Revista Exame

"Na Nestlé, aprendemos a fazer produtos baratos"

O belga Paul Bulcke, presidente mundial da Nestlé, conta como estratégias de negócios criadas em países emergentes se tornaram vitais também nos mercados maduros

Bulcke, presidente mundial da Nestlé: as pessoas podem viajar menos quando o dinheiro está curto, mas sempre poderão comer um chocolate (Sebastien Feval/AFP)

Bulcke, presidente mundial da Nestlé: as pessoas podem viajar menos quando o dinheiro está curto, mas sempre poderão comer um chocolate (Sebastien Feval/AFP)

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Da Redação

Publicado em 25 de agosto de 2011 às 14h17.

Em mais de 140 anos de história, a suíça Nestlé, maior fabricante de alimentos do mundo, com faturamento de 110 bilhões de euros, jamais precisou ou se interessou em criar produtos “populares” para atrair os exigentes consumidores da Europa e dos Estados Unidos, seus dois maiores mercados.

Durante esse longo período, a tradição e a qualidade dos chocolates e biscoitos fabricados pela empresa foram suficientes como argumento para que seus preços fossem superiores aos da concorrência. Mas a chegada da crise financeira mundial em 2008 parece ter abalado uma premissa que resistiu a duas grandes guerras mundiais.

Para impulsionar a venda de seus produtos em países desenvolvidos, os executivos da Nestlé tiveram de lançar mão de táticas criadas especialmente para mercados emergentes. “Um dos maiores desafios para nossas marcas durante a crise financeira recente foi segurar um consumidor que se tornou muito mais consciente a respeito de preços”, disse o belga Paul Bulcke, presidente mundial da Nestlé, em entrevista exclusiva concedida a EXAME durante uma visita ao Brasil, em dezembro.

Principal executivo da Nestlé desde abril de 2008, Bulcke conhece de perto diversos países que hoje servem como inspiração para a companhia. Passou 17 dos mais de 30 anos em que atua na empresa como expatriado, trabalhando em países como Peru, Chile, Equador e Portugal. Foi durante esse período que aprendeu a falar seis idiomas, entre eles o português. A seguir, os principais trechos de sua entrevista.

EXAME - Como a crise mundial afetou uma empresa com presença global como a Nestlé?

Paul Bulcke - A crise não foi dura apenas para a Nestlé, ela foi dura para todo mundo. E 2010 não foi um ano fácil. Tivemos de conviver com duas realidades bem distintas. Nos países emergentes, como o Brasil, a crise não foi sentida. Crescemos aqui, na Ásia e na África, regiões onde temos presença há muito tempo e que nos deram força para atravessar a turbulência. Nos Estados Unidos e na Europa, o baque foi grande. Essas regiões tiveram problemas porque viveram, por algum tempo, acima de suas possibilidades — e um dia a fatura chegou. Mas temos a vantagem de ser uma empresa de alimentos. Em épocas de crise, talvez as pessoas não façam tantas viagens de férias, mas continuam comendo chocolate. Por isso, tentamos reestabelecer o prazer dos pequenos luxos. A Dolce Gusto (linha de café e cafeteiras) é um exemplo. Lançamos a marca no pior momento da crise, com o conceito de “pagar por um momento de qualidade”. Funcionou. Hoje, a marca já fatura 400 milhões de euros na Europa.


EXAME - Qual o peso dos países emergentes no faturamento da Nestlé hoje?

Paul Bulcke - Já vendemos 35 bilhões de euros em países emergentes, o que corresponde a mais de 35% de nossa receita total. Somos hoje a empresa de consumo que mais vende nos mercados emergentes. Com o crescimento que se vislumbra para esses países, calculamos que eles podem representar 45% de nosso faturamento total em cinco anos. Em uma década, essa taxa poderá chegar a 60%. 

EXAME - Onde o Brasil se encaixa nessa estratégia?

