Presidente da República, Jair Bolsonaro (Evaristo Sá/AFP)
Alessandra Azevedo
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h32.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 13h52.
Pelo menos uma vez por semana o presidente Jair Bolsonaro costuma viajar pelo país. No dia 11, ele participou da cerimônia do Dia do Marinheiro, em Itaguaí, no Rio de Janeiro. No final de novembro, partiu para Flores de Goiás, uma pequena cidade goiana, para entregar títulos de regularização de posse de propriedades rurais. A despeito da pandemia de covid-19 que já vitimou 181.000 brasileiros, invariavelmente a comitiva de Bolsonaro é aplaudida por onde passa — e o presidente não se furta a tomar um pingado na padaria local e a posar para fotos. Mas, além de elogios de aguerridos apoiadores, o presidente tem recebido pedidos para que o país volte a ter mais empregos e a crescer. A crise econômica gerada pela covid-19 impôs uma contração de 4,4% no produto interno bruto e criou uma massa de quase 14 milhões de desempregados, o que levou a uma taxa recorde de 13,6% de pessoas sem trabalho. Junto veio a perda da renda do trabalhador, que caiu 20%, e o custo de vida encareceu — só a inflação dos alimentos subiu 11% em 2020. Bolsonaro, portanto, inicia a segunda metade de seu mandato diante de um desafio único: arrumar a economia brasileira enquanto precisa vacinar grande parte dos 210 milhões de habitantes.
Como tantos outros países, o Brasil sofreu um revés sem precedentes em 2020 por causa da pandemia. Neste ano, os gastos para socorrer a população e as empresas devem somar 605 bilhões de reais, o que representa quase 9% do PIB. Junto com outras despesas, o déficit fiscal deverá somar 912 bilhões de reais, um recorde. A dívida pública alcançou cerca de 95% do PIB, o que pressiona ainda mais as contas. Do ponto de vista econômico, 2021 deverá ser um ano de passagem entre uma crise profunda e uma expectativa de uma economia mais azeitada apenas em 2022, quando Bolsonaro entrará na reta final de seu mandato, e suas ambições eleitorais estarão mais latentes do que nunca. A expectativa é que o país cresça 2,9% em 2021, segundo estimativas do banco Santander. Num mundo sem pandemia, seria um desempenho bom para a economia brasileira, mas esse número não dá conta de compensar as perdas da crise. “Para o país continuar crescendo, será preciso levar adiante as reformas e trabalhar intensamente para que outras pautas econômicas que ficaram paradas comecem a andar”, diz o analista político Lucas de Aragão, sócio diretor da consultoria Arko Advice.
Os primeiros dois anos de mandato do presidente Bolsonaro tiveram momentos muito distintos. No primeiro ano de governo, em 2019, a maior vitória foi a aprovação da reforma da Previdência, que deverá entregar uma economia de 26,1 bilhões de reais aos cofres públicos já em 2021. Mas a conquista superlativa do presidente foi ofuscada por polêmicas acessórias, como a tentativa de emplacar seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), como embaixador nos Estados Unidos. Já o segundo ano do mandato foi engolido pela pandemia e todos os reveses inerentes à crise sanitária. Da aposta na cloroquina ao menosprezo da gravidade da covid-19, o presidente se colocou ora como adversário, ora como coadjuvante no enfrentamento da pandemia. É verdade também que o governo Bolsonaro teve um êxito incontestável: a aprovação do auxílio emergencial que beneficiou 66 milhões de pessoas e se tornou um dos mais ambiciosos programas de alívio dos efeitos da crise no mundo. Ainda que o mérito da aprovação de um valor mais robusto da ajuda seja do Congresso, e não do Executivo, o presidente tem sido recompensado com uma alta aprovação de seu governo — segundo a pesquisa EXAME/IDEIA do início de dezembro, 35% dos brasileiros avaliavam o governo como ótimo ou bom.
O embate político deu o tom da interlocução entre o Congresso e o governo na primeira metade do mandato. Membros da equipe econômica, como o ministro Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não se furtaram a levar a público discussões sobre temas essenciais para o país, como a proposta de reforma tributária do governo e a PEC Emergencial, que define regras para o controle de despesas e o cumprimento do teto de gastos. No fim, quase nada andou. No dia 15 de dezembro, no fechamento desta edição, Maia ainda cogitava suspender o recesso de fim de ano do Congresso para tentar votar a PEC Emergencial, apresentada originalmente no final de 2019. Já as reformas tributária e administrativa (o objetivo desta última é diminuir o tamanho do Estado brasileiro reduzindo o custo do funcionalismo público) ficaram para 2021. Ambas são consideradas medidas essenciais para a retomada no pós-pandemia.
Do ponto de vista econômico, os próximos dois anos representam a chance de o governo Bolsonaro finalmente fazer a agenda liberal progredir. Uma de suas principais bandeiras é o programa de privatizações, que não avançou quase nada até agora. Segundo a equipe econômica, estão programadas a desestatização de dez empresas controladas pela União em 2021, entre elas os Correios, o Porto de Vitória e a Trensurb, de trens metropolitanos. “Além de aumentar o caixa do governo em um momento em que é fundamental reduzir a dívida pública, a venda desses ativos deverá gerar investimentos”, diz Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização do Ministério da Economia. A maioria das estatais que o governo quer privatizar não exige aval do Congresso para o processo avançar. No caso de empresas como os Correios, em que é necessário fazer uma quebra de monopólio para a privatização ter sinal verde, é preciso contar com a aprovação dos parlamentares. O plano do governo é apresentar ao Congresso, até o final de 2020, o projeto de lei que cria novas regras para o setor postal. “Faço questão de estar presente nas discussões para levar o processo adiante”, afirma Mac Cord.
