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Água no chope alemão?

Um novo livro na Alemanha esquenta o debate sobre a saúde da maior economia da Europa e questiona as ideias dos defensores da austeridade


	Porto de Hamburgo: as exportações alemãs para União Europeia, China e Rússia caíram
 (Fabian Bimmer/AFP)

Porto de Hamburgo: as exportações alemãs para União Europeia, China e Rússia caíram (Fabian Bimmer/AFP)

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Da Redação

Publicado em 3 de novembro de 2014 às 05h00.

São Paulo - O economista Marcel Fratzscher, presidente do centro de estudos DIW, com sede em Berlim, tem uma maneira peculiar de iniciar suas palestras na Alemanha. Para reter a atenção do público já na largada, Fratzscher começa sua fala com dois questionamentos.

Primeiro pergunta qual é o país da Europa que, nos últimos anos, criou milhares de vagas de trabalho, ganhou participação em importantes mercados internacionais e acumulou notáveis superávits nas contas públicas, mesmo quando quase todos os vizinhos estavam em um mar de lama.

Na plateia, poucos costumam vacilar. A resposta certa é a Alemanha. Fratzscher segue, então, para a segunda pergunta: que país tem níveis de investimento inferiores aos de vários outros membros do bloco europeu, registrou crescimento médio inferior ao da União Europeia ao longo da década passada e cujos salários nem sequer acompanharam a inflação em seis dos últimos dez anos? Grécia? Espanha? Itália? A resposta certa, geralmente para surpresa dos presentes, é, de novo, a todo-poderosa Alemanha.

Ao publicar Die Deutschland-Illusion (“A ilusão alemã”, numa tradução livre), no fim de setembro, Fratzscher conseguiu colocar suas indagações a respeito do vigor da economia alemã no topo do debate público. O livro está entre os mais comentados dentro e fora da Alemanha nas últimas semanas.

Para a sorte do autor, o lançamento coincidiu com o anúncio de dados negativos da economia, que acabaram aumentando ainda mais a repercussão do livro. No dia 7 de outubro, o Fundo Monetário Internacional diminuiu a previsão de crescimento do país de 1,9% para 1,4% para o ano de 2014, depois de vários sinais de enfraquecimento da produção industrial.

Uma das principais causas é a queda das exportações, provocada pela cambaleante União Europeia, pela beligerante Rússia e pela China, agora em marcha mais lenta. No dia 14 foi a vez de o próprio governo alemão rebaixar a estimativa de crescimento de 1,8% para 1,2% — mais pessimista do que o FMI.

Embora esses dados conjunturais tenham ajudado a colocar fogo no debate, os pontos levantados por Fratzscher miram questões de mais longo prazo. Para ele, o maior problema da economia alemã é a queda da taxa de investimento, que saiu de 26% do PIB em 1990 para os atuais 17%, percen­tual menor do que o registrado na França e nas combalidas Espanha e Itália.

Na sua visão, o governo não está fazendo a sua parte. “O investimento público em infraestrutura na Alemanha é um dos mais baixos entre todos os países industrializados. Se repetir essa receita por muito tempo, o país deixará escapar o sucesso que teve até agora”, diz Fratzscher.

Nos últimos anos, o investimento estatal tem sido de 1,6% do PIB, abaixo da média da União Europeia, que está em 2,2%. Toda essa economia tem se refletido na qualidade da infraestrutura.

Estima-se que a necessidade não atendida de investimentos anuais na Alemanha seja de 4 bilhões a 7 bilhões de euros — 500 milhões de euros só nas rodovias, 300 milhões nas hidrovias e 260 milhões nas ferrovias. Mas esse nem é o ponto central.

O mais revelador disso tudo não são os valores. Numa economia de 2,5 trilhões de euros, a conta para voltar a ter uma infraestrutura impecável é baixa, cerca de 0,5% do PIB. O que exaspera críticos como Fratzscher é a posição da chanceler Angela Merkel. Ela se nega a aumentar os gastos, o que poderia estimular o crescimento.

Essa também é a preocupação de Christine Lagarde, a atual diretora-gerente do FMI. A recuperação da Europa tem sido lenta. A Itália voltou a entrar em recessão no segundo trimestre deste ano e, para Lagarde, o aumento dos investimentos do governo alemão seria muito bem-vindo.

Um plano ousado de recuperação e expansão da infraestrutura alemã elevaria as estimativas para o PIB no curto prazo, aumentaria a demanda por serviços de empresas de todo o bloco, que estão desesperadamente à procura de novas obras, criaria mais empregos e tornaria a maior economia da Europa ainda mais competitiva no futuro, certo?

Não na visão de Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças alemão. Enquanto o FMI e o próprio governo refaziam suas previsões para o PIB, Schäuble anunciava um orçamento equilibrado para os próximos três anos.

Para desespero dos defensores de políticas anticíclicas, a Alemanha acaba de anunciar planos que não preveem a contratação de novos créditos, a primeira vez que isso acontece desde o fim da década de 60.

Na opinião do governo Merkel, a situação exige cautela, não arroubos que aumentem as dívidas. Embora o barulho feito pelo livro de Fratzscher seja grande, a maioria dos eleitores e muitos dos economistas mais renomados do país têm dado apoio ao governo. Entre os motivos estão até questões demográficas.

“Em apenas 15 anos, os últimos remanescentes da geração baby boomer, os milhões de alemães nascidos de 1946 a 1964, vão querer se aposentar e causarão uma enorme pressão sobre as finanças públicas. Com essa perspectiva, seria irresponsável acumular dívidas”, diz Hans-Werner Sinn, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica, de Munique, e um dos economistas mais respeitados do país. 

O sonho americano

Em sua defesa, o governo tem falado em incentivar o investimento privado, mas também isso não tem sido fácil. “Enquanto a demanda global, especialmente a europeia, não se recuperar, a parte da indústria alemã voltada para a exportação não precisa investir”, diz Oliver Rakau, economista do Deutsche Bank.

As boas oportunidades de negócios, hoje, estão bem longe, principalmente no mercado americano. A multinacional alemã Basf, a maior do mundo no setor químico, anunciou que seu maior investimento da história, de 1 bilhão de euros, será feito nos Estados Unidos.

Recentemente, a montadora BMW informou que até 2016 sua fábrica na Carolina do Sul, no sudeste americano, será sua maior operação. Tanto a Basf como a BMW estão fazendo bem seu papel de montar e expandir unidades onde encontram as melhores condições — e quanto a isso, obviamente, não há o que dizer.

Mas a decisão de investir fora revela, em parte, o momento atual da economia alemã. Enquanto o preço da energia segue em queda nos Estados Unidos por causa da exploração do gás de xisto, na Alemanha os valores vão na direção oposta. Em comparação com os patamares de 2007, o preço da energia elétrica para a indústria subiu 20%.

A causa é nobre — o aumento dos subsídios para fontes renováveis —, mas isso se traduz em menos competitividade, pelo menos no curto prazo. Não é que os alemães estejam desesperados, é bom que se diga. Seu país continua sendo um dos mais prósperos do mundo.

Com o desemprego em apenas 5,3%, não faltaram motivos para brindar na Oktoberfest deste ano. Mas fica a pergunta: será que a situação estará tão propícia à festa nos próximos anos?

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