Revista Exame

Defensores de "verdades alternativas" são ameaça à democracia

Em tempos de radicalização, jornalistas podem ser vistos como inimigos. Mas a mídia tradicional ainda é o principal reduto contra as “verdades alternativas”

Trump no ataque: o presidente americano fez do confronto uma estratégia — ele passou a chamar a imprensa de “inimiga do povo” | Gary Hershorn/Photoshot/AGB Photo /

Trump no ataque: o presidente americano fez do confronto uma estratégia — ele passou a chamar a imprensa de “inimiga do povo” | Gary Hershorn/Photoshot/AGB Photo /

DC

David Cohen

Publicado em 25 de outubro de 2018 às 05h54.

Última atualização em 25 de outubro de 2018 às 05h54.

Normalmente, isso seria um bom sinal. Quando um órgão da imprensa é acusado, por alguns, de ser “de esquerda”, por outros de ser “de direita”, a conclusão mais provável é que ele esteja fazendo seu trabalho com o necessário nível de independência. É daí que vêm a reputação, o respeito e a força da mídia. Haverá sempre aqueles meios de comunicação de fato enviesados, mas seu alcance acaba se tornando restrito a pequenos grupos. Em tempos polarizados, essa lógica se quebra. Não é só o centro do espectro político que se esgarça, puxado pelos extremos. Também diminui o público disposto a ouvir e avaliar os diversos ângulos da realidade. A paixão domina as opiniões; e as pessoas se mostram menos dispostas a escutar ou ler notícias que contrariem suas convicções (ou mesmo meras simpatias).

É daí que vem o grande apelo das fake news. Sua produção, em larga escala, é um problema grave. Mas sua absorção, em níveis tão entusiasmados, é sintoma de um problema potencialmente ainda mais grave: um que transforma a diversidade em fragmentação, a diferença em ódio. Ao contrário do que muita gente pensa, o fenômeno das fake news não é novo. Ele tem a mesma idade da própria imprensa, criada em 1439 pelo alemão Johannes Gutenberg, adaptando a ideia de prensas que serviam para extrair óleo de azeitonas ou o sumo das uvas.

A escrita, até então um privilégio das elites, se disseminou por meio de panfletos — na democratização da produção de textos, eles eram uma versão dos meios digitais de hoje. Esses panfletos disseminavam, em sua maioria, notícias falsas. Às vezes, inconsequentes, como a história de uma mulher que viveu 14 anos sem beber nem comer, um sucesso na Inglaterra em 1611. Ou um livreto falando sobre a descoberta de um monstro com pernas de bode, corpo humano, sete braços e sete cabeças, publicado na Catalunha em 1654.

Em tempos de polarização, porém, os panfletos se tornaram armas mortais. Durante o conflito de 1618-1619 na França entre o rei Luís XIII e sua mãe, Maria de Médici (que regera em seu nome até então), os panfletos se tornaram tão virulentos que vários de seus autores acabaram sendo condenados à morte. A polarização contribuiu para que o rei seguinte, Luís XIV, estabelecesse o regime absolutista, colocando a imprensa sob rígido controle do Estado.

As fake news eram tão dominantes em todos os tipos de escrita que os acadêmicos tiveram de estabelecer o sistema de citações bibliográficas, no século 17, para comprovar a origem de suas informações. E os primeiros grandes jornais eram, também, repletos de notícias exageradas, panfletárias ou completamente descoladas da realidade.

Assim como ocorreu com os jovens macedônios que provavelmente inundaram o meio digital nos Estados Unidos com notícias falsas na eleição de Donald Trump, a motivação, nesses casos, podia ser meramente pecuniária. No episódio atual, os jovens simplesmente descobriram que notícias estapafúrdias, porém radicais, especialmente para simpatizantes de Trump, rendiam milhões de cliques, que se transformavam em dólares pela venda de anúncios. Para a imprensa marrom, os cliques eram a venda de exemplares. Como aconteceu com o jornal New York Sun. Em 1835, ele publicou uma série de artigos sobre as observações do astrônomo britânico John Herschel, que vasculhava a Lua com um telescópio num observatório da África do Sul. O astrônomo existia, mas os relatos de homens-morcegos, bodes azuis e templos de safira eram rematada ficção — e fizeram a circulação do jornal saltar de 8.000 para 19.000 cópias, tornando-o o maior diário do mundo.

Quando aplicadas à política, as fake news têm um efeito potencial de influir na realidade. O exemplo mais famoso é dos anos 1890, quando um correspondente do Morning Journal opinou que não haveria guerra entre Espanha e Estados Unidos pela posse de Cuba. O dono do jornal, William Randolph Hearst, cunhou uma de suas frases mais famosas: “Você forneça as fotos, eu trato de fornecer a guerra”. (Hearst foi a inspiração para o filme Cidadão Kane, de Orson Welles.) No livro 1984, escrito em 1948, o escritor britânico George Orwell imaginava um governo central tirânico com o poder de sistematicamente solapar qualquer verdade objetiva. Era uma denúncia da fábrica de fake news então em voga em regimes totalitários como o de Joseph Stalin, na então União Soviética. Esse risco, felizmente, desmilinguiu-se. Em seu lugar, porém, testemunhamos o mesmo processo sendo organicamente construído por milhões de compartilhamentos nas redes sociais.

Isso não quer dizer que as novas tecnologias não possam dar origem a avanços sociais espetaculares. A invenção da imprensa barateou a produção de conteúdo a tal ponto que, com o tempo, criou uma massa crítica intelectual e ajudou a formar o movimento renascentista dos séculos 16 e 17. É bem possível que nas próximas décadas o mundo experimente algo semelhante a um novo iluminismo. O contrário também é plausível: que vivamos uma nova era de trevas.

