Revista Exame

As pedras na passagem da Índia

Nos últimos anos, a economia indiana se tornou uma das mais vibrantes, mas para seguir sua rota de prosperidade o país terá de enfrentar seus carmas

Trânsito caótico: a índia é líder mundial em mortes no trânsito (Paulo Vitale/VEJA)

Trânsito caótico: a índia é líder mundial em mortes no trânsito (Paulo Vitale/VEJA)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

"Existe alguém em toda a Índia que não admire a China?” Quem primeiro formulou a pergunta foi o estudioso chinês Yi Jing, ainda no século 7. No primeiro milênio da era cristã, centenas de matemáticos e astrônomos indianos passavam temporadas do outro lado da fronteira num rico intercâmbio cultural, buscando absorver os avanços do conhecimento protagonizados pelo império chinês. Hoje, os motivos de inveja são o crescimento econômico sem precedentes e a riqueza que parece brotar do chão, mas a boa notícia para os indianos é que as coisas podem começar a se equilibrar em breve.

Depois de muitos anos comendo poeira, a Índia pode tomar a dianteira no ritmo de crescimento — pelo menos segundo as previsões de alguns economistas. De acordo com o banco Morgan Stanley, o PIB do país terá uma expansão média de 9% entre 2010 e 2020, ultrapassando o ritmo de crescimento da China, que tende a desacelerar. As previsões também são positivas para as décadas seguintes. A favor da Índia há um fenômeno conhecido como bônus demográfico, um período em que o contingente de pessoas em idade produtiva supera largamente o de idosos e crianças. Enquanto a população economicamente ativa na China cairá nos próximos anos, resultado da rígida política de natalidade, na Índia ela crescerá.

A ONU calcula que, em 2030, a China terá 873 milhões de pessoas entre 15 e 59 anos de idade e a Índia, 962 milhões. “A Índia viverá um período de abundância de mão de obra igual ao que ajudou a alavancar o crescimento chinês nas últimas décadas”, afirma Piyush Mathur, presidente, na Índia, do instituto de pesquisa Nielsen.

Os bons ventos parecem mesmo soprar na Índia. Em 2009, o número de pessoas com patrimônio superior a 1 milhão de dólares aumentou 50%, chegando a 126 000. Isso sem falar na explosão de consumo na parte de baixo da pirâmide social. O mercado de celulares local é o que cresce mais rapidamente em todo o mundo. Na Índia, existem hoje mais de 600 milhões de celulares conectados e, todo mês, 16 milhões são adicionados. Isso nunca aconteceu antes na história do setor de telecomunicações. Na briga particular dos países do Bric, a Índia não conta com recursos naturais abundantes, como Rússia e Brasil, nem com a base industrial da China. “A força indiana é o empreendedorismo e a inovação do setor privado”, diz o indiano Vikas Sehgal, engenheiro especialista em mercados emergentes da consultoria Booz & Company.

Os avanços tecnológicos conquistados por empresas indianas para atingir, principalmente, o mercado de consumidores de baixa renda já ganharam até mesmo um nome, “indovation”. O carro popular Tata Nano, o mais barato do mundo, é o grande ícone desse fenômeno. Em seu caminho rumo ao progresso, no entanto, os indianos têm seus carmas — alguns deles grandes o suficiente para colocar em dúvida as previsões mais otimistas. Recentemente, Amartya Sen, o indiano Nobel de Economia e uma das maiores autoridades mundiais em desenvolvimento, chamou a atenção para um dos maiores obstáculos ao crescimento — a péssima situação da educação. “O progresso em nossa taxa de alfabetização não é compatível com o nosso crescimento econômico”, disse Sen em um seminário em Nova Délhi. A Índia tem 270 milhões de adultos analfabetos, uma parcela da população incapaz de suprir a demanda futura por mão de obra especializada.


A falta de educação

Em Hyderabad, cidade na região central do país, a M. A. Ideal High School fica numa favela, mas oferece aulas de caratê, informática e futebol, além dos conteúdos obrigatórios. Longe da perfeição sugerida pelo nome, a M.A. Ideal High School, que cobra uma mensalidade de 3 dólares, pelo menos garante uma formação básica. Estima-se que o país reúna mais de 300 000 escolas de baixo custo como ela. Ao todo, elas atendem mais de 36 milhões de alunos, o que pode parecer muito, mas na Índia equivale a apenas 10% das crianças e dos jovens em idade escolar. O surgimento dessas instituições é consequência direta da ausência do Estado. Elas vieram socorrer pais desesperados por garantir a educação das crianças e dos jovens. Embora ajudem a aliviar a demanda de uma parcela da população, a proliferação dessas escolas está longe de ser a solução — a maioria delas não é sequer reconhecida pelo Ministério da Educação.

