Revista Exame

Análise: na França, Marine ganha com mediocridade de rivais

Marine Le Pen, de extrema direita, se mantém à frente nas pesquisas para o primeiro turno das eleições presidenciais

Marine Le Pen: ao contrário de seu pai, Jean-Marie, ela quer chegar ao poder (Getty Images)

Marine Le Pen: ao contrário de seu pai, Jean-Marie, ela quer chegar ao poder (Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 25 de fevereiro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 1 de março de 2017 às 09h17.

São Paulo – As grandes democracias europeias e a americana estão em polvorosa. A Grã-Bretanha, que se aguentava há mais de 40 anos no cercado da União Europeia, “soltou as amarras” no referendo do ano passado e tomou o rumo do alto-mar, como diria Winston Churchill, e talvez o caminho dos vendavais. Tempestade é o que não tem faltado do outro lado do Oceano Atlântico desde que os Estados Unidos tiraram da cartola Donald Trump, um personagem que não se enquadra em nenhuma categoria conhecida da ciência política.

A França parece não querer ficar para trás. Nas primárias realizadas nos últimos meses para decidir os candidatos presidenciais, uma porção de cabeças caiu: à direita, a de Nicolas Sarkozy, que foi presidente de 2007 a 2012; à esquerda, a de François Hollande, socialista, que termina no desalento um mandato de cinco anos.

No início do ano, parecia que as coisas estavam claras para o primeiro turno das eleições presidenciais em abril e um muito provável segundo turno em maio. Dois candidatos se destacavam: François Fillon, ex-primeiro-ministro de Sarkozy, do partido Republicanos (a direita clássica); e Marine Le Pen, chefe do partido de extrema direita (para não dizer fascista) Frente Nacional, fundado por seu pai, o brilhante provocador Jean-Marie Le Pen. “Direita, volver”, portanto. E os socialistas? Após cinco anos de poder, eles estão em frangalhos, os olhos perdidos, o cérebro extenuado. Salvo alguma reviravolta, serão somente silêncio e ausência. Em compensação, há uma pessoa que está progressivamente ganhando terreno. Trata-se de Emmanuel Macron, nem direita nem esquerda, ou melhor, uma mistura de esquerda e direita. A conferir o que realmente é.

Mas, como o período é de grandes transformações, a França fez um esforço extra no final de janeiro. Foi quando Fillon caiu num buraco — um buraco bem fundo. O jornal satírico Le Canard Enchainé revelou que, quando ele era deputado, tinha uma assessora parlamentar. E quem era essa assessora? Uma dama chamada Penelope. Penelope quem? Penelope Fillon, a mulher de François, uma britânica distinta, doce e absolutamente inexpressiva.

Até aqui, tudo normal. Na França, os deputados podem escolher como assessores a esposa, um irmão, um filho... Mas é preciso que os parentes escolhidos realmente trabalhem. E foi aí que a coisa pegou. Depois de vasculhar por todos os cantos, a imprensa descobriu que ninguém jamais vira a doce Penelope na Assembleia Nacional. Ela estaria ocupada, talvez, em Angers, a região que Fillon representava? Infelizmente, ninguém jamais viu Penelope realizar a menor missão para seu marido por lá. Ela se ocupava dos cinco filhos, de seu castelo e de seus cavalos. No entanto, embolsou 500 000 euros em nove anos.

Do final de janeiro a meados de fevereiro, Fillon viu seu nome cair nas pesquisas de intenção de voto de 25% para 18,5%, ou da briga pelo primeiro lugar com Marine para uma disputa pela segunda colocação com Macron, aquele que não é nem de direita nem de esquerda. Por que as revelações sobre Penelope fizeram tanto estrago? Porque Fillon se apresentava como um homem íntegro.

Em 30 anos de vida política, nunca tinha aparecido nada suspeito sobre a pessoa dele. Fillon vinha dizendo que queria ser presidente para restabelecer a ordem, a pureza, a responsabilidade. Cristão fervoroso, parecia praticar com energia a virtude, o rigor, o recato, uma honestidade quase malsã. Basta ver sua figura, triste e nota zero em termos de fantasia. Mesmo diante das acusações, Fillon não se deixou abater e negou tudo. Mas a ferida sangra aos borbotões. Investigadores seguem apurando o que de fato aconteceu, enquanto uma rebelião interna de seu partido tenta forçá-lo a desistir. Até quando aguentará?

