Escritório da Sonda, na Grande São Paulo: a empresa de TI investiu 1,5 milhão de reais em capacitação de profissionais (Germano Lüders/Exame)
Lucas Agrela
Publicado em 19 de dezembro de 2019 às 05h30.
Última atualização em 19 de dezembro de 2019 às 10h18.
A multinacional chilena Sonda tem um problema. A empresa, que é uma das maiores fornecedoras de serviços de tecnologia da América Latina, não tem conseguido encontrar gente suficiente para trabalhar no Brasil, um dos dez países em que atua.
Só em 2019 a companhia abriu 2.700 vagas por aqui, mas, mesmo num país com 12,5 milhões de desempregados — 11,8% da população ativa —, quase 600 vagas não foram preenchidas por causa da falta de mão de obra qualificada em tecnologia. Ou seja, de cada cinco postos abertos, praticamente um não havia sido ocupado até dezembro. É uma situação perturbadora, para dizer o mínimo, para um país do tamanho e da importância do Brasil.
E ela se repete em muitas empresas de tecnologia e em companhias de outras áreas que precisam de programadores, analistas de sistemas, cientistas de dados e especialistas em segurança da informação. Embora os cursos ligados a tecnologia formem 46.000 profissionais por ano, essa quantidade não é suficiente para atender as empresas do setor, que abrem 70.000 vagas por ano.
Com a economia voltando a se aquecer, puxada por investimentos privados e pelo consumo, a tendência é que a falta de mão de obra para trabalhar na área de tecnologia se agrave. Só nos próximos cinco anos, a expectativa é que sejam contratados 420.000 profissionais dessa área no Brasil.
A falta de mão de obra em tecnologia é um problema que gera distorções na economia. Em primeiro lugar, as empresas perdem produtividade e ficam menos competitivas em relação aos concorrentes de outros países. Sem profissionais disponíveis, as companhias têm de investir na formação de seu pessoal. No caso da Sonda, a empresa busca reverter a dificuldade oferecendo uma plataforma gratuita de cursos online, com 500 horas de conteúdo educacional. Neste ano, a Sonda também criou um centro de inovação na cidade de Joinville, em Santa Catarina, com investimento inicial de mais de 300.000 reais. Lá, dá apoio a projetos acadêmicos e a startups, e capacita profissionais para depois contratá-los. Das 20 pessoas em treinamento, cinco já foram empregadas.
A companhia chegou a criar até um curso de pós-graduação em ciência de dados junto com a Universidade Univille, com 18 alunos, para atender uma das áreas que mais crescem. O resultado é que, apenas em 2019, a Sonda investiu 1,5 milhão de reais em treinamento de funcionários, 128% mais do que no ano anterior. “Se as empresas não têm programas de capacitação, o custo da mão de obra só aumenta e é mais difícil preencher as vagas. Com o treinamento, os profissionais ficam mais tempo na empresa”, diz Caio Silva, vice-presidente de aplicações da Sonda.
A dificuldade a que o executivo se refere tem a ver com o segundo problema causado pela escassez de mão de obra. Para não perder profissionais, as empresas pagam salários mais altos, mesmo que nem sempre os funcionários tenham a formação adequada. Um estudo feito entre janeiro e outubro de 2019 com mais de 1 000 empresas, pelo site de empregos Trampos, mostra que os salários médios dos postos de trabalho com software — boa parte sem exigência de formação universitária — variam de 5.633 a 9.750 reais. Os valores estão acima do padrão salarial do Brasil: o rendimento médio de uma pessoa com ensino superior é de 4.836 reais, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
O programador mais bem pago é o que cria aplicações para dispositivos da Apple, como o iPhone, seguido pelo que desenvolve aplicativos para o sistema operacional Android, com salário médio de 9.588 reais. Mas esses são os valores médios. Com o avanço da carreira, os salários podem chegar a mais de 55.000 reais na faixa de comando das áreas de tecnologia. Para Anderson Ramos, diretor de tecnologia da Flipside, empresa brasileira de treinamento de segurança digital, os salários mais altos podem ser pagos apenas por grandes empresas. “A demanda eleva os salários de profissionais especializados a um patamar fora do alcance das pequenas e médias empresas. Por isso, elas buscam se diferenciar com uma cultura organizacional informal e com a possibilidade de trabalhar remotamente”, diz Ramos.
No caso das grandes companhias globais de tecnologia, investir na formação de programadores incentiva o desenvolvimento de aplicativos para seus produtos. Um exemplo é o da Apple, que desde 2013 tem um programa chamado Apple Developer Academy, em parceria com oito universidades e dois institutos no Brasil. O programa já formou 4.000 alunos, que criaram 3.000 aplicativos e fundaram 103 startups. Uma delas é a Kobe, do Rio Grande do Sul, que faz aplicativos para celular e tem projetos de realidade aumentada e virtual. Com 100 funcionários, a startup faturou 4,8 milhões de reais em 2019. “O programa dá a oportunidade de os estudantes perceberem que são capazes de criar aplicativos”, diz Shaan Pruden, diretora de relações com desenvolvedores da Apple.
Iniciativas desse tipo, entretanto, resolvem apenas uma pequena parcela do problema. A Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), que representa 66 grupos empresariais, estima que o déficit de profissionais no país chegará a 260 000 em 2024. Mesmo entre os funcionários formados, a qualificação ainda é baixa. Dos trabalhadores empregados em 2018, metade tinha formação superior completa ou incompleta e 46% haviam cursado apenas o ensino médio. Só 1% tem mestrado ou doutorado. O setor de tecnologia teve uma queda de vagas em 2016 em razão da crise econômica e de ajustes tributários, mas recuperou-se e voltou ao nível pré-crise, chegando a 845 000 trabalhadores e a uma participação de 2,9% no produto interno bruto. “O Brasil perde oportunidade de crescimento ao não formar mais profissionais de tecnologia. O setor precisará de mais profissionais para que dê um salto de faturamento de 100 bilhões de reais, em 2018, para 200 bilhões, em 2024”, diz Sergio Paulo Gallindo, presidente executivo da Brasscom.
Por falar em oportunidades, um segmento que hoje tem uma avenida de crescimento pela frente é o de empresas que oferecem cursos de capacitação. Nos últimos anos, o Brasil tem atraído escolas internacionais de programação que oferecem cursos intensivos. Uma delas é a espanhola Ironhack, com unidades em cidades como Paris, Berlim, Madri, Miami, Amsterdã, Lisboa e São Paulo. No Brasil, a escola formou 200 alunos desde que iniciou a operação em 2018. No mundo, são mais de 4 000 desde 2013, quando foi fundada. A escola prepara pessoas para o mercado de trabalho em cursos que duram de dois a seis meses. Ao fim das aulas, as empresas são convidadas a entrevistar os alunos, numa rodada de contratação. Segundo a escola, 90% deles saem empregados no Brasil, nível acima da média mundial, de 85%.
Para Ariel Quiñones, cofundador da Ironhack, as empresas devem dar mais atenção ao investimento em tecnologia. “Usar a tecnologia é um fator de diferenciação. A forma de conseguir isso é com profissionais qualificados contratados pela própria empresa, e não terceirizados”, afirma Quiñones. Além da Ironhack, estão presentes no Brasil escolas como a francesa Le Wagon e a argentina Digital House, ambas com cursos intensivos de tecnologia. Se de fato entrar num novo ciclo de crescimento mais acelerado, o Brasil vai depender cada vez mais desse tipo de curso para formar uma nova geração de trabalhadores em tecnologia. Não há tempo a perder.