No longo prazo, a pressão de investidores deve abrir espaço para mudanças mais radicais no estilo de gestão (Germano Lüders/Exame)
Luísa Granato
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h13.
Última atualização em 17 de dezembro de 2020 às 10h57.
A pandemia provocou um verdadeiro bota-fora dos anseios profissionais dos brasileiros. Até então, bater metas e estar comprometido com os objetivos da organização estava no topo das prioridades de empresas e funcionários país afora, segundo uma pesquisa da consultoria em recursos humanos Grant Thornton com mais de 2.000 brasileiros empregados em julho deste ano.
A quarentena e as angústias trazidas pelo isolamento social elevaram o bem-estar profissional para o centro das preocupações corporativas: para 30% dos entrevistados, as empresas precisam cuidar do bem-estar de seus funcionários, com foco especial em saúde mental. Na visão de quem entende do assunto, é uma mudança profunda nas relações de trabalho cujos efeitos deverão ser vistos em 2021 — com ou sem vacina. “Sempre que há uma crise, o contrato psicológico entre o empregado e o empregador entra em negociação”, diz Roberto Aylmer, professor na Fundação Dom Cabral em cursos de desenvolvimento de executivos.
Ao que tudo indica, a preocupação com a saúde mental deverá estar no foco das empresas nos próximos meses. Segundo uma pesquisa da consultoria AON, entre as prioridades do RH no cenário pós-pandemia estão a segurança dos funcionários (81% dos entrevistados concordaram com essa ideia) e o bem-estar integral da empresa (77%). Os programas de apoio à saúde mental criados na pandemia, como sessões de terapia virtuais, devem continuar: 32% das empresas consultadas vão seguir com esses investimentos; só 14% vão cortá-los.
Algumas empresas de grande porte no Brasil saíram na frente. A cervejaria Ambev criou em junho uma diretoria de saúde mental para lidar com as angústias dos funcionários. Com a missão está a psicóloga Mariana Holanda, que tem dez anos de Ambev e vê na medida uma quebra de paradigma numa companhia com passado de cultura de meritocracia sem canais para levar em conta o bem-estar dos funcionários. Entre as tarefas de Mariana na Ambev está criar uma cultura de aceitação de erros, um passo importante no desenvolvimento pessoal dos funcionários nessa nova visão da empresa.
“O caminho é longo. Não é algo que vai ser modificado de uma hora para outra”, diz ela. A concorrente Heineken também apostou nesse tipo de iniciativa para levantar o moral da empresa em meio à pandemia. Desde o começo do ano a cervejaria colocou à disposição dos 13.000 empregados no Brasil uma série de informações sobre saúde mental na intranet, além de uma equipe de especialistas para os casos mais graves, como o descontrole no consumo de álcool.
“Comunicamos o que consideramos como consumo responsável e mapeamos as pessoas que fazem uso excessivo, com acompanhamento. Se alguém está nessa situação, ele pode ‘levantar a mão’ e ser cuidado”, diz o médico Gustavo Locatelli, gerente de saúde corporativa da Heineken no Brasil.
O investimento das empresas em saúde mental da mão de obra vem num momento crítico ao financiamento para esse tipo de problema. Antes da pandemia, as empresas brasileiras já perdiam 78 bilhões de dólares por ano — algo como 5% do PIB — com a queda de produtividade de funcionários acometidos por doenças como depressão ou ansiedade.
“Se o gestor oferecesse ajuda, a pessoa teria menos risco de ficar longe do trabalho”, disse Sara Evans-Lacko, que pesquisa saúde mental na prestigiada universidade britânica London School of Economics (LSE), na 1a edição do Summit de Saúde Mental nas Organizações, evento virtual promovido pela EXAME em dezembro para discutir o assunto.
A crise econômica decorrente do distanciamento social deu mais gatilhos aos problemas emocionais — quem não surtou um pouco ao longo de 2020 com a perspectiva de ficar sem emprego ou de não conseguir dar conta das tarefas profissionais em meio aos percalços típicos do home office, como crianças chorando em casa ou o sinal do Wi-Fi que teima em cair justo no meio de uma reunião importante?
Para complicar ainda mais o cenário, os recursos públicos disponíveis para tratar os efeitos clínicos dessas angústias generalizadas foram deslocados para o tratamento das consequências da covid-19. Segundo um relatório de outubro da Organização Mundial da Saúde (OMS), a pandemia atrapalhou os cuidados com saúde mental em 93% dos 130 países avaliados.
Antes da crise sanitária, a OMS já vinha alertando os governos sobre a necessidade de elevar as despesas com o tema — em média, só 2% do orçamento público destinado à saúde. A expectativa é de números ainda menores pela frente.
O investimento em saúde mental dos funcionários pode ajudar o negócio a reter os funcionários por mais tempo — e atrair gente para o time. É a aposta da varejista online Mercado Livre, que no início de 2020 criou um programa chamado Well-Being Brasil para fazer uma espécie de “check-up diário” do bem-estar dos funcionários. Todo dia, os 4.470 empregados da varejista respondem a questionários online com perguntas como a frequência de atividades físicas realizadas e a disposição para desempenhar suas funções naquele dia. Gestores têm acesso aos dados de suas equipes.
Com essas informações, podem mudar rotinas caso alguém esteja com dificuldade. “É meu dever servir de modelo para o equilíbrio entre a vida e o trabalho”, diz Sofia Soldera, gerente de uma operação logística da varejista em Sorocaba, no interior paulista, por onde passam mais de 200 pessoas todos os dias. Como parte dessa filosofia de servir de exemplo à equipe, Sofia faz natação usando um benefício corporativo e segue à risca as dicas de saúde mental do Well-Being Brasil.
Sofia chegou à empresa neste ano, na expansão acelerada da varejista com o boom do comércio eletrônico — a equipe do Mercado Livre praticamente dobrou de janeiro para cá. O check-up da saúde mental dos funcionários ajudou a gestão do Mercado Livre a tomar decisões no trabalho remoto.
“O sistema democratiza as vozes internas. É um canal para ouvir mais de 4.000 pessoas de suas casas”, diz Patrícia Monteiro de Araújo, diretora de pessoas do Mercado Livre Brasil. O sistema parece estar dando certo. Numa pesquisa recente do Great Place to Work, consultoria global de recursos humanos, 97% dos funcionários do Mercado Livre disseram “se sentir bem-vindos” por lá; 92% acreditam que a empresa é o melhor lugar para trabalhar.
No longo prazo, a pressão de investidores deve abrir espaço para mudanças mais radicais no estilo de gestão. Em vez da cultura corporativa clássica, de chefes onipotentes, cada vez mais os funcionários deverão ter poder na tomada de decisão. Quem saiu na frente nessa descentralização conseguiu levar a pandemia com menos sustos.
Nos últimos quatro anos, a fabricante de bicicletas Caloi engajou os funcionários para entender como poderia inovar mais e criar um propósito para os trabalhadores da fábrica em Manaus e da sede em São Paulo.
“Na transição, abolimos o ‘top down’, em que só o presidente tomava decisões, e preparamos o ambiente para desenvolver lideranças que trabalhassem com autonomia. Os gerentes viraram responsáveis por projetos”, diz o presidente da Caloi, Cyro Gazola. Na pandemia, a tradição de decisões focadas no cliente e com autonomia facilitou a comunicação no home office. “A primeira reunião virtual que tivemos, para gerir a crise, fluiu tão bem que ficamos surpresos. Foi resultado de todo o trabalho feito antes”, diz Gazola.
A expectativa é de mais histórias como essa daqui para a frente — para o bem de funcionários e de suas empresas.