Revista Exame

Fiat e Renault: a união faz a força

As montadoras Fiat Chrysler e Renault tentam criar um grupo que fature 170 bilhões de euros e possa liderar a corrida dos carros elétricos e autônomos

 (Germano Lüders/Exame)

(Germano Lüders/Exame)

JE

Juliana Estigarribia

Publicado em 6 de junho de 2019 às 05h39.

Última atualização em 25 de junho de 2019 às 15h28.

Na indústria automotiva, tamanho sempre foi documento. Cem anos atrás, a Ford atingiu em dez anos a marca de 1 milhão de unidades do Modelo T, primeiro carro a ser produzido em larga escala. A General Motors vendia mais de 1 milhão de carros por ano na década de 50, quando era a líder mundial. Hoje, Toyota e Volkswagen vendem, cada uma, 10 milhões de veículos ao ano. As montadoras cresceram para dar conta de fabricar carros cada vez mais modernos e eficientes. Mas nunca houve um momento como o atual, com a chegada, de uma só vez, de veículos elétricos, autônomos e conectados. É uma revolução cercada de dúvidas, mas com uma certeza: quem quiser ficar na liderança precisará investir, e muito. Um caminho óbvio é juntar forças. E o mais emblemático movimento nesse sentido foi feito na última semana de maio, quando a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e a Renault anunciaram uma possível fusão.

Pelo acordo proposto, o novo conglomerado pertenceria 50% aos acionistas do grupo ítalo-americano FCA e o restante aos da francesa Renault. A promessa é a criação da terceira maior montadora do mundo, com faturamento estimado em quase 170 bilhões de euros, resultado operacional de 10 bilhões de euros e vendas de 8,6 milhões de unidades por ano. De um lado, a Fiat tem forte atuação nas Américas, sobretudo nos Estados Unidos, onde entrou de cabeça em 2014 após a fusão com a Chrysler, criando o grupo FCA. Do outro, a Renault continua apresentando bom desempenho na Europa, além de ser uma das mais avançadas no segmento de veículos elétricos, e isso pode acelerar os planos da Fiat no desenvolvimento de produtos na área. No Brasil, o casamento resultaria em uma participação imediata de mercado de quase 30%, com fatias relevantes nas categorias de automóveis de entrada e dos rentáveis utilitários esportivos (SUVs), em que a marca Jeep, da FCA, lidera.

No caminho da fusão há dois desafios gigantescos. O primeiro é costurar um acordo que contente acionistas das duas partes. As bases das negociações não estão muito claras e sofrem resistência em várias frentes. Montadoras são vistas como símbolos de orgulho nacional, e uma fusão tende a sofrer oposição de políticos conservadores tanto na Itália quanto na França. O governo francês, dono de 15% da Renault, declarou apoio condicional à união, contanto que a nova empresa mantenha os empregos e as fábricas locais. Por trás do governo está a pressão dos sindicalistas franceses. Na Itália, o governo também deu sinais de que apoia a fusão, mas chegou a aventar sua participação no bloco de controle da nova empresa. A FCA, controlada pela família Agnelli, fundadora da Fiat, não tem o governo italiano como acionista. Há um terceiro país com interesse direto nas negociações: o Japão. O governo japonês é sócio da Nissan, que há 20 anos tem uma parceria produtiva com a Renault e com outra montadora japonesa, a Mitsubishi. A participação da Nissan na eventual fusão da Renault com a Fiat ainda não está clara, mas o Japão, como dono de 15% da montadora francesa, teria 7,5% da nova companhia, de acordo com a proposta inicial.

O segundo desafio, na eventualidade de uma aprovação, é fazer funcionar uma empresa com 400.000 funcionários e 19 marcas que vão da simplona Lada à luxuosa Maserati. O conselho de administração da Renault se reuniria na terça-feira 4 de junho para negociar os termos iniciais do acordo, um dia depois do fechamento desta reportagem de EXAME. Para persuadir o governo francês, a Fiat prepara uma proposta com um plano de preservação de empregos. Analistas acreditam que dificilmente haverá fusão de marcas no caso de um acordo, inclusive com a manutenção da concorrência direta em algumas categorias, principalmente as de entrada — onde no Brasil estão o Kwid, da Renault, e o Mobi, da Fiat.

É uma costura complexa. Quanto menos união, menor a capacidade de conseguir sinergias e de melhorar a eficiência na fabricação, distribuição e comercialização. A FCA calcula que as sinergias poderão chegar a 5 bilhões de euros, valor que tende a diminuir à medida que concessões sejam feitas. Pela proposta inicial, a nova empresa teria ações negociadas nas bolsas de Nova York, Milão e Paris. “Fusões podem trazer os maiores benefícios, mas são mais difíceis e complexas. Parcerias são menos arriscadas, mas tendem a ter ganhos limitados”, diz Marcelo Cioffi, sócio da consultoria PwC Brasil e especialista no mercado automotivo.

