigoríficos, segundo a Receita.

Há ainda outra novela paralela envolvendo os Bertin. Eles acusam os Batista de, em 2013, vender cotas que lhes pertenciam, avaliadas em 970 milhões de reais, por apenas 17 milhões de reais a um fundo offshore chamado Blessed, cujos acionistas seriam seguradoras de Porto Rico e Ilhas Cayman. Os Batista teriam falsificado a assinatura do patriarca, Natalino Bertin. Na versão dos Bertin, a Blessed seria controlada pela família Batista.

Os Bertin entraram com uma ação contra a JBS em 2013 e decidiram fechar um acordo em fevereiro de 2014. Segundo pessoas próximas aos Bertin, a família recebeu algumas centenas de milhões para encerrar o assunto — e nenhuma das partes deu satisfações aos investidores.

No ano passado, os irmãos Batista declararam no imposto de renda terem comprado as ações da JBS detidas pela Blessed, mas só comunicaram aos investidores oito meses depois, o que contraria as melhores práticas de mercado (a empresa diz que “cumpre os prazos da regulamentação vigente”). O que mais chamou a atenção foram as condições do negócio. Eles pagaram 300 milhões de dólares (pouco menos de 1 bilhão de reais pelo câmbio do período de aquisição), sendo apenas 15 milhões de dólares à vista, por uma participação que, anos antes, havia sido avaliada em 3 bilhões de reais. “As ações foram recompradas por uma fração ínfima do valor original, em uma empresa que só cresceu”, diz um gestor de fundo que aguarda a investigação da CVM.

EXAME apurou que o BNDES pediu satisfações à J&F sobre o assunto e que pode processá-la pela diluição danosa. No fim de maio, o banco criou uma comissão de apuração interna, comandada pelo diretor de controladoria Ricardo Baldin, em que técnicos do banco têm 45 dias para checar todas as transações feitas com a JBS. Procurado, o banco afirmou que não vai comentar assuntos relacionados à empresa até a conclusão desse trabalho.

O escandaloso caso de possível insider trading protagonizado pelos irmãos Batista às vésperas da divulgação da delação premiada dificilmente sairá barato. Eles terão de explicar à CVM por que venderam ações da JBS pouco antes de ser veiculada a notícia sobre a gravação da comprometedora conversa entre Joesley Batista e o presidente Michel Temer.

No dia 17 de maio, horas antes de a notícia ser publicada, os Batista deram a maior ordem de venda do mês, vendendo 35,2 milhões de reais — no mesmo dia, a tesouraria da própria JBS comprou o equivalente a 35 milhões de reais. É, portanto, uma forma de transferir o prejuízo com a queda das ações para os demais acionistas da empresa. Também no dia 17 a JBS comprou 1 bilhão de dólares em contratos de câmbio para apostar na valorização do dólar — o que aconteceu quando a gravação veio à tona.

É comum que produtoras de commodities, como a JBS, tenham mesas de operação bem equipadas para proteger seus resultados das esperadas oscilações de preços no mercado internacional. A da JBS, porém, sempre foi conhecida como uma das mais ativas. Um levantamento feito por gestores de fundos mostra que, nos últimos dez anos, cerca de 30% do lucro da JBS veio da mesa de operações, e não de alimentos. Mas a operação pré-delação foi grande demais até para os padrões da JBS.

Alguns bancos se recusaram a executar o negócio — um deles foi o francês BNP Paribas (o banco não comentou). No início de junho, um juiz de São Paulo determinou o bloqueio de 800 milhões de reais das contas de Joesley Batista enquanto a investigação sobre uso de informação privilegiada estiver sendo realizada. Quatro funcionários foram levados pela Polícia Federal para depor sobre as transações.

Quatro motivos fazem com que a JBS e o grupo possam sofrer menos do que as empreiteiras envolvidas na Lava-Jato. A empresa não depende de contratos públicos, no Brasil ou no exterior; seu negócio não é baseado em projetos que precisam de complexa cadeia financeira; a corrupção declarada estava concentrada em cerca de dez pessoas da alta cúpula da companhia — enquanto a Odebrecht, por exemplo, tinha um departamento dedicado à corrupção e negociou uma delação premiada que incluiu mais de 70 executivos.

