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Leia um trecho do novo livro Henry Kissinger

EXAME publica em primeira mão um trecho de "Ordem Mundial", último livro de Henry Kissinger, arquiteto da aproximação entre Estados Unidos e China nos anos 70

Ex-secretário de Estado dos Estados Unidos Henry Kissinger espera pelo início do funeral (Reuters/Kirsty Wigglesworth/Pool)

Ex-secretário de Estado dos Estados Unidos Henry Kissinger espera pelo início do funeral (Reuters/Kirsty Wigglesworth/Pool)

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Da Redação

Publicado em 3 de abril de 2015 às 06h00.

São Paulo - "Cada era tem seu tema central recorrente, um conjunto de crenças que explica o universo, que inspira e conforta o indivíduo ao oferecer uma explicação para a multiplicidade de acontecimentos que lhe são impingidos. No período medieval, era a religião. No Iluminismo, era a razão. Nos séculos 19 e 20, foi o nacionalismo combinado a uma visão da história enquanto força motivadora.

A ciência e a tecnologia são os conceitos que servem de guia para nossa era. Ao longo da história, a ciência e a tecnologia proporcionaram avanços sem precedentes para o bem-estar humano e também produziram armas capazes de destruir a humanidade. Mais recentemente, a tecnologia criou um meio de comunicação que permite contato instantâneo entre indivíduos ou instituições em qualquer lugar do planeta, assim como o armazenamento e a recuperação de enormes quantidades de informação ao toque de um botão.

Essa tecnologia está imbuída de que propósitos? O que acontecerá à ordem internacional, dado que a tecnologia se integrou de tal maneira à vida cotidiana a ponto de definir seu próprio universo como sendo o único relevante? A capacidade de destruição da tecnologia associada às armas modernas é tão imensa que um medo comum pode unir a humanidade para eliminar o flagelo da guerra?

Ou a posse dessas armas acabará por criar um mau presságio permanente? O alcance da comunicação fará cair as barreiras entre sociedades e proporcionará uma transparência de tal magnitude que os sonhos seculares a respeito de uma comunidade humana se tornarão realidade? Ou ocorrerá o oposto: a humanidade, em meio às armas de destruição em massa, transparência em rede e a ausência de privacidade, se projetará rumo a um mundo sem limites nem ordem, adernando em meio a crises sem compreendê-las? 

Não sou um especialista nas modalidades mais avançadas de tecnologia. Minha preocupação se restringe às suas consequências. Durante a maior parte da história, as mudanças tecnológicas se deram ao longo de décadas e séculos pelo acúmulo de avanços mínimos que aprimoravam e combinavam as tecnologias já existentes.

Mesmo inovações radicais, com o passar do tempo, podiam ser ajustadas a doutrinas táticas e estratégicas que já existiam previamente. As referências anteriores aos tanques eram os séculos do uso militar da cavalaria. Aviões podiam ser trabalhados conceitualmente como outra forma de artilharia.

Em que pese todo o poder de multiplicação proporcionado por sua força destrutiva, até mesmo as armas nucleares são, em alguns aspectos, uma extrapolação com base numa experiên­cia prévia. O que há de novo na era atual é o ritmo da mudança proporcionado pelo poder dos computadores e a expansão da tecnologia da informação para todas as esferas da existência.

Os computadores encolheram de tamanho, baixaram de custo e têm se tornado exponencialmente mais velozes a ponto de unidades de processamento de computadores avançados poderem agora ser inseridas em praticamente qualquer objeto — telefones, relógios, carros, aparelhos domésticos, sistemas de armas, aeronaves não pilotadas e no próprio corpo humano.

A revolução da computação é a primeira a reunir um número tão grande de indivíduos e processos sob a ação do mesmo meio de comunicação e a traduzir e rastrear suas ações numa única linguagem tecnológica. O ciberespaço — palavra cunhada na década de 80 como um conceito essencialmente hipotético — colonizou o espaço físico e, pelo menos nos grandes centros urbanos, começou a se fundir com ele.

À medida que tarefas que, na geração passada, eram prioritariamente manuais ou tinham o papel de suporte — ler, fazer compras, ter acesso à educação, falar com os amigos, fazer pesquisas, organizar campanhas políticas, gerenciar as finanças, cuidar da vigilância e estratégia militar — são filtradas pelo domínio da computação, as atividades humanas vão sendo cada vez mais transformadas em ‘dados’ e parte de um único sistema ‘quantificável, analisável’.

O Big Brother está de olho

Isso é verdade num grau ainda maior quando o número de dispositivos conectados atualmente à internet beira os 10 bilhões e está projetado para subir para 50 bilhões em 2020, e uma ‘internet das coisas’ ou uma ‘internet de tudo’ já começa a ser vislumbrada. Indivíduos munidos de smartphones (e estima-se que hoje sejam cerca de 1 bilhão de pessoas) agora dispõem de informação e capacidade analítica que estão além do alcance do que muitos órgãos de inteligência tinham na geração passada.

