Linhas de transmissão: intervenção no setor de energia (EXAME)
Da Redação
Publicado em 3 de outubro de 2012 às 06h00.
São Paulo - As últimas semanas têm sido de atípica abertura nas relações do governo federal com a iniciativa privada. Em agosto, foram anunciadas concessões de ferrovias e rodovias que somam 133 bilhões de reais. A continuação desse pacote é aguardada para este mês de outubro.
Há expectativa de que saiam os termos de privatização de portos, com a qual o governo espera diminuir 30% as tarifas de operação, e dos aeroportos do Galeão (RJ) e de Confins (MG) — três já foram concedidos em Brasília, Guarulhos (SP) e Campinas (SP). Desde 2003, quando o Partido dos Trabalhadores chegou ao Palácio do Planalto, nunca o governo se mostrou tão receptivo à participação do setor privado quanto agora.
As concessões na infraestrutura deixaram de ser tabu — embora a palavra “privatização” continue estigmatizada. Também já não há, como em um passado recente, ranger de dentes quando se fala em mudanças nas leis trabalhistas — propostas para tornar mais flexíveis regras nesse campo estão com a equipe do secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, desde o fim do ano passado. Somem-se ainda as providências para o corte no preço da energia elétrica e para a retomada
dos leilões de áreas para a exploração de petróleo e gás. A sequência desencadeada é, de fato, uma boa notícia: evidencia que a competitividade entrou de vez na agenda. A presidente Dilma Rousseff chegou ao ponto de fazer menção a esse conceito no discurso à nação proferido na véspera da comemoração da Independência. Isso é um avanço e tanto na agenda econômica — que passa a ser mais capitalista.
Mas essa é apenas uma parte da história. A velha face do governo, intervencionista e estatizante, permanece ativa. Nesse lado obscuro, em que a ideologia continua sobrepujando o pragmatismo, ainda proliferam a criação de empresas estatais e as medidas protecionistas no comércio exterior.
A abertura de estatais tem se dado até em setores em que as empresas privadas têm sabida competência. No anúncio do pacote de concessões, por exemplo, foi apresentada a Empresa de Planejamento e Logística, cuja missão será a criação de planos de longo prazo para o setor de transporte.
Mas, sem alarde, veio na mesma esteira também a Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias — e, com ela, já são 145 estatais da União, 40% mais do que em 2000. A nova estatal, apelidada de “Segurobras”, atuará para garantir a entrega no prazo das obras de infraestrutura previstas para os próximos anos.
Não seria um grande problema se a agência tivesse seguido o plano inicial: ser um fundo ao qual as construtoras recorreriam quando precisassem de garantias financeiras para entrar em licitações. Mas a Segurobras recebeu enxertos — e virou outra coisa. De fundo garantidor, ela se converteu numa seguradora apta a comprar outras seguradoras.
E não só isso: o texto da lei que a criou permite que a nova empresa atue em qualquer ramo, do seguro-garantia ao de automóveis. “O governo sempre acha que ninguém sabe fazer as coisas melhor do que ele”, diz Jorge Hilário, presidente da Confederação Nacional das Empresas de Seguros. “É por isso que a intervenção estatal não para de crescer.”
É preciso reconhecer o enorme avanço representado pelas concessões na área de infraestrutura. Afinal, o PT, partido da presidente Dilma Rousseff, sempre demonizou as privatizações. Isso prevaleceu enquanto a economia se mostrava aquecida. Com a redução do ritmo das atividades — a previsão é que o produto interno bruto avance apenas 1,5% neste ano — e com limitações de orçamento, o governo se deu conta de que não consegue tocar sozinho as obras necessárias para o país crescer mais.
“A situação atual forçou uma revisão das críticas às privatizações”, diz o economista Samuel Pessoa, da consultoria Reliance. “Isso é um sinal de evolução.” Mas, de acordo com ele, há uma diferença entre o modelo de privatização nos oito anos de governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o atual.
Nos anos FHC, quando estatais como Vale e Telebras viraram empresas privadas, o Estado assumiu uma tarefa eminentemente reguladora. “Agora, além da regulação, o governo busca manter um forte papel operacional”, afirma Pessoa. É o que explica a resistência, por exemplo, em repassar a gestão de grandes aeroportos a grupos privados.