O quarto motivo é que a J&F tem mais de 30 marcas, que não são associadas ao grupo de imediato pelos consumidores. Ainda assim, como no caso das empreiteiras, a empresa JBS enfrenta uma fabulosa crise de imagem. Pelo menos cinco gerentes e diretores pediram demissão no último mês. “Os funcionários dessas empresas começam a esconder o crachá”, diz Renato Almeida dos Santos, sócio da S2 Consultoria, especializada em combate a fraudes corporativas.

Sem campanha

O abalo nuclear na reputação do grupo causou danos numa das fundações de seu sucesso, a publicidade. Seus garotos-propaganda Tony Ramos e Fátima Bernardes suspenderam os contratos. Até o contrato com o ator americano Robert de Niro com a Seara está em risco — segundo duas pessoas com conhecimento do assunto, ele pode processar a empresa por dano de imagem, conforme cláusulas de seu contrato. Um executivo de uma agência de publicidade que atende o grupo diz que, por enquanto, não há “clima” sequer para campanha institucional. “Garoto-propaganda novo nem se fala, só se for um boi no pasto”, diz o publicitário. A JBS “não comenta os próximos passos de sua campanha de marketing”.

A ameaça de grandes redes varejistas pararem de comprar os produtos da empresa ainda não se concretizou — é difícil, segundo os varejistas, conseguir garantir a oferta de carnes e frangos, por exemplo, com outros fornecedores. A única rede de grande porte a cancelar contrato foi a pizzaria Domino’s. Empresas como McDonald’s, Walmart e Carrefour continuam avaliando o assunto. Nos Estados Unidos, a associação de pecuaristas R-Calf enviou uma carta no início de junho ao presidente americano, Donald Trump, pedindo que o país faça investigações sobre a JBS para apurar se a empresa praticou corrupção em solo americano (o que a companhia nega).

A JBS é o principal alvo, mas não o único, de credores e autoridades. A empresa de papel e celulose Eldorado, controlada pela J&F, foi obrigada a reabrir uma investigação interna — em abril, a empresa afirmou ter concluído que não havia irregularidades nas operações, mas foi desmentida pelo depoimento dos próprios controladores ao MP. José Carlos Grubisich, presidente da Eldorado, é investigado em uma operação da Polícia Federal, mas continua à frente da companhia. No fim de 2016, a empresa, altamente endividada, concedeu um empréstimo de quase 25 milhões de reais ao executivo — segundo pessoas próximas, parte do dinheiro foi usada para pagar advogados (a Eldorado diz que o crédito foi “aprovado formalmente”).

Em abril deste ano, um mês antes do escândalo dos Batista se tornar público, a Eldorado conseguiu “perdão” aos credores por ter rompido as cláusulas acordadas de limite de endividamento e pagar uma taxa extra para que eles não antecipassem os vencimentos das dívidas. Os fundos de pensão Funcef e Petros, que são acionistas da Eldorado e ficarão com parte do dinheiro da multa da leniência (1,8 bilhão de reais cada uma), querem aumentar a indenização, abrindo processos paralelos.

Outra empresa do grupo, a Âmbar Energia, tem se reunido com fundos de investimento em busca de estruturas de financiamento — a companhia investe em parques eólicos e tem uma usina de energia térmica e um gasoduto. Somadas as empresas do grupo, são 70 bilhões de reais em dívidas e cerca de 15 bilhões de reais em caixa. O grupo J&F contava com uma oferta de ações em Nova York para reduzir a dívida, mas a captação agora ficou inviável.

Para levantar recursos num cenário completamente diferente, a empresa começou a se desfazer do que pode. Em junho vendeu sua subsidiária na América do Sul à concorrente Minerva por 300 milhões de dólares. Está negociando a venda da Vigor com duas interessadas, a francesa Lactalis e a americana Pepsico. O grupo afirma a bancos que não quer se desfazer das participações acionárias detidas nos Estados Unidos — onde moram atualmente Joesley e a família.

Os fornecedores e clientes têm revisado suas operações com o grupo. “Há muita movimentação de empresas que não estão diretamente implicadas em investigações para identificar riscos”, diz Fabíola Cammarota, sócia do escritório de advocacia Souza Cescon. A vida pós-delação não vai ser fácil para os irmãos Batista — nem para quem faz negócios com eles.

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