A Eletrobras também faz parte do calendário de privatizações. Um estudo do banco BTG Pactual aponta que as ações da empresa, hoje cotadas a 52 reais em média, deverão ter uma valorização de 119% caso a estatal, que tem uma parte de suas ações negociada na bolsa, seja capitalizada. O tema, no entanto, encontra resistências. Enviado aos parlamentares em novembro de 2019, o projeto de lei que abre caminho para a privatização da estatal e suas subsidiárias continua parado. A ideia do governo é transformar a Eletrobras em uma empresa privada de capital aberto com vários acionistas. Os parlamentares que são contrários à privatização, como o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), argumentam que o setor energético é estratégico para o país e não pode ser controlado pela iniciativa privada. “Espera-se que seja aprovada pelo menos uma grande privatização, gerando recursos para os cofres públicos e impulsionando a economia”, diz Ana Paula Vescovi, economista-chefe do Santander.
Outro tema da agenda liberal que deve ganhar tração é a abertura à iniciativa privada de segmentos como a exploração de gás natural, que depende de nova aprovação na Câmara depois de ter recebido o aval do Senado no começo de dezembro (pairavam esperanças de que o assunto fosse concluído ainda em 2020, o que não havia ocorrido até 15 de dezembro). A expectativa é que a nova lei, que deve acabar com o controle do setor pela Petrobras e suas subsidiárias, entre em vigor em 2021. Com o aumento da concorrência, o preço do gás, utilizado em larga escala pela indústria, deverá cair 40% nos próximos anos, segundo estimativas da Confederação Nacional da Indústria. Só isso já deverá representar um impulso ao crescimento da economia. O marco regulatório que facilita a construção e a operação de ferrovias pela iniciativa privada também está caminhando. “Foram criados mecanismos que eliminam boa parte da burocracia no setor ferroviário e devem contribuir para a expansão da malha”, diz o senador Jean Paul Prates (PT-RN), relator do projeto.
O ritmo do andamento das grandes reformas estruturantes, porém, deve ser outro. No caso das mudanças relativas aos impostos, ainda que exista um entendimento geral no Congresso de que elas são bem-vindas, a discussão segue pulverizada. “Mesmo que fosse aprovada apenas a proposta do governo de substituir o PIS e Cofins por um imposto único já seria um avanço”, diz Vescovi, do Santander. Uma pesquisa realizada pela consultoria Deloitte mostra que a reforma tributária é vista pelos empresários como a maior prioridade da agenda de 2021. De acordo com o levantamento, realizado com 663 empresas no final deste ano, 98% dos entrevistados acreditam que a simplificação das regras tributárias é fundamental para destravar o crescimento econômico. A reforma administrativa também deve caminhar lentamente, a despeito de sua importância. Segundo cálculos do Ipea, o impacto da reforma, que reduz em 30% os salários de entrada no funcionalismo e acaba com a estabilidade no emprego, entre outras medidas, pode chegar a 300 bilhões de reais nos próximos dez anos. Na Câmara, as discussões sobre o assunto são protagonizadas por duas frentes multipartidárias, uma que busca avançar a pauta e outra que tenta barrar a votação ao defender interesses de segmentos do setor público. “A falta de entendimento e coordenação política no Congresso em relação às reformas precisa ser superada para a agenda do governo andar nos próximos dois anos”, diz o cientista político André Pereira César, da Hold Assessoria Legislativa.
Para fazer a agenda do governo avançar nos próximos dois anos Bolsonaro precisa vencer uma batalha política nas próximas semanas. No dia 1o de fevereiro serão escolhidos os novos presidentes do Senado e da Câmara. Entre os senadores, os candidatos à cadeira hoje ocupada por Davi Alcolumbre devem ter perfis parecidos, com foco em agenda econômica e medidas pragmáticas. Despontam nomes do MDB, como Simone Tebet (MS) e Eduardo Braga (AM), mas Alcolumbre tenta emplacar o correligionário Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Já na Câmara a disputa está acirrada e gira em torno de duas principais vias: o nome a ser defendido pelo atual presidente da Casa, Rodrigo Maia, e seu maior adversário, Arthur Lira (PP-AL), líder do Centrão e candidato apoiado pelo presidente Bolsonaro. Maia formou um bloco de seis partidos para atuar a partir de 2021 na Câmara, com 157 deputados que devem apoiar o nome escolhido por ele. Ao lançar a candidatura, em 9 de dezembro, Lira anunciou estar fechado com oito legendas, que contam com 160 deputados nas bancadas. “Trata-se de uma manobra política que demonstra a dimensão da necessidade de apoio no Congresso nos próximos dois anos”, diz o analista político Thiago Vidal, da Prospectiva Consultoria. Bolsonaro hoje não tem uma base aliada constituída e tenta ser pragmático. Sem partido, o presidente se arvora em segmentos do Centrão e contaria com cerca de 70% dos votos na Câmara, a depender da pauta em discussão. Por isso, o resultado da batalha de curto prazo pode significar para Bolsonaro trajetórias muito diferentes ao longo da segunda metade de seu governo. A política, de novo, dará o tom para a economia.