As duas montadoras têm a seu favor um bom histórico de fusões e parcerias, algo raro no mercado automotivo. Pelo lado da Fiat, a importância da consolidação foi vista há uma década pelo ex-presidente Sergio Marchionne, que liderou o processo de junção com a Chrysler. Do lado francês, Carlos Ghosn, ex-presidente da aliança Renault-Nissan, deu a largada à era de grupos globais há 20 anos. Marchionne morreu no ano passado, vítima de uma infecção hospitalar — ele tinha a saúde combalida, entre outros fatores, pelo excesso de trabalho e de estresse na liderança de um grupo dividido entre a Europa e os Estados Unidos.

Ghosn, por sua vez, está preso há seis meses em Tóquio, acusado de mau uso dos recursos da companhia. Sua responsabilidade ainda será julgada, mas especialistas de gestão têm apontado as dificuldades hercúleas que encarou ao liderar uma empresa dividida entre a Europa e a Ásia, tendo de aliar interesses dos acionistas, dos governos e de seus executivos. “Marchionne e Ghosn sempre procuraram fazer alianças que ampliassem o volume e a capacidade de inovação de suas empresas”, diz Paulo Cardamone, sócio da consultoria Bright Consulting, especializada no mercado automotivo. Não há notícia de que Ghosn e Marchionne tenham conversado sobre uma parceria e é pouco provável que duas personalidades tão solares pudessem trabalhar junto. Ironicamente, sua saída de cena talvez possibilite a concretização do futuro que eles ajudaram a conceber.

Associações em alta

As montadoras têm unido forças para fazer frente ao novo momento do mercado automotivo. A indústria global de carros está repensando seu modelo de negócios com as legislações mais rígidas dos países acerca das emissões de poluentes, da introdução de conceitos de indústria 4.0 na produção, da inteligência artificial e de mudanças de hábitos do consumidor. Em 2018, a estimativa é que as vendas de veículos elétricos tenham atingido 2,1 milhões de unidades globalmente, alta de 64% sobre o ano anterior, num mercado em que as montadoras tradicionais disputam espaço com as novatas, como a Tesla, do empreendedor americano Elon Musk, e a chinesa BYD, uma fabricante de baterias.

As associações entre empresas vêm crescendo. Um dos casos mais recentes envolve o anúncio da Ford e da Volkswagen, em janeiro, de uma parceria para o desenvolvimento de projetos. Hyundai e Audi também anunciaram em 2018 uma colaboração para o desenvolvimento de carros movidos a hidrogênio. Em março, a histórica rivalidade entre as alemãs BMW e Daimler (dona da marca Mercedes-Benz) caiu por terra com o comunicado de uma colaboração na área de veículos autônomos. “A parceria com a BMW é um bom exemplo de como é difícil para as empresas desenvolverem sozinhas essas novas tecnologias, que demandam muito investimento e esforço”, afirma Philipp Schiemer, presidente da Mercedes-Benz na América Latina. “Cada vez mais veremos esse tipo de cooperação, o que pode incluir companhias de outros segmentos.”

Elon Musk: a Tesla é uma das novatas a ameaçar as grandes montadoras | Eduardo Munoz/REUTERS

A transição para híbridos e elétricos tende a provocar mudanças também na cadeia de suprimentos. Um motor a combustão tem cerca de 1.400 componentes; um modelo a bateria, 200 peças. Nesse contexto, as fornecedoras de tecnologias também estão se aliando a empresas de diferentes segmentos. O conglomerado industrial alemão Bosch, por exemplo, continua fazendo peças que equipam carros a combustão há um século, mas investe cada vez mais em softwares criados junto com startups e empresas concorrentes. “Se quisermos estar inseridos na nova realidade da indústria global, teremos de ampliar a cooperação com clientes e até com empresas de outros segmentos”, diz Besaliel Botelho, presidente da Bosch na América Latina. Independentemente do desfecho das negociações entre FCA e Renault, a indústria automotiva terá cada vez mais casos de amizades e namoros — e, de vez em quando, algum casamento cercado de pompa.

Acompanhe tudo sobre:AutoindústriaFiatFusões e AquisiçõesRenault

Mais de Revista Exame

Invasão chinesa: os carros asiáticos que chegarão ao Brasil nos próximos meses

Maiores bancos do Brasil apostam na expansão do crédito para crescer

MM 24: Operadoras de planos de saúde reduzem lucro líquido em 191%

MM 2024: As maiores empresas do Brasil