Paul Bulcke - O Brasil é um dos países que mais vigorosamente cresceram para a Nestlé no mundo. É o terceiro maior mercado e, se continuar no atual ritmo, será muito em breve o segundo (atrás dos Estados Unidos e à frente da França, hoje na vice-liderança). Hoje, nosso crescimento no país é puxado não apenas pelas classes alta e média mas também pela população de menor poder aquisitivo. Passamos a atender esses novos consumidores e estamos colhendo os resultados. O que fizemos no Nordeste brasileiro é um bom exemplo. Desenvolvemos produtos em embalagens menores, para compra diária. Adaptamos os alimentos às necessidades nutricionais e a paladares específicos. Também decidimos fabricar os produtos lá mesmo, perto do mercado consumidor, o que reduz custos com embalagens para transporte e distribuição.

EXAME - No Brasil, a Nestlé tem mais de 140 marcas em 28 categorias de produtos. Onde mais há oportunidades no mercado brasileiro para vocês?

Paul Bulcke - De fato temos um bom portfólio, mas há muitas áreas com potencial pouco explorado. É o caso do setor de leite e águas. Por isso, fizemos algumas aquisições nessas áreas nos últimos anos. Uma plataforma que eu gostaria de ver crescer mais, no entanto, é a de produtos com a marca Nescafé. 

EXAME - É possível adaptar iniciativas criadas em países emergentes aos mercados desenvolvidos?

Paul Bulcke - Foi o que fizemos com os produtos batizados internamente de “PPP” (produto posicionado popularmente), que têm marketing, preço, comunicação e distribuição desenvolvidos de acordo com as necessidades de um consumidor emergente. Percebemos que esse tipo de estratégia poderia ser usado não apenas nessas regiões mas também para grupos de pessoas com características específicas, em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, temos um universo de 60 milhões de hispânicos, que falam espanhol e mantêm uma forte ligação com seus países de origem. Por isso, recentemente passamos a utilizar embalagens bilíngues e até criamos um portfólio de produtos “de origem”. Um exemplo é o chocolate em pó Abuelita. O mexicano que compra esse produto nos Estados Unidos não o vê apenas como um chocolate, mas como uma forma de se sentir próximo de casa. 


EXAME - E como esse tipo de estratégia foi empregado na Europa? 

Paul Bulcke - Investimos na certificação de nossas fábricas para produção de alimentos halal (fabricados de acordo com os preceitos da religião islâmica). Hoje, somos o maior produtor desses alimentos, com 85 fábricas certificadas em todo o mundo. Também lançamos produtos com faixas diferenciadas de preço para não perder clientes durante a crise. O Nescafé, por exemplo, ganhou diversos tipos e tamanhos de embalagens em países como Irlanda, Grécia e Espanha, com preços diferentes. Dessa forma, o consumidor mais comedido continua com a Nestlé, apenas comprando um Nescafé com preço inferior. 

EXAME - Algumas dessas iniciativas foram desenvolvidas para o Brasil?

Paul Bulcke - Sim. O Brasil, por sua dimensão e diversidade, permite fazer muitas coisas. O tamanho da população do Nordeste nos permitiu erguer uma fábrica de produtos regionais. Há projetos inéditos na história da companhia, como o barco que navega pelo rio Amazonas para vender nossos produtos à população ribeirinha. Algumas dessas iniciativas puderam ser “exportadas”. É o caso do sistema de vendas porta a porta, que foi levado para países na América Latina e na Ásia.

EXAME - Uma reportagem recente, do jornal inglês The Telegraph, afirmou que a Nestlé se preocupa tanto com sua longevidade que promove reuniões de planejamento para definir o que será feito nos próximos 50 anos. É verdade?

Paul Bulcke - (Risos) Não chegamos a tanto. Mas somos uma empresa de 145 anos e temos uma direção estratégica consistente. Acreditamos que nossa inspiração deva ser de longo prazo. Não vamos fazer uma estratégia hoje e mudar com o vento.

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