Há apenas sete anos, em 2011, festejavam-se as redes sociais como uma arma contra regimes opressores. O exemplo notável era a Primavera Árabe, série de protestos de jovens organizada pelas redes sociais que chacoalhou regimes autoritários na Tunísia, no Marrocos, na Síria, na Líbia, no Egito, em Bahrain. Na sequência, no entanto, ocorreu um refluxo. Na maioria dos países, no lugar dos regimes autoritários se estabeleceram outros regimes autoritários. Em comum, eles têm uma receita semelhante à de Luís XIV, o Rei Sol, que proclamava que o Estado era ele: o controle da imprensa.

Não à toa. A imprensa tradicional ainda é o principal reduto contra as “verdades alternativas”, as tentativas de grupos organizados de impor suas perspectivas a toda a sociedade. Levou muito tempo até que a imprensa se convertesse nessa espécie de guardião do diálogo, de fiscalizador do poder. Isso aconteceu na virada para o século 20, quando se descobriu um modelo de negócios sustentado por notícias confiáveis. Nos Estados Unidos, um dos pioneiros foi o New York Times, que em 1896, sob nova direção, passou a apostar em notícias sérias para o mercado financeiro. No Brasil, alguns dos principais jornais tinham seu sustento vinculado à divulgação de anúncios classificados (que ocupavam boa parte da primeira página).

Ocorre que, justo num momento em que são tão necessárias, as empresas de mídia enfrentam dificuldades pelo desafio imposto pelo mundo digital. Primeiro, novas tecnologias acabaram com antigas fontes de renda (como os classificados); além disso, a migração para o mundo digital esbarra na dificuldade em obter a mesma renda por publicidade. Estima-se que Google e Facebook absorvam hoje 90% das receitas publicitárias digitais nos países ocidentais.

Passo trágico: o jornalista saudita Jamal Khashoggi ao entrar na embaixada de seu país na Turquia. Pouco depois, ele seria morto | A News/REUTERS

Para complicar esse cenário, os ataques à imprensa têm recrudescido. O mais recente — e trágico — exemplo é o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, na Turquia. Khashoggi vivia nos Estados Unidos e colaborava para o jornal Washington Post. Foi à embaixada saudita em Istambul tirar documentos necessários para legalizar seu casamento e, ao que tudo indica, foi torturado e morto por agentes do governo na própria embaixada.

Infelizmente, não é um caso isolado. Há 12 anos, a jornalista Anna Politkovskaya, que reportava sobre a invasão da Chechênia por tropas russas, foi morta a tiros no elevador de seu prédio. Há um ano, Daphne Galizia, que investigava a corrupção em Malta, foi morta pela explosão de um carro-bomba perto de casa. Há sete meses, Jan Kuciak, cujas reportagens descreviam o envolvimento da máfia eslovaca com os negócios, foi assassinado em casa. No total, entre 1992 e neste ano, foram assassinados 1.949 jornalistas no mundo, de acordo com o Comitê de Proteção de Jornalistas, uma ONG sediada em Nova York.

Segundo Anne Applebaum, colunista política do Washington Post, esses assassinatos são consequência da evolução tecnológica das comunicações. Antes da internet, era mais fácil suprimir relatos contra os poderosos. Hoje, qualquer pessoa com um celular pode ler as denúncias feitas por jornalistas. A única forma garantida de calar os repórteres, portanto, é a morte. O assassinato pode ser o último recurso, mas não é o único. Khashoggi, por exemplo, sofria uma campanha diária de difamação em seu Twitter. De acordo com reportagem do New York Times, a campanha era orquestrada por uma “fazenda” de ativistas profissionais mantida pelo governo saudita. Khashoggi ficava mentalmente abalado todas as manhãs pelo tiroteio digital, segundo uma amiga.

O Brasil, felizmente, está muito distante desse cenário de horror. Mas esse contexto mundial torna ainda mais preocupante o ataque personalizado a jornalistas, com ondas de ofensas pelas redes sociais. Sem contar as agressões físicas a repórteres no cumprimento de suas missões. Os casos mais recentes foram contra a jornalista Patrícia Campos Mello, vítima de ameaças depois de sua reportagem na Folha de S. Paulo apontar indícios de uma campanha ilegal movida por empresários em favor do candidato a presidente Jair Bolsonaro pelo WhatsApp; e contra a revista VEJA, semanal da editora Abril, que publica EXAME, quando divulgou que uma ex-mulher de Bolsonaro havia prestado queixa de ameaças que este lhe teria feito.

Esse ódio irracional é alimentado pelo que provavelmente se trata de um cálculo político, em ambos os campos das campanhas presidenciais. Pelo lado do PT, há no programa de governo a menção à necessidade de regular a mídia, ideia que remete a discursos renitentes de controle social da imprensa. Pelo lado bolsonarista, há a constante referência a um suposto partidarismo da mídia, ao qual responde com ameaças veladas de futuro corte de verbas federais e, mais recentemente, com a formação de um canal direto com os cidadãos, via redes sociais. A inspiração clara para Bolsonaro é o modus operandi do presidente americano, Donald Trump, prolífico no Twitter… E nas ofensas a jornalistas.

Em agosto, mais de 300 jornais americanos, de todos os matizes, publicaram editoriais contra os ataques de Trump à imprensa (à qual chama de “inimiga do povo”). Na Turquia, o presidente Recep Erdogan, que tem perseguido jornalistas violentamente, disse que “a democracia não é possível com a imprensa”. Esperemos que não se chegue a esse ponto por aqui.

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