Marine e Fillon se dizem ambos de direita. Não a mesma. Fillon é da direita clássica e liberal. Ele lembra seus ancestrais, os ex-presidentes Georges Pompidou e Valéry Giscard d’Estaing, mas muito mais duro, mais austero, menos social. Com ele, será sangue e lágrimas. Até o Penelopegate, a toada era de moralidade, honra e religião, uma espécie de Charles de Gaulle — no tom, apenas. Para Marine, a equação é mais complexa. É verdade que ela tem os genes de seu pai, o fascista Jean-Marie. O mesmo horror dos imigrantes e o mesmo amor por regimes fortes.

Há, porém, uma grande diferença. Jean-Marie era um obcecado, mas não almejava o poder. Pelo prazer de uma boa tirada fascista (para não dizer nazista), ele destruía todas as suas chances. Marine não. Ela é uma política. Desde que assumiu a Frente Nacional, tem feito de tudo para tirar sua faceta demoníaca. Foi como se tivesse penteado e perfumado o partido. Mais: o ensinou a sorrir e a escutar os outros. Marine quer o poder. Do antissemitismo, que atingia níveis grotescos no tempo de seu pai, não se fala mais. Marine nunca se associou à caça aos homossexuais, que fazia a alegria de Jean-Marie.

Extremistas, uni-vos

Marine vai mais longe. Criatura fina e astuciosa, ela compreendeu que há um público vasto para seduzir, todos os antigos comunistas que se sentem esquecidos na França. Como uma típica populista, ela odeia a União Europeia, o que a aproxima de seu eleitorado popular. Ela encanta a França pobre ao lamentar que se deixem entrar em solo francês aquelas hordas de pessoas sujas, grosseiras e perigosas que são os imigrantes, sobre-tudo os árabes e os africanos.

Enfim, faz tempo que ela manifestou sua admiração pelo russo Vladimir Putin. Formidável a reviravolta feita por Marine. Retomando algumas questões fundamentais de seu pai, ela fez da Frente Nacional um partido que, com frequência, assume as feições da antiga extrema esquerda. Aliás, Fillon e outros grandes nomes da direita clássica classificam a Frente Nacional entre as formações de esquerda e, nesse sentido, detestável.

A dois meses do primeiro turno, Marine se mantém confortável na dianteira das pesquisas. O talento e a força de Marine não explicam por si sós essa escalada. Ela se beneficiou do descrédito que atinge a classe política. A verdade é que o socialista François Mitterrand, que governou de 1981 a 1995, foi o último estadista. Depois dele, a mediocridade prosperou com Sarkozy e Hollande. Se considerarmos os partidos de esquerda, os socialistas caíram no fundo do poço que há muito os atraía. Quanto aos de direita (meu Deus!), temos Fillon, o que deve fazer o general De Gaulle revirar no caixão.

Certamente, estamos diante de um fenômeno mundial. O que dizer do inquilino da Casa Branca? Na Europa, a maioria dos países também se entregou a indivíduos duvidosos. Na Itália, Matteo Renzi, que deixou o poder recentemente, era menos bufão, mas muito mais performático do que o palhaço Silvio Berlusconi, que governou em períodos variados entre 1994 e 2011. Mariano Rajoy, atual chefe do governo espanhol, apresenta semelhanças com o francês Hollande: ambos são totalmente monótonos.

Todos, os midiáticos e os sem graça, são igualmente medíocres. A chanceler alemã, Angela Merkel, é uma brilhante exceção. Talvez esse declínio maciço não se deva apenas ao acaso. Pode ser que as engrenagens da democracia, que funcionaram desde a sua origem, estejam obsoletas. Moles ou emperradas, elas já não saberiam levar em conta as necessidades vertiginosas e contraditórias de homens e mulheres, das sociedades, dos Estados, seus desejos, os caminhos do desenvolvimento. Será?

O certo é que vivemos um momento crítico. O ponteiro da balança oscila e pode nos levar para as trevas ou para a luz. Não é preciso um ditador para confrontar o que está escrito na Constituição. Basta, em certos casos, se lançar numa campanha populista, ocupar o trono do poder e, depois, continuar insultando povos e religiões, enquanto suas fotos assinando decretos desprezíveis aparecem em todos os lados.

É por essas e outras que hoje políticos como Viktor Orban, primeiro-ministro húngaro de direita, e Marine fazem a festa e pedem champanhe. Resta ver se Marine vai continuar brindando após o segundo turno em maio. As pesquisas juram que ela perde tanto para Macron como para Fillon, se ele durar até lá. É de esperar que os institutos de pesquisa franceses acertem em 2017 mais do que os americanos em 2016.

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