Um time liderado pela ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, foi à Europa em setembro para consultar gestores de alguns dos principais aeroportos do mundo sobre a ideia de se associarem à Infraero para administrar terminais brasileiros — num arranjo em que os estrangeiros seriam minoritários nas empreitadas e a estatal brasileira se manteria como a dona da bola. Grupo algum se animou com a proposta.
O governo também age com o velho tique intervencionista em outras frentes, mesmo quando assume um objetivo elogiável, como o de tirar o Brasil do topo do ranking dos países de energia mais cara. Em setembro, anunciou o corte no preço da eletricidade para consumidores residenciais e industriais.
A medida, há muito aguardada pelos setores produtivos, vai baratear o insumo em 28% na produção industrial. A boa notícia perdeu parte do encanto em pouco tempo. O valor das empresas do setor elétrico na bolsa caiu 21 bilhões de reais em apenas dois dias. Isso porque as geradoras que estão com concessões por vencer até 2017 e quiserem antecipar a renovação dos contratos terão de se comprometer com a redução das tarifas.
O compromisso ocorreria em uma situação tida como desvantajosa: os novos preços vão remunerar apenas a operação e a manutenção de equipamentos, o que tende a afetar o lucro e até a capacidade de investimento das empresas.
No caso do setor do petróleo, a ingerência há muito causa distorções. A começar pela política de preços dos derivados, com o argumento de que o controle do preço do diesel e da gasolina é vital para manter a inflação sob controle. Por causa disso, a Petrobras fechou o segundo trimestre com prejuízo de 1,3 bilhão de reais, seu pior resultado desde 1999.
E não é apenas a estatal que sente os reflexos dessa política. Incapaz de competir com a gasolina, mantida com preço baixo a despeito do encarecimento do petróleo no mercado internacional — a alta acumulada desde junho é de 30% —, o etanol perde espaço. Neste ano, 41 usinas já fecharam as portas no país, segundo a União das Indústrias de Cana-de-Açúcar.
Segurar o preço dos combustíveis de forma artificial pode evitar repiques momentâneos da inflação, mas a medida não tem sustentação duradoura. “Não podemos nos tornar reféns de interesses de momento”, diz o economista Marcos Fernandes Gonçalves, da Fundação Getulio Vargas. “O Brasil precisa retomar uma agenda de médio e longo prazos.”
No petróleo está outra mostra de um governo com duas personas. O lado novo e bom: os leilões de blocos de exploração serão retomados em 2013, segundo anúncio feito em setembro — mas essa providência só veio após quatro anos de espera, com reflexo sobre a produção, que entrou em declínio devido ao esgotamento dos campos antigos.
Proteção às batatas
Há sinais de que o governo Dilma está pensando no longo prazo — e, mais uma vez, isso ficou especialmente palpável no pacote de concessões. Ficou claro também na maneira firme como agiu nas greves recentes de servidores públicos, resistindo à pressão por aumentos que pesariam nas contas públicas no futuro.
Por outro lado, as medidas míopes não cessaram. Um exemplo: o governo elevou em setembro a tarifa para a importação de 100 produtos — uma lista que vai do alumínio à batata — como forma de contrabalançar a alta das importações. Outra lista, com mais 100 produtos, é aguardada para outubro.
O governo argumentou que a medida não fere as regras da Organização Mundial do Comércio e que é uma resposta à desova de produtos que os países ricos, em crise, têm exportado para cá. Ainda que seja uma atitude reativa, o protecionismo é apenas um quebra-galho — e tem efeito inócuo para resolver os verdadeiros problemas de competitividade.
“Medidas como a elevação de tarifas sobre importados refletem o pensamento de curto prazo”, diz Simon Evenett, criador da Global Trade Alert, entidade com sede em Londres que monitora os níveis de abertura do comércio internacional. “Se realmente quer estimular suas empresas, o Brasil deve trabalhar para reduzir problemas como alto custo da burocracia e infraestrutura deficiente.”
Felizmente, o governo começou a mostrar uma face estimulante, que admite parcerias com a iniciativa privada e se dispõe a encarar entraves que precisam ser extirpados. Melhor para o país se esse lado bom prevalecer sobre o velho Brasil.