Obra da construtora Brookfield em São Paulo: uma das empresas que resistiram às mudanças propostas (Germando Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.
Assim como a moral, a transparência é um conceito que não para de se transformar — em suma, um caminho sem linha de chegada. No mercado acionário brasileiro, a evolução nesse quesito na última década foi fenomenal. Num país onde controladores tinham como hábito reinar absolutos, muitas vezes à custa dos acionistas minoritários, a criação do Novo Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo, em 2000, foi um sopro de ar fresco. Com regras mais claras de governança corporativa, empresas e investidores se deram bem. Investidores porque empresas mais transparentes valem mais.
Para as empresas, o benefício foi duplo: além da chance de aumentar seu valor de mercado, fazer parte do Novo Mercado é uma forma de polir sua imagem. Diante das transformações da última década, era natural que se quisesse dar o passo seguinte, para aproximar o mercado brasileiro dos padrões observados, por exemplo, nas bolsas europeias. De 2008 para cá, a BM&F Bovespa propôs uma série de mudanças que acabariam por levar a transparência das empresas brasileiras a um novo patamar. Mas eis aqui a má notícia — consultadas, as companhias disseram, praticamente em uníssono, “não, obrigado”.
O último capítulo do confronto entre empresas e a bolsa aconteceu em novembro. A BM&F Bovespa pretendia mitigar um dos principais problemas do Novo Mercado: a ausência de uma regra que determine com clareza quando o controle de uma empresa trocou de mãos e os efeitos disso para os investidores. De formas diferentes, essa dúvida já gerou situações de descontentamento por parte dos minoritários. Na compra da Tenda pela Gafisa, por exemplo, os acionistas se organizaram para discutir o formato da negociação — apesar de a Tenda ter mudado de mãos, a operação não foi considerada uma troca de controle, e os minoritários reclamaram por não ter recebido uma oferta por suas ações durante a negociação. A bolsa sugeriu criar regras claras para situações desse tipo. Pelo que foi sugerido, sempre que um acionista atingisse 30% de participação no capital de uma empresa, deveria lançar uma oferta pública pelas ações de todos os outros acionistas. É assim que acontece na Europa. Foram meses de conversas, até que, no dia 5 de novembro, saiu o resultado final da votação — não.
Com a recusa das empresas, fica mantida a regra atual: não existe regra alguma. Diante do vácuo deixado pela regulação, muitas empresas optaram por criar as “poison pills”, ou pílulas de veneno, para se proteger de aquisições via bolsa. Essas medidas ajudam a tornar inviável a troca de controle por meio do acúmulo de ações na bolsa. Há casos nitidamente exagerados, como o da Fibria. Por seu estatuto, quem acumular 25% das ações pode ser obrigado a fazer uma oferta aos minoritários equivalente a 150% da maior cotação da ação em 12 meses. Foi exatamente na revisão de distorções como essa que as negociações naufragaram. A bolsa pretendia estipular como base de cálculo para possíveis ofertas públicas o preço mais alto da ação nos últimos 12 meses.
Para as empresas, a regra criaria um risco — caso uma crise financeira como a de 2008 surgisse, o valor das cotações despencaria, criando uma série de presas fáceis na bolsa. Das 106 empresas do Novo Mercado, 60 votaram contra, entre elas a construtora Brookfield, a empresa de equipamentos Bematech e gigantes como BR Foods e JBS. “Queremos subir a régua, mas só naquilo que faz sentido econômico para a empresa e para os acionistas”, afirma Mônica Molina, diretora de relações com investidores da Bematech.
O que torna o revés mais problemático é o fato de não ter sido o primeiro — muito pelo contrário. Desde 2008, quando a bolsa decidiu que era hora de subir mais um degrau na escada da transparência, foram ouvidas 700 pessoas em dezenas de reuniões, audiências e fóruns. As propostas foram regularmente alvejadas. Para tornar os conselhos de administração mais isentos, a bolsa quis aumentar o número de conselheiros independentes. Não deu certo. Quis obrigar as empresas a criar comitês de auditoria. Não deu certo (as companhias não gostaram da ideia por considerar que aumentaria seus custos). Uma das únicas mudanças relevantes aprovadas pelas participantes do Novo Mercado foi a proibição de que o presidente de uma empresa acumule o comando do conselho de administração. Poucas companhias, entre elas a fabricante de cosméticos Natura e as empresas do grupo EBX, de Eike Batista, votaram a favor de todas as mudanças sugeridas. Em outro front, a Comissão de Valores Mobiliários empreendeu, no último ano, uma cruzada para divulgar a remuneração dos executivos de companhias abertas. Alegando que poria em risco a segurança dos funcionários, diversas empresas brigam na Justiça para não colocar a regra em prática. Uma guerra de liminares está em curso.
Dada a sequência de vitórias da turma do não, não chega a ser surpresa que muitos vissem ali uma reversão nos avanços da transparência na última década. Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e fundador da Gávea Investimentos, chegou a afirmar que sentia um cheiro de “Brasil velho” no ar. De acordo com a visão pessimista, a união de interesses que deu origem ao Novo Mercado dificilmente se repetirá. Depois de assimilar regras de governança e transparência ao longo de uma década e garantir, com isso, um bom preço extra nas ações de IPOs, as empresas podem ter concluído que não há mais van ta gem em investir em mudanças, justamente porque não haveria ganhos ime dia tos.
“Hoje, nossas empresas têm va lor de mercado semelhante ao observado nos principais mercados”, afirma Walter Mendes, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais. “A essa altura, novos investimentos em transparência e governança não mais representariam um bom custo-benefício.” Para os menos pessimistas, porém, esse é apenas um soluço num processo que não tem volta. Mesmo Armínio Fraga, que preside o conselho de administração da BM&F Bovespa, diz fazer parte desse grupo. “É preciso dar um tempo às companhias”, diz ele. “A proposta não era fazer uma nova revolução. Isso não é necessário, pois o mercado brasileiro já é avançado em termos de transparência.” Segundo os dirigentes da bolsa, o prazo para que as regras voltem a ser debatidas é de pelo menos três anos. Até lá, as empresas brasileiras terão de ser convencidas de que também pode valer a pena dizer sim.