Grandes corporações que acumulam e monitoram os dados trocados por esses indivíduos dispõem de uma capacidade de influência e de vigilância que supera a de muitos Estados e mesmo a de potências mais tradicionais.

Governo algum, mesmo o mais totalitário, foi capaz de impedir o fluxo ou de resistir à tendência a transferir cada vez mais suas operações para o domínio digital. Como tudo isso afeta a ordem internacional? O mundo contemporâneo herda o legado das armas nucleares, que têm a capacidade de destruir a vida civilizada.

Porém, por mais catastróficas que sejam suas implicações, seu significado e sua utilização ainda podem ser analisados em termos de ciclos separáveis de paz e guerra. Já a internet abre possibilidades inteiramente novas. O ciberespaço desafia toda experiência histórica. As ameaças que emergem do ciberespaço são nebulosas e indefinidas. Muitas vezes é difícil identificar seus autores.

A natureza das comunicações em rede, com sua capacidade de tudo impregnar e penetrar — nos setores sociais, financeiros, industriais e militares —, tem apresentado aspectos incrivelmente benéficos. Mas esse processo de digitalização também aumentou as vulnerabilidades e atropelou a maior parte das regras e dos regulamentos (e, na verdade, a compreensão técnica de muitos empenhados em sua regulamentação).

Antes da era da informática, o poderio das nações ainda podia ser aferido por meio de uma combinação de efetivos humanos, equipamento, geografia, economia e moral. Havia uma clara distinção entre períodos de paz e de guerra. As hostilidades eram desencadeadas por acontecimentos definidos e praticadas por meio de estratégias para as quais alguma doutrina inteligível havia sido formulada.

A tecnologia da internet, porém, não tem se deixado enquadrar por estratégias ou doutrinas — pelo menos até o momento. Na nova era, existem capacidades para as quais ainda não há nenhuma interpretação comum. Entre os que a utilizam existem poucos limites — se é que existem — no sentido de definir restrições tácitas ou explícitas.

Quando pessoas de filiação ambígua são capazes de empreender ações cada vez mais ambiciosas e de maior penetração, a própria definição de autoridade do Estado pode se tornar ambígua. A complexidade é aumentada pelo fato de que é mais fácil articular ataques informáticos do que se defender deles, encorajando possivelmente uma postura ofensiva na construção de novas capacidades.

O perigo é multiplicado pela inexistência de acordos internacionais para os quais, mesmo que venham a ser firmados, não existe nenhum sistema capaz de aplicar penalidades. Um laptop pode produzir um fato de consequências globais. Um agente solitário dotado de poder informático suficiente pode ter acesso ao ciberespaço para desativar ou potencialmente destruir infraestruturas vitais, agindo a partir de uma posição de quase completo anonimato.

Redes elétricas podem ser levadas a sofrer pane e usinas de energia podem ser desligadas por meio de ações de fora do território físico de uma nação (ou pelo menos de seu território da forma como é compreendido em termos convencionais). Um grupo clandestino de hackers já se mostrou capaz de penetrar em redes governamentais e difundir informações sigilosas numa escala grande o bastante para afetar a conduta diplomática.

Um ataque informático apoiado por um Estado conseguiu interromper e atrasar as atividades nuclea­res do Irã, num grau, segundo alguns relatos, que rivaliza com os efeitos de um ataque militar limitado. O ataque da Rússia dirigido contra a Estônia em 2007 paralisou as comunicações do país durante dias. Tal estado de coisas, mesmo que temporariamente vantajoso para os países avançados, não pode se prolongar de forma indefinida. As razões são claras.

O caminho rumo a uma ordem mundial pode ser longo e incerto, porém nenhum progresso significativo será possível se a internet, um dos elementos de maior penetração da vida internacional, for excluída de qualquer diálogo sério. É altamente improvável que todas as partes, especialmente aquelas moldadas por tradições culturais diferentes, cheguem de forma independente às mesmas conclusões a respeito da natureza e dos usos permissíveis de suas novas capacidades invasivas.

É essencial que se promova alguma tentativa de mapear uma percepção comum da nova condição em que nos encontramos. Na ausência dela, as partes continuarão a operar com base em instituições separadas, aumentando muito as chances de um resultado caótico.

Na ausência de alguma articulação de limites e de um acordo em torno de metas de mútua contenção, uma situa­ção de crise tem grande risco de ocorrer, mesmo que não intencionalmente. Em resumo, o próprio conceito de ordem internacional pode estar sujeito a pressões crescentes.”

Henry Kissinger foi secretário de Estado de 1973 a 1977. Em 1973, ganhou o Nobel da Paz pela retirada americana do Vietnã. Ainda nos anos 70, promoveu a aproximação com a China e a redução das tensões com os soviéticos. Depois de sair do governo, escreveu mais de uma dezena de livros

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