O governo, responsável por reverter essa situação, dedica a atenção — e a maior parte dos recursos — ao ensino superior, foco que ajudou o país a desenvolver uma série de setores de ponta, como o de tecnologia da informação. Mas o efeito colateral dessa decisão é que a educação primária foi negligenciada. Ao todo, a Índia aplica 3% do PIB em educação, metade do que investem países que se destacam nesse campo, como a França. Boa parte das escolas públicas indianas carece de itens básicos, como salas de aula e professores — em média, metade falta ao trabalho diariamente. A taxa de alfabetização é baixíssima entre a população adulta. Só 66% dos indianos sabem ler e escrever (no Brasil, o percentual é de 90%, na China, 93%). Um em cada três adultos analfabetos do mundo é indiano.

O buraco da infraestrutura

O subdesenvolvimento da Índia, visível a olho nu, obviamente não está restrito ao sistema educacional. Nas grandes cidades, a mistura de buzinas é caótica. Nas ruas, carros acelerados disputam o asfalto com um batalhão de motos e riquixás. No meio das pistas, ônibus param e seus passageiros descem, desafiando os veículos. Em todas as metrópoles do país, essa mistura confusa é uma cena comum — e perigosa. Desde 2006, a Índia é líder mundial em mortes no trânsito. Em 2008, as vítimas fatais chegaram a 118 200, mais de 13 mortes por hora. É quase o dobro da China, vice-campeã nesse ranking tétrico (o Brasil é quinto). Além de malconservadas e insuficientes, as estradas indianas operam acima de sua capacidade. Congestionamentos são tão recorrentes que a velocidade média de caminhões não passa de 35 quilômetros por hora, menos da metade da média nas estradas americanas.

A mesma situação crítica é encontrada em todas as áreas da infraestrutura. O país sofre com portos atravancados, apagões de energia e aeroportos lotados, uma realidade preocupante para quem ambiciona se equiparar a rivais como a China. A situação lá é tão ruim que é comum os visitantes brasileiros voltarem para casa achando que aqui a infraestrutura é boa. O governo indiano reconhece o problema. Seus investimentos no setor, que em 2000 correspondiam a 5% do PIB, no ano passado chegaram a 7,5%. A meta é atingir em breve 9%. Em 2009, foi feita a promessa de aumentar para 20 quilômetros a extensão das estradas asfaltadas diariamente. “Até agora, o governo conseguiu chegar à marca de 7 quilômetros por dia, o que já é um grande avanço”, diz Samiran Chakraborty, economista-chefe para a Índia do banco sul-africano Standard Chartered, lembrando que até 2008 o ritmo era de apenas 2 quilômetros diários. À medida que aumentam as obras, porém, cresce também o número de casos de corrupção envolvendo funcionários públicos e empresas privadas — outra saúva a minar o brilho da estrela emergente.


Carnaval da corrupção

Em agosto, dois meses antes da abertura em Nova Délhi dos XIX Jogos da Commonwealth, tradicional competição que reúne países da comunidade britânica, o evento já era destaque na imprensa. “Carnaval de Corrupção” foi a manchete da revista semanal India Today, que logo repercutiu em outros meios. Os gastos na construção de alojamentos e ginásios bateram todos os recordes de jogos anteriores. Os itens adquiridos para o evento, como kits de primeiros socorros e refrigeradores, tinham valor de compra muito acima do mercado. Um rolo de papel higiênico chegou a custar o equivalente a 93 dólares. Na Índia, casos de sonegação fiscal e suborno são comuns em todos os níveis da administração pública.

Uma pesquisa sobre corrupção realizada pela ONG Transparência Internacional mostra que 62% dos indianos já pagaram suborno ou tiveram de recorrer a um “contato” para resolver um serviço no setor público. No ranking dos países menos corruptos, também da Transparência Internacional, a Índia detém a 84ª posição. Ela só ganha da Rússia entre os países do Bric (o Brasil está em 75º lugar e a China, em 79º).

Apesar da péssima qualidade do ensino, da infraestrutura quase inexistente e da corrupção desenfreada, investidores indianos e estrangeiros seguem otimistas com o país. Eles argumentam que a Índia tem condições de se libertar de seus carmas. Um precedente importante é a abertura econômica e comercial iniciada na década de 90, algo que muitos consideravam impossível. As taxas que tornavam as importações proibitivas foram rebaixadas e as regras que inviabilizavam os investimentos estrangeiros foram parcialmente removidas. Caso consiga promover as reformas necessárias e engatar num período de crescimento ainda mais forte, é provável que a Índia passe a ser alvo de inveja de pelo menos uma parte dos chineses. Afinal, é bom estar num país em franca expansão econômica. Melhor ainda é viver essa fase de exuberância num ambiente de liberdade democrática.

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